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FUTEBOL É COISA DE VIADO TAMBÉM

por Paulo Escobar


O futebol, a exemplo da sociedade, vem andando para trás de novo de alguns anos pra cá, tanto na beleza, que é rara dentro dos gramados, como no conservadorismo e exclusão vinda das arquibancadas muitas vezes.

O que temos visto é uma onda de intolerância contra tudo aquilo que é diverso fora dos gramados, e em partes tem se trasladado esses preconceitos para o lado de dentro dos estádios. 

Essa cultura de que futebol é coisa de homem que já exclui as mulheres, e as relegam a segundo plano, colocando o futebol de mulheres no ostracismo no qual só é lembrado em tempos de grandes torneios. E se essa coisa que de “homem” já exclui as mulheres o que dizer então dos gays no mundo do futebol?

Quantos jogadores gays talvez não passaram pela história do futebol, quem sabe muitos tiveram que manter sua sexualidade em segredo pela pressão de todos os meios ligados ao esporte. Em momentos de suspeitas de que jogador X ou Y poderia ser foram motivos de críticas e muitas vezes até o futebol dos mesmos colocados em dúvida.

Além de enfrentar a pressão dentro dos gramados, os “suspeitos” em sua sexualidade devem enfrentar a pressão da torcida rival e da que defendem também. É forte ter que se referir como suspeitos, mas é dessa forma que se enxergam os jogadores que geram “suspeita” em relação a sua condição sexual.


Ainda me lembro quando, numa comemoração no meio dos anos 90, Maradona beija a boca do Caniggia, a mídia esportiva e muitas pessoas saíram com frases do tipo: “Além de drogado, é viado também”.

Richarlyson foi campeão do mundo pelo São Paulo, mas muitas criticas eram mais potentes pela desconfiança que existia em torno da sexualidade do jogador. Admirava a coragem dele de aguentar a pressão do jogo e a humilhação que passou em campo muitas vezes das torcidas que destilavam toda sua homofobia.

Reinaldo, do Atlético Mineiro, sentiu na pele, segundo ele, uma campanha contra sua convocação a Copa de 1982 pela desconfiança que sofreu também, como ele mesmo aponta numa reportagem recente:

“Falavam que eu era gay porque eu era amigo do Tutti. E ele é amigo da minha família. Normal, como eu conhecia vários gays. E o gay daquela época era um gay, digamos assim, mais discreto. Mas falavam que eu era gay também porque eu era amigo dos caras …”

Do seu lado no estádio podem haver milhares de gays não assumidos, você deve abraçar eles na comemoração dos gols, eles devem até te dar opiniões sobre o jogo que você pensa serem interessantes e coerentes. Mas imagina se aquele teu amigo de arquibancada assume sua homossexualidade, você o abraçaria no gol, ou acharia coerentes seus comentários?


A arquibancada reproduz o pior da sociedade também, e nesse pior vem a homofobia junto, os gritos de “viado” ou “bicha” estão em aumento de novo. O ódio por conta da sexualidade vem numa crescente e os clubes mais do que nunca precisam se posicionar em relação este assunto e não só com faixas, mas desde a base.

Proporcionar educação aos moleques da base neste sentido também, que a estrutura permita a liberdade de manifestarem sua condição e os abrace neste tema também. E que acima de qualquer coisa esteja o futebol jogado, que isto seja valorizado independente da sexualidade.

Já parou para pensar se o maior ídolo da história do seu clube fosse gay, como seria sua relação com ele? Será que você o veria da mesma forma? Vestiria a camisa dele e o defenderia diante das provocações sofridas?

Então, torcedor homofóbico, tenho uma triste notícia para você que entoa os gritos carregados de preconceitos, seu time é time de viado também, no futebol tem gays e muitos talvez nunca se assumam pois temem perder até a chance de jogar, e você sem saber já deve ter abraçado mais de um viado numa arquibancada ao gritar um gol. Na sociedade e nos gramados a diversidade continua sendo resistência.

ZICO, SONHO E ANIVERSÁRIO

por Rubens Lemos


Maracanã das antigas, Maracanã das gerais. Maracanã dos humildes. Maracanã de Waldir Amaral narrando o jogo e João Saldanha nos comentários, Maracanã abocanhando desdentados aos milhares no formigueiro humano a desembocar dos trens da Central do Brasil. Maracanã, 180 mil pagantes. São 200 mil almas, incluída a comitiva de penetras penados.

É jogo de minha melhor seleção brasileira de todos os tempos contra um timaço estrangeiro, também escalado por mim, ao meu critério, do jeito que eu quero, afinal (ainda) tenho direitos. O direito de sonhar não me custa um centavo e é a mola da minha sustentação no dia 3 de março, 66º aniversário do melhor jogador que assisti ao vivo, Zico, meu Pelé consentido.

A partida vai começar e é atemporal. É uma comemoração onde se despreza o tempo. Relógios não entram e cada jogador está na idade de sua sagração, no auge de sua melhor criatividade e forma, todos estão perfeitos em homenagem a Zico.


O Brasil do técnico Rubens Lemos Filho vem com Taffarel; Djalma Santos, Carlos Alberto Torres (é o capitão), Orlando Peçanha e Nilton Santos; Gerson e Didi; Garrincha, Pelé, Zico e Romário. Nenhum volante, ninguém sem intimidade sensual com a bola. Marcação e pegada ficaram para os idiotas do 0x0 como mantra.

Do exterior, Yashin (Rússia), no gol, o feroz alemão Vogts na lateral-direita, o inglês Bobby Moore ao lado do soberano kaiser Franz Beckenbauer. Na lateral-esquerda, para correr atrás de Garrincha, poderia escalar o enlouquecido Kutsnetsov, do baile de 1958. Prefiro me vingar do italiano Cabrini, titular e um dos arquitetos da vitória da Azzurra sobre nossa constelação de 1982. Paul Breitner ficará no banco.

No meio, deslumbrante, Cruijff vai girar o campo inteiro ao lado de Maradona (liberado ao pó) e do baixinho Kopa, francês inventivo e ainda hoje inconformado com o show das semifinais da Copa da Suécia, Didi liderando o massacre de 5×2. Kopa era o Didi deles.

No ataque dos visitantes, um louco maravilhoso, driblador e entornado de uísque. O irlândes George Best, astro das fintas homéricas e principal jogador da Europa de 1968. O argentino Di Stéfano começa de titular sabendo que sairá no segundo tempo para o português Eusébio, a Pantera Negra. O húngaro Puskas, o Major Galopante, está na esquerda.


Para apitar o confronto, escalo, em distinção ao Rio Grande do Norte, o lendário Luiz Meireles, o “Cobra Preta”, senhoria de autoridade nas refregas empoeiradas do velho Juvenal Lamartine. Cobra Preta terá tradutor simultâneo na voz do locutor Zé Ary, da TVE potiguar, para saber o que os gringos estarão dizendo uns aos outros.

João Saldanha reclama a ausência de um protetor para o meio. Está enfurecido na cabine da Rádio Globo e me chama de irresponsável. “Com Zito ou Clodoaldo, mesmo o Piazza, esse time jogaria mais solto, imagina o Kopa liberado e o Maradona partindo para cima de Carlos Alberto.”

Cobra Preta convoca os capitães e o Brasil atacará para o gol do lado direito de quem via pela televisão. O Ex-Maracanã foi assassinado e o circo de arena posto em seu lugar, destroçado.

Carlos Alberto (usando cabelo curto, como em 1970), cumprimenta Beckenbauer, entrega-lhe uma flâmula, recebe outra. O Brasil joga de uniforme sem marca, sem patrocínio e calções de cadarço, em homenagem a Gerson, a quem é dado o direito de fumar, quando quiser, durante os 90 minutos ou enquanto durar o devaneio.

O primeiro ataque é estrangeiro. Cruijff gira sobre a bola, deixa-a sozinha e escapa, atraindo Didi. Maradona domina e lança Di Stéfano. Carlos Alberto toma-lhe na categoria e entrega a Gerson que imediatamente vê Pelé em diagonal, vislumbrando Garrincha. Sai o lançamento imediato e Mané puxa Cabrini para perto da massa geraldina.

Primeiro drible. Cabrini senta. Segunda finta, Cabrini deita, terceiro toque é uma caneta. Mané balança para a esquerda e sai pela direita. Cruza, Pelé mata no peito. A bola gruda e desce redonda como as cervejas lavando peritônios pelos bares populares.

O Imponderável Crioulo ameaça o chute e engana Bobby Moore no balanço do tórax. Dialoga com Romário (só em sonho), recebe de volta e vê Zico passando livre e perseguido por um atônito Vogts. Pelé acha o Galinho que toca de leve, por cima do boné de Yashin.

Comemora abraçado a Pelé e Romário. Garrincha põe a mão na cintura e balança a cabeça, em menosprezo ao sistema defensivo adversário. Diria, depois, que o Madureira daria muito mais trabalho. Com 1×0, o Brasil não descansa.

Didi recua. Faz lançamentos longos. O Príncipe Etíope de Rancho procura Di Stéfano, que o boicotara no Real Madrid para a vingança jamais consumada na vida real. Toca a bola entre as pernas do Hermano antipático e aplica-lhe um cavalheiresco drible da vaca. O povo explode e o presidente, que é Juscelino Kubitscheck, faz saudações emocionadas, naquele sorriso oriental.

Eusébio substitui Di Stéfano e Zidane ocupa o lugar do compatriota Kopa. Best é anulado por Nilton Santos e é trocado pelo alemão Littbarski, da geração de 1982, também posto no bolso imaginário da Enciclopédia do Futebol.

Eusébio e Puskas tabelam e o canhoto da Máquina Magiar de 1954, injustamente vice-campeã, desfere o bólido, no ângulo de Taffarel. O Maracanã – o velho Maracanã – silencia no 1×1, traumatizado pela virada uruguaia em 1950.

Sou vaiado quando ponho Barbosa, o goleiro negro humilhado pelo gol de Ghighia em lugar de Taffarel. Eusébio recebe de Maradona e devolve. Maradona passa por Djalma Santos e corta Carlos Alberto e Orlando Peçanha. Chuta da marca do pênalti. Barbosa encaixa, sem rebote e arremessa ao contra-ataque.


Depois de tragar seu sexto cigarro, Gerson enfia no capricho para Romário ziguezaguear entre Vogts, Beckenbauer e Cabrini. Derrubado. Pênalti. São 44 minutos. Pelé entrega a bola a Zico. “É tua Galo. É pelo aniversário e pelo jogo contra a França em 1986”.

Yashin cresce à frente de Zico, que veste a 9 porque a 10 é do Rei. Zico põe na marca frontal, toma distância e bate no canto direito, efeito, goleiro fora da foto. Vitória de Zico, 2×1. Em sonho, direito indestrutível de quem ama o futebol bailarino.

ROBERTO E O FLAMENGO

por Hélio Alcântara


Eu gostava de ver Roberto com o uniforme branco do Vasco, em que uma faixa preta descia em diagonal do ombro até a cintura e uma cruz de malta vermelha iluminava o peito dos jogadores.

Quando o via enfrentar o Flamengo de Geraldo, Zico, Doval e depois Luizinho, na segunda metade dos anos 70, me sentia em casa nas arquibancadas do Maracanã.

Aliás, o Maraca também era meu e de milhões de outras pessoas que se vestiam de rubro-negro, de alvinegro, de tricolor e, às vezes, de apenas vermelho – hoje, o templo do futebol mundial está morto.

Roberto era o centroavante que resumia vários outros, concentrando quase todas as qualidades: alto, forte, técnico, veloz e dono de um chute potente e certeiro. Nos arremates, ele visava sempre os cantos: às vezes rasteiro, às vezes lá no alto, na forquilha, onde nenhum goleiro consegue pegar. Sua jogada mortal era vir da esquerda e entrar em diagonal, até desferir o golpe de pé direito da risca da grande área.

Eu sempre fui Flamengo por causa de minha mãe, paraibana crescida em Campina Grande que torcia pelo Treze F.C. e pelo Flamengo – ironicamente, do rubro-negro de Campina (Campinense) ela não gostava, dizia ser time de “gente metida”, nariz em pé. Mas o Flamengo ela adorava, dizia que era o único time que “prestava” e logo escancarava uma gargalhada, como se querendo ratificar um argumento incontestável.


Naqueles anos em que se formava a base do Flamengo campeão mundial, nós, rubro-negros, íamos ao Maracanã para ver os garotos que haviam subido para o profissional. O time cometia erros de juvenis, mas quando partia para o ataque era uma alegria infantil, quase sempre transformada em gol.

Do outro lado, Roberto era um igual, só que com a camisa do Vasco. Eu vivia um misto de encantamento e temor ao vê-lo arrancar em direção à área do Flamengo. Torcia por ele, pela alegria dele, por ver aquele sorriso maravilhoso estampado no rosto bonito, mas não queria sofrer a tristeza de uma derrota. E Roberto foi responsável por algumas perdas doídas do Rubro-Negro.

Pra mim, uma das mais dolorosas foi a decisão da Taça Guanabara, em junho de 76, quando eu era um dos 134 mil torcedores presentes no Maracanã.

Estávamos confiantes e felizes, pois tínhamos Jaime, Rondinelli, Júnior, Geraldo, Zico e Luizinho. O Vasco tinha Abel, Zanata, Zé Mário. E, acima de tudo, tinha Roberto.

Começou o jogo, Roberto sofreu pênalti. Olhou para Cantarelli, caminhou confiante e chutou forte, rasteiro, no canto – depois correu de braços abertos para ser acolhido pela imensa torcida vascaína. O Flamengo se equilibrou em campo, mas só conseguiu empatar na metade do 2º tempo, com o maravilhoso Geraldo – que não teve tempo de encantar o mundo.

O belíssimo gol de Geraldo nos enlouqueceu, mas depois disso nem Flamengo nem Vasco marcaram, e o jogo foi para a prorrogação. A partir daí o silêncio se impôs. Antes abraçados e confiantes (nosso time era jovem, técnico e veloz), ficamos apreensivos – então nos soltamos uns dos outros, individualizados na antevisão da dor.


O título, que em algum momento pareceu garantido, fora reivindicado por aquele que também o merecia. O Vasco tornou-se mais perigoso, e Roberto foi a tradução fiel dessa ameaça. A prorrogação terminou sem que ninguém marcasse e, depois, nos pênaltis, o centroavante brilhou de novo.

Quando Zico e Geraldo, nossos maiores craques, perderam os dois pênaltis, entendi que o Vasco seria campeão.

Deixei o Maracanã abatido com a perda da Taça Guanabara. Fui embora triste, embora soubesse e admitisse, lá no fundo, que Roberto também merecia o título. Ele havia sido muito mais convincente, parecia querer ser campeão mais do que todos os outros.

Várias vezes em minha adolescência desejei que Roberto jogasse pelo Flamengo, ao lado de Zico. Tempos depois compreendi que se isso acontecesse eu não teria visto nem Doval nem Luizinho nem o deslumbrante Cláudio Adão com a camisa do Mengão. E, além de tudo, não teria vivido toda aquela beleza que durou de 76 a 81, quando caminhava livremente e feliz pelas madrugadas da cidade mais linda do planeta Terra, ventando minha camisa rubro-negra suada, sem nenhuma marca, a não ser o número e o CRF bordado do meu Flamengo.

Roberto provocou dores em minha adolescência e primeira juventude. Mas também me ofereceu a compreensão de que viver o futebol significava muito mais do que ganhar, perder, chorar, sorrir. E mostrou que a beleza da vida estava justamente nessa festa de matizes, sentimentos e cores que nos alimentam até o final dos nossos dias e noites.

Na quarta passada, quando ele nos atendia para o projeto “Ponte Aérea F.C.” (série documental sobre os confrontos Rio-São Paulo) e respondia a uma pergunta sobre a infância doída dele, eu o vi chorar por dentro. E, na sequência, ao afirmar que só tinha de agradecer ao Vasco e ao futebol por tudo o que conseguira ao longo da vida, o vi novamente de braços levantados no ar, correndo na direção de “geraldinos” e “arquibaldos”, como se um não existisse sem a alegria do outro.

Meu peito se encheu de amor por ele e quis abraçá-lo, mas me contive – afinal, esse sentimento é só meu, só dele e de todos os Flamengo x Vasco de que participou.

O ÚNICO BLOCO DAS PIRANHAS PERDIDO

por Zé Roberto Padilha


Desde que Moisés, o zagueiro Xerife, então jogador do Vasco, com a ajuda de alguns companheiros, entre eles o Alcir e meio time do Olaria, saíram num sábado de carnaval vestidos de mulher pelas ruas de Madureira, que o Bloco das Piranhas entrou de vez na vida de cada um de nós, boleiros. Tanto tempo depois, ainda saímos de Piranhas, como ontem, irrecuperáveis, irreverentes e festeiras. Desde este episódio, ocorrido no começo da década de 70, só deixei de sair no bloco uma vez. Em 1975. Pois justo no sábado de carnaval deste ano, Francisco Horta, nosso presidente, resolveu marcar um jogo no horário de sua saída. E logo no Maracanã, contra o Corinthians. Motivo? Apresentar Roberto Rivelino, um tricampeão que nem um torcedor da fiel queria mais.

No banco de reservas, Piranhas antes da partida contrariadas, que desfilavam pelos gramados do Estádio Hercílio Luz, Brinco de Ouro da Princesa e Ressacada, que concentravam no Hotel das Paineiras, faziam excursões em vôos rasteiros, assistiram, estupefatas, um desfile dos sonhos sonhados. Talvez nem Joãozinho Trinta apresentasse, à nossa frente, algo tão bonito parecido. Porque ele, Roberto Rivelino, meteu três gols na goleada de 4×1 e na Comissão de Frente veio o título carioca. Um carro alegórico exibia, a seguir, nossa nova concentração, um Hotel Nacional 5 estrelas novinho em folha de frente para o mar. E uma ala, com as asas azuis, vermelhas e brancas da Air France, mostrava nossa delegação partindo, de Jumbo, para o Torneio de Paris. No Paris St. Germain, o organizador da festa no Parc des Princes, vestindo o estandarte 10 como convidado, Johan Cruyff, o maior jogador em atividade no mundo, contracenava em uma ala verdinha com ele, Rivelino, Mário Sérgio, Marco Antonio, Edinho, Zé Mario, Gil….. e Paulo César Caju.


A partir daí, Piranhas comedoras de sardinhas, como eu, se espalharam pelos clubes, do país e da Europa, com direito a ter bacalhau com vinho do Porto à mesa. Perdemos um desfile, mas nenhuma piranha daquelas, entre elas o Cléber, Zé Maria, Carlos Alberto Pintinho, Abel, Érivelto, Rubens Galaxe e Nielsen Elias, se esqueceu daquele sábado em que perdemos um desfile. E passamos a conhecer e ser respeitado melhor pelo mundo da bola.

O PRIMEIRO DA “DINASTIA ESQUERDINHA” FARIA 95 ANOS

por André Felipe de Lima


Antes de chamarem o canhoto William Kepler de “Esquerdinha”, chamavam-no “Pequenino”. O apelido que o consagraria anos mais tarde no Flamengo nascera, porém, quando, em uma pelada do time do Morrinho contra o da rua Pereira, no subúrbio carioca, o “Pequenino” foi deslocado para a ponta-esquerda. Começou a marcar muitos gols com a potente canhota e o batismo definitivo tornou-se inevitável: nascera o “Esquerdinha”, que se tornaria, anos depois, um dos melhores ponteiros-esquerdos da história do Flamengo. Foi a partir dele que muitos “Esquerdinhas” despontaram com o mesmo apelido Brasil afora.

Hoje, no mesmo dia em que o Rio de Janeiro completa 453 anos, Esquerdinha faria 95. Saudade do grande craque, com quem tive o imenso prazer de entrevistar em 2011. Talvez a última entrevista concedida pelo grande ponta-esquerda dos anos de 1950.

Esquerdinha ingressou no futebol em 1941, nos juvenis do Madureira. Em 1946, tornara-se profissional. Foi craque da bola e do jornalismo. Durante a célebre excursão do Flamengo à Europa em 1951, escreveu crônicas para o já extinto Diário Carioca. Tornou-se um bom escriba de imprensa e passou a assinar artigos para vários jornais durante alguns anos. Suas crônicas eram sempre muito requisitadas.

Com a bola nos pés, o craque tinha um chute forte, verdadeiro petardo. Mas não era muito bom em cobranças de pênaltis. Chegou a perder dois em um só jogo. Se marcou gols aos montes também perdeu muitos outros. Se a pontaria fosse quase 100%, Esquerdinha estaria, no mínimo, entre os quatro maiores goleadores da história do Flamengo.

Primeiro filho do casal Raimundo Santa Rosa e Terezina da Costa Santa Rosa, Esquerdinha nasceu em Belém, no Pará, no dia 1º de março de 1924, e recebeu o nome de William Kepler. Seu irmão Walter Kepler nasceria no ano seguinte, no dia 22 de fevereiro.


O pai de Esquerdinha decidira mudar-se com a esposa e os dois filhos para Nova Iorque. Seguiu viagem antes de levar a família para tratar de documentação, moradia e trabalho, o que garantiria mais segurança a todos. Certa noite, antes de retornar para a casa recém-adquirida, Raimundo decidiu parar em um bar acompanhado de um amigo. Ladrões renderam os clientes e exigiram o dinheiro de todos. Raimundo, ao colocar a mão no bolso de trás de calça para pegar a carteira com o dinheiro e entregá-la aos assaltantes, levou um tiro no peito que atingiu o coração, matando-o em seguida. Terezina, após saber da trágica morte do marido, embarcou com os filhos para Nova Jersey onde seus pais já moravam. O bandido foi preso e condenado à cadeira elétrica.

Passara o tempo e Terezina casou-se, lá mesmo nos Estados Unidos, com o brasileiro Antônio Jerônimo da Silva. Ficaram por lá até 1930, quando todos retornariam a Belém. Do novo casamento da mãe de Esquerdinha nasceram Amélia e Wilson. Permaneceriam poucos meses na capital paraense e toda a família trocaria os Estados Unidos, no mesmo ano, pelo Rio de Janeiro, mais precisamente pelo bairro do Santo Cristo, no centro da cidade, no qual ficariam pouco tempo, mudando-se todos para o suburbano bairro de Oswaldo Cruz, na Travessa Blandina, nº33.

Esquerdinha não gostava de jogos de azar, tampouco de carteado; não bebia e nem fumava. Apesar de torcedor do Flamengo, nunca escondera gostar do São Paulo. Confessou isso aos mais próximos e em poucas entrevistas. Ao contrário da maioria dos jogadores de sua época, gostava das concentrações antes dos jogos. Seu treinador preferido foi Gentil Cardoso e o melhor jogador que vira jogar, Zizinho. Seu melhor amigo foi o centroavante Índio. Ambos eram compadres. Uma amizade que perdurou até o fim da vida. Aliás, neste dia 1º de março, Índio também faz anos. Foi um dos grandes atacantes do Flamengo nos anos de 1950. Ele e Esquerdinha eram infernais pelo lado esquerdo.

O ponta canhoto dizia que as maiores alegrias na carreira foram as vitórias contra o Arsenal, o Rapid Viena e o Malmoe, em 1949, e a vitoriosa excursão do Flamengo à Europa, em 1951, quando o Flamengo venceu os 10 jogos que disputara. O maior desgosto, ainda no começo da carreira, foi ter sido vetado pelo treinador Picabea para uma excursão do Madureira ao Pará, terra natal do Esquerdinha, o que só aconteceria com o Flamengo, anos depois.

Esquerdinha permaneceu 15 dias fora do time para curtir a lua de mel e, quando voltou, seu posto na ponta-esquerda estava ocupado por um rapaz que acabara de chegar do América. Treinou até no carnaval e logo retomaria a vaga. Mas, nos dois anos seguintes, o grande ponta-esquerda começava a abrir espaço para o mesmo rapaz que chegara à Gávea tempos atrás vindo do Alvirrubro. Um jogador que entraria para a história do clube e do futebol mundial. Um jovem que se chama Zagallo.