LEMBRA-SE DO MERICA? POIS É, BATIA UMA BOLINHA RESPONSA
por André Felipe de Lima
Sempre que alguém citava o Merica, comentava-se — antes de mencionar o futebol que ele jogava — a notória “beleza” do volante. Liminha, que o antecedeu na meia cancha do Flamengo e estava prestes a pendurar as chuteiras, chamou Júnior em um canto, e confidenciou: “O Flamengo encontrou finalmente o jogador para me substituir: é esse Merica. E ele apresenta uma grande vantagem em relação a mim: sabe dar passes longos, que nunca foram o meu forte”.
Viu? Merica era bom de bola, sim. Não era um craque. Fama de ídolo? Sucesso entre as torcedoras? Aí é que não rolava mesmo. Mas era xodó da torcida, sim. Quem torcia pelo Flamengo por voltar de 1976 e 77 teve a mesma impressão do Liminha. O tal Merica, aquele baixinho feio pra burro, que jogava no modesto Atlético de Alagoinhas, na Bahia, era mesmo bom volante. Marcava bem, desarmava e saía para o jogo. Estava longe de ser um Carpegiani ou Andrade, que o sucederam por ali, mas dava (e muito!) para o gasto.
Valdemiro Lima da Silva, o intrépido Merica, nasceu no dia 13 de setembro de 1953, em Acupe, cidadezinha pacata do distrito Santo Amaro da Purificação, do interior baiano. Entre 1975 e 1978, foram 175 jogos com camisa do Flamengo, oito gols marcados, 105 vitórias e somente 24 derrotadas. Com Merica em campo, ficava mais difícil para os atacantes adversários chegarem à defesa rubro-negra. Mas o bom baiano baixinho, e para lá de porreta!, era arretado, e ia para o ataque, quase sempre caindo pela lateral direita. Levava porradas à vera, mas não se intimidava.
Uma vez, em um Fla-Flu de 1976, lá pelos 20 minutos do primeiro tempo, Doval, o gringo, teve a bola “roubada” por Merica, que foi, como de costume, pela direita, avançando sem parar. Deixou Paulinho para trás, porém viu pela frente um menino alto e parrudo. Era o zagueiro Carlinhos. Os dois trombaram. Desabaram. Carlinhos ficou mal. Falta de ar. O médico tricolor Durval Valente ficou sem saber o que fazer, porque o craque Doval também se queixava com ele de dores no tornozelo. Meia completamente rasgada. Foi rescaldo da dividida segundos antes com Merica. O médico do Flamengo Célio Cottechia quis entrar em campo para socorrer Merica, que sob o indefectível sotaque do interior baiano, disse: “Tô bem, dotô, num precisa entrá não”.
No banco de reservas, a rapaziada do Flamengo caiu na gargalhada. O técnico Carlos Froner, todo prosa, vira-se para o massagista, e emenda: “Não disse que ele é dos bons? É de jogador assim que eu gosto”. Hoje em dia, jogador assim, como foi Merica, que recolhia a dor, levantava e jogava, é artigo de luxo. Cai-cai não fazia parte do seu estilo. Aquele Fla-Flu em que jogou à beça foi o vigésimo jogo seguido pelo Flamengo. Liminha ficara mesmo no banco, de onde não sairia mais.
Merica era somente um rapaz. Tinha 22 anos. É o caçula de oito irmãos criados na pequena Acupe, uma comunidade de origens indígena e africana muito famosa na Bahia pelo legado cultural deixado por escravos. Não se constituiu em um quilombo, mas em uma terra para onde iam alguns escravos fugitivos das fazendas e mesmo alforriados, que, enfim, gozavam a justa e necessária liberdade. Eram eles homens e mulheres; crianças e velhos. Todos bravos e aguerridos negros na carne e na identidade. Assim eram os ancestrais do grande Merica, que, acreditem, foi um jovem barbeiro em Acupe, quando começou a jogar bola no time de peladas do Ideal (de Santo Amaro) e, levando mais a sério, no Atlético de Alagoinhas.
Merica sabe que aquele Fla-Flu em que arrebentou em campo jamais saiu de sua mente. Foi a primeira vez que ele se viu cercado de microfones. Se Zico era a estrela, Merica era o reluzente cometa naquela tarde de arquibancada magnificamente colorida de vermelho e preto e de branco, grená e verde.
Mas como o jovem Merica, de uma cidadezinha tão enfronhada no miolo baiano, chegou ao Sul Maravilha, e logo à Gávea? Acerto de contas do Céu com o jovem? Pode ser. Pura sorte? Também. Mas Merica tinha muito mais que apenas estrela. Tinha competência. Jamais se soube o que fez o Flamengo fazer uma excursão pelo interior da Bahia. Mas suspeitava-se que o motivo tinha sido “Merica”. A renda não compensaria o esforço, mas diziam que era vontade de mostrar o time ao povo, que tem direito de ficar bem perto dos seus ídolos. Foi num desses rompantes de alteridade da diretoria do Flamengo que Merica cruzou seu destino com as cores preta e vermelha. O caminho estava aberto para o garoto barbeiro brilhar. Mas quem o viu jogar primeiro e o havia indicado ao Vasco e ao próprio Flamengo foi o comentarista Carlos Marcondes, que trabalhava na Rádio Tupi, do Rio. O Vasco ignorou, mas o Flamengo foi lá conferir se o que Marcondes falava era mesmo verdade.
Dos módicos 300 cruzeiros que recebia do Atlético de Alagoinhas passou a receber 5 mil cruzeiros em agosto de 1975, quando chegou ao Rio de Janeiro. Vieram ele e, de contrapeso, o amigo Dendê. Merica deu certo, Dendê apenas curtiu um pouco as belezas do Rio, mesmo assim, entrou em campo 50 vezes pelo Flamengo.
Junior “Capacete”, um dos melhores amigos do Merica na Gávea, lembra que a chegada do baianinho foi cercada de preconceito: “Merica foi alvo de uma campanha nada simpática, parecia mesmo que tinha mesmo o objetivo de ridicularizar o rapaz. Ora porque é feio, ora porque chegou de um time modesto como o Atlético de Alagoinhas. Na verdade, o problema era outro: o Flamengo não estava bem e a diretoria do clube tinha acenado à torcida com contratações. Os nomes de Merica e Dendê, que vieram juntos, não eram bem aqueles que a torcida e os jornalistas queriam ouvir. Só para dar uma ideia disso, basta dizer que houve um momento em que diziam que o Merica, só porque tinha vindo da Bahia, estava fazendo macumba para o Liminha sair do time”.
Rondinelli foi outro craque que deu muita força ao Merica no começo. O baiano encabulado sentia-se solitário no Rio. Só conversava com Dendê. Os jogadores tentavam enturmá-lo, mas o que único que obteve sucesso foi Geraldo, que morreria prematuramente logo após a chegada de Merica. “Só para você ver como era o Geraldo, foi ele o primeiro de nós a ter a sensibilidade para a situação do Merica, a solidão em que vivia. E Geraldo passou a encarnar nele, gozá-lo com brincadeiras. E assim se quebrou aquele gelo. Aí a intimidade foi aumentando, eu e os outros passamos a compreender Merica, um cara apegado demais à família, à sua terra. Hoje ele é um dos caras mais queridos por todos os companheiros”, contou Rondinelli, em 1977, aos repórteres Maurício Azedo e Aristélio Andrade.
Mas tudo aquilo passou. A fase bacana do Merica no gramado superara qualquer dificuldade inicial. Ele voltou à Santo Amaro e casou-se com a namorada Maria Raimunda. Voltou ao Rio e alugou um apartamento em Copacabana. Que fase! Até aquele Fla-Flu fizera 20 jogos pelo Flamengo. Não perdera nenhum. Zico o adorava: “Na cabeça de área é um leão, destruindo com vigor e dando total cobertura aos zagueiros. E não é só isso: é um cara que sabe avançar, ajudar o meio de campo e, se for preciso, fazer lançamentos para os companheiros”.
Merica não fugia do pau. Era valente como seus ancestrais escravos. Não tolerava mimi. E durante outro Fla-Flu, Rivellino deu-lhe um safanão, sem bola, mas quem caiu no chão foi o “Bigode” e não o Merica. Rivellino rolava no gramado, uivando de uma dor inexistente. Puro teatro. Merica, a verdadeira vítima, acabou expulso pelo juiz. Ficou injuriado e partiu para cima do Rivellino, que se esquivou do baixinho. Em Fla-Flu, Merica não dava sopa. Foi expulso algumas vezes.
Era matuto, sem dúvida. Uma vez — contou Júnior — entrou na sauna de camisa, calça comprida e chinelo. Saiu de lá para lá de encharcado de suor. De sacanagem, os companheiros de time, entre eles o próprio Júnior, ficaram do lado de fora esperando a saída do Merica. Dá para imaginar as sonoras gargalhadas dos caras ao se depararem com Merica naquele estado. Mas a emenda saiu pior que o soneto quando Merica, inocentemente, veio com o seguinte: “Puxa, como é que uma sala dessas, danada de quente, não tem ar condicionado?”.
A história de Merica com o Flamengo começou antes da Gávea. Muito antes do carinho e alegria que os companheiros sempre tiveram com ele no clube carioca. Houve outro Flamengo antes, o da rua do Prédio, em Acupe. Foi ali, nas peladas do Mengo de Acupe, que o vermelho e o preto começaram a tomar conta da alma arretada do querido Merica, que recentemente foi homenageado em um torneio intermunicipal de futebol na Bahia. A Taça Valdemiro Lima da Silva. Ficaria mais charmoso e original chamá-la de Taça Merica. Os rubro-negros concordariam, afinal, que se esquece do Merica na Gávea?
PITBULL, POMBOS E ROTWAILLER
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
Estou em Florianópolis ainda estarrecido como incêndio no Museu Histórico Nacional. Apenas mais um crime cometido contra o nosso patrimônio. Fiquei arrasado, não surpreso. Nada mais me surpreende nesse país governado por múmias. O Rio está sem comando, caos generalizado, hidrantes sem água e nossa memória no ralo. São crimes atrás de crimes e, como diz a garotada, “segue o baile!”.
Estive no Rio recentemente e nunca vi tantos moradores de rua, abandono completo. O pior é que, agora, as mesmas múmias de sempre saíram de seus sarcófagos com as velhas promessas de sempre. Foram essas múmias que despejaram milhões no Maracanã e o deformaram. O Rio já não é mais cartão postal de nada e torra sua imagem diariamente.
No futebol, despencamos e estamos atrás dos paulistas, gaúchos e mineiros. E já já seremos ultrapassados pelos nordestinos. O Ceará não perdeu para nenhum carioca, por exemplo. São quatro timecos com pouquíssimas diferenças entre um e outro. E no zap, os torcedores, os bobos da corte, debochando uns dos outros. “Vamos morrer abraçados, êêêêêê!!!!” “Você levou quatro e eu três, êêêêêê!!!”.
Os quatro presidentes deveriam sentar-se juntos e pensar em uma medida para reverter essa situação. Imaginam como será o Estadual caso caiam dois times cariocas? Aí, ao invés de tomarem decisões conjuntas, culpam o Estadual. Os culpados são os dirigentes e não o Estadual, uma competição charmosa e de um valor inestimável para o torcedor.
O Francisco Horta tinha uma mentalidade moderna e já teria promovido algum troca-troca para agitar o campeonato! Alguma coisa ele faria, não tenho dúvida!!! Mas o que vemos são os clubes brigando pelo direito de usar o Maracanã, por verbas maiores de tevê e isso e aquilo. Vão afundar todos se não se unirem. Administração moderna é isso! Pagar salários em dia é obrigação! Precisamos de estádios cheios, ingressos baratos, times competitivos. Nem falo de craques porque isso está em extinção. Mas quem está preocupado com craques? O Felipão elogia o Felipe Melo, “seu Pitbull”, suspenso mais uma vez por entrada violenta, e exalta o substituto Thiago Santos, “seu Rotwailler”.
Os cães de guarda viraram ídolos. E craques como o Pedrinho, do Corinthians são vetados para dar lugar aos Ralfs da vida. No Vasco, Wagner de tanto ser barrado, saiu, cansou. Ninguém aguenta olhar para o lado e só ver cabeçudos especializados em fungar no pescoço dos adversários e serem reverenciados pela torcida com latidos.
Hoje o novo torcedor não canta, late, e vibra com a goleada do Brasil…. sobre El Salvador. E o Micale, campeão olímpico de futebol? Foi tentar a sorte no Figueirense. Tem gente que ainda cai nessa. É mais um da escola do professor Tite, que na beira do campo, contra El Salvador, gesticulava teatralmente. No gol, peito estufado, deve ter se orgulhado da fantástica Dança do Pombo. Pombos, Pitbulls e Rotwaillers. Saudade de quando a briga era entre cachorros grandes e não bravos.
ASSAÍ OU AÇAÍ
por Idel Halfen
Assaí ou açaí? Não precisa responder, a pergunta tem como mero intuito chamar a atenção para a rede de varejo que passou a deter desde julho o title sponsor do Campeonato Brasileiro de futebol. Essa cadeia foi fundada em 1974 e está presente em 18 estados, porém, por ter durante muito tempo atuado exclusivamente como um atacadista, grande parte da população não conhece a marca na mesma proporção que distingue o Pão de Açúcar ou o Carrefour, por exemplo.
Diante desse quadro de baixo recall podemos considerar que a iniciativa do patrocínio tem elevado potencial de retorno, desde que, é claro, as expectativas em termos quantitativos não sejam exageradas e que ativações criativas sejam realizadas.
Como o tema “retorno de investimento em patrocínio” costuma ser bastante debatido por aqui, focaremos nesse artigo o conceito da operação do Assaí, visto ter esse passado por mudanças de modelo, as quais nos fornecem ótimos exemplos de como os processos evolutivos de marketing podem contribuir para a estratégia de uma empresa.
Diferente dos tradicionais supermercados e hipermercados frequentados pela população de forma geral, o modelo adotado pelo Assaí é uma adaptação da operação de atacado de forma poder atender qualquer tipo de cliente e não apenas pessoas jurídicas proprietárias de estabelecimentos comerciais. Para isso, a quantidade de unidade mínima de produtos a ser adquirida pelo cliente, que antes chegava a ser uma caixa, passou a ser apenas três unidades, daí o nome “atacarejo” para designar sua atuação.
O preço baixo é o principal atributo de atratividade, o que se consegue através da forte atenção aos custos das mercadorias e instalações, além das soluções de logística e de marketing. Há que se ressalvar que, apesar de o preço ser um fator decisivo, as redes que adotam esse modelo não podem ignorar os aspectos relacionados à localização, ao atendimento e à área de vendas.
No caso do Assaí vale relatar que suas instalações sofreram e continuam a sofrer mudanças, uma dessas aconteceu através da extinção das seções de açougue e de padaria que, apesar de serem atrativas ao cliente pessoa física, aumentavam o custo da operação e faziam com que a loja fosse percebida como uma concorrente dos clientes pessoas jurídicas que eram donos de estabelecimentos desses ramos. Hoje essas áreas servem como espaço para estocagem, o que acaba diminuindo as despesas relativas a armazenamento e logística dos centros de distribuição.
Ainda em termos adaptação de lay out, as novas lojas estão com corredores mais largos para melhorar a circulação das mercadorias e pé direito mais alto para estocá-las em cima das gôndolas. Essa pequena adaptação influencia sobremaneira os custos de logística, visto que os produtos podem ir direto da indústria para as lojas.
Não há dúvida de que o momento econômico que o país vem atravessando contribuiu para o crescimento desse modelo de varejo, o que acaba gerando dúvidas sobre sua longevidade em caso de recuperação da economia, no entanto, se formos buscar paralelos internacionais veremos que a Costco – rede varejista americana cujo posicionamento é fortemente baseado em preço – teve expressiva evolução na crise norte-americana e vem mantendo taxas de crescimento bastante altas mesmo no bom momento pela qual passa o país, o que permite supor que esse tipo de varejo continuará rentável por algum tempo.
Todavia, assim como o atacado entendeu o mercado e incutiu processos advindos do varejo, as redes baseadas nesse novo conceito precisam estar atentas a algumas ameaças que podem atrapalhar o bom rumo de sua operação, entre estas podemos destacar: (i) o crescimento do comércio eletrônico que permite a comparação de preços sem sair de casa, além de ter uma operação mais barata e (ii) a expansão física, visto que o custo dos imóveis com áreas suficientes e localização adequada para o modelo tende a ser mais alto.
Esperar o que vai acontecer ou seguir o mercado talvez não seja a melhor iniciativa, daí a importância de uma área de marketing devidamente capacitada.
O title sponsor é apenas uma amostra do que pode ser feito.
EVERALDO, O OURO DA BANDEIRA DO GRÊMIO
por André Felipe de Lima
“Já ganhei muitos presentes — dois carros, máquina de lavar roupa, relógio — e o carinho de meu povo. Meu contrato termina no dia 6 de fevereiro do ano que vem e então eu pedirei ao Grêmio o que achar que meu futebol vale”. Estas palavras foram ditas ao repórter Divino Fonseca em julho de 1970, um mês após o Brasil conquistar o tricampeonato mundial, no México, pelo inesquecível Everaldo, lateral-esquerdo daquele escrete campeão e um dos maiores ídolos de toda a história do Grêmio. Como a maioria dos craques de sua época, contentava-se com pouco para ser feliz. O que lhe garantisse uma razoável qualidade de vida. Mas tudo que o Grêmio fizesse por ele sempre seria pouco comparado à dimensão que Everaldo representa para gloriosa trajetória do clube gaúcho.
Após a Copa de 70, Everaldo desfilaria pela Porto Alegre sentado em um trono e ganharia muitos outros bens materiais pelo seu heroísmo no México. Do presidente Emílio Garrastazu Médici, ele e todos os companheiros do “tri” receberam um cheque de 25 mil cruzeiros e uma caderneta de poupança de 5 mil cruzeiros. Quando desembarcou em Porto Alegre, recebeu uma TV, um aspirador de pó, uma bandeja de prata, uma placa de bronze, uma chuteira de bronze e dezoito pares de sapato produzidos em Novo Hamburgo, uma taça prateada, vinte garrafas de vinho fabricados em Bento Gonçalves, um troféu da emissora de TV Piratini e um título de sócio honorário da Federação Gaúcha de Futebol que lhe garantia acesso livre aos estádios de qualquer canto do país.
Everaldo era uma sumidade. Acreditava que ficaria rico após o título de 70. Era humilde e, como o descreveu Divino Fonseca, um tanto “ingênuo”. Acreditava piamente que abriria uma loja para explorara Loteria Esportiva. Pelos seus cálculos, ficaria rico em pouco tempo com a lojinha. Afinal, tinha de aproveitar a bajulação. Era incessante o entra e sai de fãs, amigos e “amigos” de Everaldo no apartamento 303, na rua Jerônimo Ornelas, nº 28. Cleci, esposa do jogador que estava grávida, atendia a inúmeros telefonemas de donos de lojas, restaurantes e boates que insistiam em convidar o casal para homenagear o grande campeão mundial. Até um agende de publicidade Everaldo contratou para filtrar os convites. Quando o campo de futebol lhe dava uma folga, Everaldo escrevia crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Ganhava 100 cruzeiros por artigo e, de tabuada em punho, concluíra: “São 30 textos para contar toda a minha história na Copa do Mundo, vou ganhar 30 mil cruzeiros ao final”. Queria ficar rico, o grande ídolo.
Everaldo Marques da Silva era reserva da melhor seleção de futebol de todos os tempos. Naquele time de 70, enquanto o mundo só tinha olhos para Gérson, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, Rivelino, Jairzinho, Tostão e o Rei Pelé, Everaldo, que ocupara a vaga de Marco Antônio, cumpria a risca seu papel de garantir consistência à marcação e fechar a defesa. Aliás, sua principal característica como jogador era justamente a capacidade de defender, embora também atacasse com muita qualidade.
Com a seleção, Everaldo conquistou as maiores glórias de sua vida. Foi campeão da Copa de 1970 e graças a este título virou uma das estrelas da bandeira do Grêmio, clube pelo qual jogou quase toda a carreira. Quando retornou a Porto Alegre, no dia 24 de junho, após a conquista do tricampeonato foi recebido como um verdadeiro herói por uma multidão de aproximadamente 200 mil pessoas. A chegada parecia a de um pop star! O avião que trazia o único jogador de um clube gaúcho na delegação tricampeã foi escoltado pela FAB e, ao desembarcar, Everaldo foi recebido no Palácio Piratini pelo governador Walter Perachi de Barcelos.
Ao descer do avião, no aeroporto de Porto Alegre, Everaldo ficou espantado com a multidão que o cercava, com cerca de 5 mil pessoas [as que Everaldo pôde mensurar]. Perguntou ao presidente Flávio Obino e ao vice-presidente Sérgio Ilha Moreira: “Esse povo todo está aqui por minha causa?”
Everaldo voltou tricampeão do mundo e não eram só os gremistas que o aguardavam, mas o povo gaúcho. Do aeroporto até o Palácio Piratini, onde foi recebido pelo então governador Perachi Barcelos, Everaldo foi ovacionado por fãs que contavam 300 mil, a maior concentração pública numa extensão de 7 quilômetros. Fato inédito.
Ao descer o último degrau da escada do avião, Everaldo sorriu e, em seguida, soluçou. Intercalava riso e choro, erguendo os braços e procurava a esposa, a filha, os irmãos e a mãe com o olhar emocionado. Nem mesmo Figueroa e Falcão, dois ídolos renomados do Inter nos anos de 1970, nem outro jogador gremista posterior ao tempo de Everaldo foram agraciados na mesma proporção do ex-lateral esquerdo no Rio Grande do Sul.
Everaldo distribuiu autógrafos por uma semana, ganhou prêmios, homenagens públicas e foi convidado para banquetes. Pela primeira vez, um jogador do Grêmio sentou ao lado do presidente do Conselho Deliberativo e do presidente do clube. Ele motivou uma reunião extraordinária e festiva do alto órgão diretivo do clube.
Diante de tanta glória proporcionada pelo ídolo, a diretoria do Tricolor resolveu prestar-lhe uma homenagem: desde o dia 30 de junho de 1970, estampa-se uma estrela dourada na bandeira do Grêmio. A estrela é Everaldo. “Com toda a sinceridade, sinto-me feliz. Mais feliz ainda porque senti, ainda lá no México, como estaria o meu povo aqui no Brasil. Quando terminou o jogo, em segundos, eu vi o Brasil inteiro rindo e chorando. Vi a minha Porto Alegre, todos os seus bairros; vi o Olímpico, a minha turma, os jogadores e dirigentes do Grêmio; vi a minha esposa, minha filha, meus irmãos e minha mãe. Vi todos direitinho. Eles pulavam, gritavam, se abraçavam. Quando retornei, foi apenas a repetição do que já sentira lá no México. Tudo isso foi para mim motivo de alegria. Sou tricampeão do mundo. Para mim é um incentivo. Eu sei que agora tenho a obrigação de acertar sempre. Como pessoa, continuo igual. Acho, até, que nem preciso explicar. O meu prêmio maior, repito, foi ter podido ajudar o Brasil a conquistar o título. Para o Grêmio, que é o meu clube de coração, a conquista do tricampeonato representou muito.”
Nascido em Porto Alegre, no dia 11 de setembro de 1944, Everaldo, que começou jogando no Marabá, do bairro da Glória, chegou ao Grêmio com apenas 13 anos de idade para atuar nas categorias de base do clube. Vestiu pela primeira vez o manto sagrado do time profissional, no dia 18 de novembro de 1962, quando o Grêmio perdeu de 2 a 0 para a seleção gaúcha. Em seguida, Everaldo foi reintegrado ao time juvenil. Voltaria, definitivamente, ao time principal no dia 16 de janeiro de 1966, para nunca mais sair da lateral-esquerda. E com toda a pompa. O Grêmio massacrara o Itapuí de Guaíba pelo placar de 9 a 0.
Além do tricolor dos Pampas, o outro clube que Everaldo defendeu foi o Juventude. Porém, ficou duas temporadas [1964 e 65] na Serra Gaúcha e, em 1966, retornou ao clube que o revelou para não mais sair.
Com o Grêmio, conquistou quatro títulos gaúchos [1966, 67 e 68]. Era um jogador muito leal tanto que conquistou o prêmio Belfort Duarte. No entanto, em 1972, durante uma partida contra o Cruzeiro se desentendeu com o árbitro José Faville Neto e o agrediu. O ato de indisciplina lhe rendeu uma suspensão de um ano.
Everaldo gostava de samba. Foi ritmista da escola de samba Bambas da Orgia, o grêmio carnavalesco mais antigo de Porto Alegre e um dos mais populares da cidade. Mas a sua vida festiva e de glórias inigualáveis teve prazo. Um lamentável prazo curto.
No dia 27 de outubro de 1974, a vida do jogador, que se preparava para encerrar a carreira, foi interrompida bruscamente quando o carro que dirigia, um Dodge Dart, bateu violentamente em um caminhão na BR-290. No acidente, morreram Everaldo, então com apenas 30 anos de idade, a esposa e a filha.
Assim como Eurico Lara, lendário goleiro gremista, o lateral tricampeão mundial no México saiu dos gramados para entrar no Olimpo dos mitos tricolores. O craque disputou 364 jogos pelo Grêmio e marcou apenas dois gols. Se Eurico Lara teve o nome imortalizado no hino do clube, a estrela de ouro na bandeira gremista simboliza Everaldo por ter sido o primeiro jogador do tricolor gaúcho a se sagrar campeão mundial.
BECKENBAUER ÍDOLO
por André Felipe de Lima
“Olhe, tenho cinco filhos. Tive os três primeiros aos 23 anos. Não os vi crescer; estava focado no futebol. Negligenciei totalmente meus deveres como pai. Agora, recebi o presente de mais dois filhos. Se negligenciá-los, farei tudo errado novamente”. Confessar o erro é o começo para a transformação do amor. Franz Beckenbauer, o “Kaiser”, o maior jogador de futebol da Alemanha em todos os tempos e um dos “deuses” da história do futebol mundial, teve uma carreira irretocável dentro dos gramados. Dedicou-se ao extremo. Pagou um preço alto por isso: a distância da família. A confissão, feita em longa entrevista concedida em 2006, aos repórteres Jürgen Leinemann e Alfred Weinzierl, da Der Spiegel, sintetiza a importância de Beckenbauer como ídolo e figura pública para os alemães. Um camarada sincero, que não escamoteia.
Quando garoto torcia fervorosamente pelo TSV 1860, de Munique, rival do Bayern. Ele e o amigo Sepp Maier gostavam de jogar tênis, mas um dia Beckenbauer, durante uma pelada, recomendou ao Maier que ficasse no arco. Pintava ali o magistral goleiro do futuro, que se tornaria o maior goleiro da história do Bayern.
Beckenbauer realizara o sonho de todo menino: jogar pelo time do coração. Conseguira ingressar nos times infantis do TSV. Mas durante uma pelada ele saiu no tapa com meninos com quem jogava no clube. Acabou o amor. Torcer pelo TSV era passado. A desenvoltura do menino era, contudo, tão eloquente, que o rival do TSV acabou pescando-o para suas fileiras de craques, que começavam a escrever uma das páginas mais significativas do futebol germânico. Enfim, Beckenbauer iniciava sua trajetória no Bayern em 1965, como líbero, posição que o tornou célebre e a principal referência histórica. “Gostei de assumir um papel no flanco de trás. Eu era capaz de jogar com total liberdade; podia me apoiar em jogadores como (Uwe) Seeler, Willi Schulz e Karl-Heinz Schnellinger. Aqueles eram caras de verdade. Eles foram bem sucedidos. Atualmente, em quem um jovem jogador pode se apoiar? Ele vai cair!”.
Beckenbauer está certo. Um ídolo, para que exista, necessita da história anterior de outros ídolos. É como se os craques verdadeiros herdassem de geração a geração a chama do ídolo. No futebol brasileiro estamos perdendo o contato com a história dos ídolos do passado, dos próprios grandes clubes. Como frisou Beckenbauer, um jovem craque da atualidade “cairá”, ficará perdido sem a chama que deveria herdar de outro ídolo.
Mas hoje é o dia de Beckenbauer, que nasceu em Munique, no dia 11 de setembro 1945. Brotou daquela Alemanha dividida e dilacerada o maior ídolo do futebol que os germânicos reverenciariam nas décadas seguintes. O garoto cresceu no bairro de Giesing, como escreveu Torsten Körner, biógrafo do Kaiser, o campo de futebol era o “viveiro” de Beckenbauer, que adorava jogar peladas nas ruas antes de ingressar Bayern. Onde havia uma bola de futebol, lá estava o garoto. Jogou no time da escola e até mesmo no da igreja. Peladeiro de raiz e fominha, diríamos por aqui. O garoto Beckenbauer não ficava de fora das peladas que rolassem no velho Giesing, que por ironia é a casa do TSV.
Mas o Beckenbauer era tão bom de bola que, para entrar em campo com o time profissional do Bayern, teve de obter uma autorização especial da Federação Alemã de Futebol. Isso por volta de 1964/65, quando o Bayern retornava à primeira divisão do futebol alemão, a Bundesliga.
O treinador Zlatko Čajkovski foi que começou a moldá-lo para o futebol. Recomendava que o magricelo ganhasse mais peso. Tinha de comer mais. Mulher, cigarro e cerveja, nem pensar, como descreveu Körner. E deu certo, Em 1965 o garoto já estava escalado na seleção nacional, que se preparava para a Copa do Mundo que seria realizada no ano seguinte, na Inglaterra, e foi naquele Mundial que o planeta curvou-se ao genial garoto alemão, que não conquistou a Copa, mas mostrou que a escola de futebol da Alemanha não parou no título mundial de 1954. Começou a Copa de 66 no meio de campo e anos mais tarde o treinador Helmut Schön perceberia em Beckenbauer uma indiscutível vocação líbero. De 1966 em diante, era inimaginável um escrete germânico sem o Kaiser. Inimaginável também conferir uma escalação do Bayern sem ele. Clube do qual é o eterno capitão e que defendeu com brio incomum 424 vezes, assinalando 44 gols. Foi campeão da Bundesliga em 1969, 1972, 1973 e 1974; da Liga dos Campeões da Europa em 1973/74, 1974/75 e 1975/76 e Mundial Interclubes em 1976.
A primeira metade da década de 1970 foi mágica para o Kaiser. Ganhava tudo com o Bayern, e com a seleção alemã não foi diferente. Na Copa do Mundo de 1970, no México, impressionou o mundo ao permanecer em campo na semifinal contra a Itália, mesmo com a clavícula fraturada. Ídolo, herói… mito. Beckenbauer foi um jogador extraordinário.
A recompensa viria na Copa seguinte, com a Alemanha desbancando a poderosa Holanda, de Cruyff. Inesquecível vê-lo erguendo a nova Copa do Mundo, que substituíra a finada Jules Rimet, roubada e derretida no Brasil. Em 1977, após conquistar o Mundial Interclubes com o Bayern, Beckenbauer partira para uma aventura arriscada: fazer o americano gostar de futebol. E lá foi ele jogar ao lado do Pelé e do Carlos Alberto Torres, de quem se tornou amigo inseparável, no New York Cosmos. Foi campeão americano em 1977, 1978 e 1980.
O período nos Estados Unidos foi o emblema do distanciamento do Kaiser de sua amada seleção alemã. Poderia perfeitamente ir à Copa de 1978, na Argentina, mas, inexplicavelmente, a Federação Alemã de Futebol impediu que jogadores que atuassem fora do país fossem convocados. Mas por pouco essa regra estapafúrdica não foi pelos ares. Semanas antes do embarque do escrete para Buenos Aires, o treinador Helmut Schön ligou para Beckenbauer, que atendeu ao telefone às quatro horas da matina, em Los Angeles. “Ele perguntou se havia uma chance de me recuperar. Mas nenhum funcionário de alto escalão da DFB (Federação Alemã) ligou para pedir ao Cosmos que me liberasse. Enviaram o secretário-geral da associação de futebol americano, que obviamente não passou pelo porteiro (da sede da DFB). Então eu disse: ‘Não, vocês mostraram que não estão realmente interessados em minha participação (na Copa)”. O Kaiser só voltaria a brilhar com a seleção alemã em 1990, como treinador da Alemanha tricampeã mundial. Não falta mais nada ao maior dos maiores do futebol alemão. Pena ter sido o craque mencionado em um rumoroso caso de corrupção durante a escolha da Alemanha como sede da Copa do Mundo de 2006. Beckenbauer, segundo a Der Spiegel, teria recebido mais de 5 milhões de euros como chefe do comitê de organização da Copa, sobre os quais não pagou impostos. O Kaiser nega até hoje as acusações, e diz que a quantia recebida originou-se de publicidade e está devidamente declarada em impostos. Logo após a Copa de 2006, a revista Stern perguntou aos alemães se Beckenbauer mereceria manter o honroso apelido de Kaiser. Mais da metade dos entrevistados responderam com um rotundo “não”. Mas 35% votaram a favor da manutenção do Kaiser no “trono” do futebol alemão.
Pena que a sinceridade que sempre marcou a carreira de Beckenbauer tenha sido manchada por esse episódio. O povo alemão, em geral, não perdoa escorregões dessa natureza. Mas o Kaiser, apesar do imbróglio da Copa de 2006, é um ídolo. Como na Grécia Antiga, os deuses também cometeram deslizes, e assim caminha humanidade. Para o bem ou para o mal.