OS ‘IRMÃOS’ LEÔNIDAS E FRIEDENREICH, FILHOS DA GENIALIDADE
por André Felipe de Lima
Leônidas da Silva. Somente isso bastaria exprimir com denodo e convicção para enfatizar a importância dele na história do futebol. Bastaria apenas o seu nome e o sobrenome. Nada mais. E temos aí Leônidas, o gênio, o “Diamante Negro”, o artilheiro da Copa do Mundo de 1938, o melhor do mundo. Sem bula, apenas originário de uma receita empírica — com justas e reconhecidas raízes indígenas e africanas que nos moldam. Uma receita do que de melhor criamos com uma bola nos pés.
Quando a era do amadorismo acabou nos gramados brasileiros, em 1933, Friedenreich, que — em um dia 6 de setembro nos deixou órfãos há 50 anos — abandonava tudo, e o torcedor temia o futuro sem o ídolo maior. Deixaríamos de entender de futebol. Imaginava-se.
Friedenreich não queria dinheiro para jogar bola, e todos queriam Friedenreich, menos ele, que parecia não desejar mais a si mesmo ou a sua história, deixando-a apenas em um livro de memórias escrito com o amigo Paulo Varzea. Mas era a hora de passar o bastão, ou melhor, as chuteiras, e El Tigre entregou o par delas ao Leônidas, que, no ano seguinte ao alvorecer do profissionalismo, formou com Russinho, Fausto e Domingos da Guia um dos melhores times da história do Vasco, e Leônidas foi campeão do Rio com ele. Isso quatro anos antes de ficar mundialmente famoso na Copa realizada pelos franceses e de brilhar intensamente no Flamengo, clube que certamente amava, apesar de confesso tricolor desde a meninice. O Flamengo era Leônidas. Leônidas era o Flamengo. A simbiose inevitável e gloriosa que atravessou décadas de forma inabalável.
Hoje em dia, meninos podem ignorar a história, mas não o Leônidas da Silva, e vão os garotos idealizar seus times dos sonhos. O que escalam no ataque não pode ser diferente. Ele tem de ter Zizinho, Dida e Zico. Os quatro, sem dúvida e insofismavelmente, gigantes. E Leônidas foi ser também o “rei da bicicleta” no São Paulo, onde o aguardavam o extraordinário argentino Sastre, o arisco ponta Luizinho e o monumental Bauer. Um São Paulo que El Tigre ajudou a construir; um São Paulo do Leônidas, que herdou de Friedenreich mais que o futebol. Herdou uma coroa do mais valioso ouro, que jamais deixará de brilhar e que não tem preço.
Quando um comemorava mais um aniversário, em 1969, o outro partia. Ambos, inegavelmente, falaram o mesmo idioma: o dos gênios. Confesso aqui, leitores, o sonho que tive esta noite. Perdia uma bolsa de couro na qual havia livros. Livros de futebol. Foi um pesadelo, mas acordei feliz porque, ainda no sonho, encontrei a bolsa com os livros. Levantei-me imediatamente, fui à minha estante e percebi que lado a lado estão duas biografias de Friedenreich (assinadas por Alexandre da Costa e Luiz Carlos Duarte) e a do Leônidas da Silva (escrita pelo André Riberio).
Poderia retornar à cama e dormir mais um pouco. Não. Sentei-me aqui, agora, neste instante prostrado em reverências que considero sublimes quando escrevo sobre futebol, para saudar os dois ídolos e manter vivo meu sonho de sempre reencontrá-los. Deixe-me, por favor, sonhar sempre com os nossos gigantes do futebol brasileiro. Sinto-me, assim, um ser humano melhor.
A DUPLA RO RO
por Luis Filipe Chateaubriand
Desde que debutou para o futebol profissional, começando a explodir redes adversárias, em 1971, Roberto Dinamite contou com brilhantes parceiros de ataque, com quem articulou jogadas memoráveis e inesquecíveis.
Gente como Tostão, Dé Aranha, Ramon, Paulinho Piracicaba, Paulo Cesar Caju, Cesar, Silvinho, Cláudio Adão, Elói, Arthurzinho.
Mas, em 1985, chegaria aquele companheiro de ataque que seria o melhor que o Bob teria em toda sua trajetória no Vasco da Gama… um tal de Romário de Souza Faria!
Inteligentíssimo e extremamente técnico, Romário também era dono de uma velocidade impressionante.
Dentro da área, se posicionava de uma maneira que estava sempre apto para concluir em gol. Fora dela, arrancava como uma Ferrari em direção ao gol, quando acionado.
Como dizia a o recém falecido Juarez Soares, “há atacantes que chegam frente ao gol e este parece diminuir, a frieza de Romário, contudo, faz com que este pareça aumentar”.
Sabia das coisas, o China…
Roberto Dinamite, percebendo o incomensurável potencial do novato, teve atitude extremamente inteligente: passou a jogar mais recuado, atraindo a marcação adversário, metendo passes preciosos, bolas açucaradas, para o garoto fazer pilhas de gols.
Como o próprio Dinamite diz, “a cada três bolas que eu metia para o Romário, duas ele guardava no fundo do gol”.
Mas, às vezes, Bob ainda chegava na frente para fazer os seus gols, além das magníficas cobranças de faltas e de pênaltis.
Em São Januário, quem é rei não perde a majestade.
E assim, Roberto Dinamite e Romário, a dupla Ro Ro, constituíram uma das melhores passagens que o centenário Vasco da Gama presenteou o futebol mundial. Os fãs do futebol bem jogado agradecem!
Luis Filipe Chateaubriand acompanha o futebol há 40 anos e é autor da obra “O Calendário dos 256 Principais Clubes do Futebol Brasileiro”. Email: luisfilipechateaubriand@gmail.com.
ANDRADA, ‘EL GATO’
por André Felipe de Lima
Ser lembrado como um dos melhores goleiros da história do Vasco bastaria ao argentino Andrada. Mas a maioria daqueles que acompanham a história do futebol lembra-se dele como o arqueiro que sofreu o milésimo gol de Pelé, no dia 19 de novembro de 1969, no Maracanã, em uma partida, apenas para cumprir tabela, entre Vasco e Santos, que valeu pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, também chamado de Taça de Prata. Andrada sempre se queixou, em diversas entrevistas, de que “desse rótulo, nunca mais se livraria”. Em entrevista à revista Placar, Pelé recordou um dos lances mais citados da história do futebol mundial:
“Dei uma paradinha, e o Andrada, goleiro argentino do Vasco, permaneceu imóvel. Bati forte, ela foi a meia altura, no canto esquerdo. Era o gol mil. Quando passei pelo Andrade, nem vi que ele esmurrava o chão, de raiva. O engraçado é que, no mundo todo, havia goleiros que dariam tudo para estar no lugar dele, para entrar para a história. E ele próprio detestou seu destino. Mais tarde, um jornalista uruguaio me disse que o Andrada, com o tempo, passou a aceitar o fato, e agora encara até com orgulho sua posição de goleiro do milésimo gol. Não é para menos, durante toda a partida, o Andrada fechou o gol, fez uma senhora exibição.”
Em 1999, o programa “Fantástico”, da TV Globo, exibiu reportagem em que Andrada e Pelé reviveram o lance. O arqueiro saltou no mesmo canto, como em 1969, mas desta vez defendeu o chute do “Rei”. Em 1971 houve uma campanha entre jornalistas para que o gringo se naturalizasse brasileiro. Vê-lo no escrete canarinho era o sonho de parte da imprensa esportiva.
Andrada foi um goleiro com extraordinário senso de colocação e reflexos muito apurados. A rápida e precisa reposição de bola também era um de seus fortes. Sua estreia foi contra o Flamengo. O goleiro mal descera do avião, partiu do aeroporto diretamente para o Maracanã. Tim, a velha raposa do futebol brasileiro e treinador do Vasco, encantou-se pelo argentino.
Com a camisa do Vasco, conquistou o campeonato carioca de 1970 [ficou de fora apenas da final por conta de uma contusão] e o “brasileiro” de 1974, ao lado do então jovem goleador Roberto Dinamite e do ponta-direita Jorginho Carvoeiro, autor do gol do primeiro título nacional cruzmaltino.
Mas a relação de Andrada com o Vasco nem sempre correu às mil maravilhas.
Antes mesmo da Copa do Mundo de 1970, o goleiro até esboçou uma tentativa para naturalizar-se brasileiro e, assim, poder lutar por uma vaga na seleção brasileira. Contava até com o apoio do filho do então ministro Mário Andreazza, torcedor do Vasco, de quem Andrada era amigo. “Procurei o capitão Bonetti, então supervisor do Vasco. Estava de olho na Seleção. Mas naquela época eu ainda não tinha tempo suficiente para entrar com o pedido. Meu sonho foi pro brejo.”
Mas Andrada estava chateado com a diretoria. Nunca com a torcida, esta o amava. Como castigo pela birra com os cartolas, deixaram-no na reserva, nos primeiros meses de 1971. A imprensa saiu em sua defesa, escrevendo que Andrada era ídolo da torcida e melhor arqueiro da cidade. Mas nenhum discurso a seu favor fazia o pessoal do Vasco mudar de ideia. As alegações para afastá-lo do time titular eram muitas: de simular contusão e fazer “corpo mole” para deixar o clube talvez tenha sido a acusação que mais incomodara o gringo. “Enganam-se os que pensam que eu queria deixar o Vasco. Se depender de mim, encerro aqui minha carreira. Eu queria mesmo é largar tudo. Detesto maldade.”
A indignação começara em agosto de 1970 quando especularam [principalmente o cartola Daniel Marques], em São Januário, que Andrada seria trocado por Cejas, o também goleiro argentino.
O que mais irritava Andrada é que o Vasco, que pagou 330 mil cruzeiros ao Rosário Central pelo seu passe, deveria fazer dois amistosos na Argentina. Essa parte do acordo, o Vasco resistia em cumprir sabe-se lá por qual motivo. O clube que revelou Andrada o queria de volta. O Vasco não deu bola para a chiadeira dos gringos e Andrada permaneceu no clube.
Os cartolas e médicos foram injustos com Andrada, que sempre ao ser liberado para os treinos, entrava em campo e sentia a perna doer. Essa ladainha durou algum tempo até que os médicos decidiram fazer novas radiografias da perna de Andrada. Ao ampliarem a imagem, constaram que a perna de Andrada apresentava uma pequena fissura no perônio, o verdadeiro motivo que fazia goleiro desistir de treinar. As dores eram insuportáveis.
Mas Andrada, que chegou a cursar até o segundo ano da faculdade de Arquitetura, não tinha o que reclamar da vida e tampouco das intempéries com os cartolas. Com o vantajoso contrato com os vascaínos, comprou casa e até uma indústria em Rosário, e, após uma longa trajetória no Vasco, e já com 34 anos, enfim o governo brasileiro lhe garantiu a cidadania, em 1973.
Filho de um pintor de ferrovia, o ex-goleiro Edgardo Norberto Andrada, “El Gato”, como os argentinos o chamavam, nasceu no dia 2 de janeiro de 1939, em Rosário, na Argentina. Ainda jovem, em sua cidade natal, trabalhou até em carpintaria, mas sempre alimentando o sonho de um dia brilhar como goleiro ou jogador de basquete. Um dia pressionaram-lhe para que optasse por um dos dois esportes. Escolheu o futebol por pressão, sempre alegara.
Andrada começou a carreira em 1960, no Rosário Central, e atuou pelo Vasco de 1969 a 1975, ano em que protagonizou curiosa história. Talvez o motivo para deixar o clube carioca. No dia 28 de agosto de 1975, o goleiro fugiu do Hospital São Zacarias, onde estava internado há 16 dias, para recuperar-se de uma cervicalgia — dor da coluna cervical —, que o incomodava desde o período em que o Vasco disputara a Taça Libertadores da América, no primeiro semestre.
Andrada quebrou o pau com o médico do Vasco, Diomedes Guimarães. Deixou o hospital, sem dar uma explicação convincente, e internou-se na Casa de Saúde São Sebastião. A justificativa do goleiro era de que os médicos “não se entendiam” e que a cada dia prescreviam um tratamento “diferente”. Diomedes, que era respeitado por todos no Vasco, alegou, porém, que a contusão de não era grave, como se queixava Andrada. Para o médico, o goleiro, após tirar o aparelho que imobilizava seu pescoço, simulara uma dor que deveras não existia. “Um grande farsante”, resumiu Diomedes.
O imbróglio pesou na saída de Andrada do Vasco. Sem ambiente no clube, encontrou refúgio no Vitória, da Bahia. Em Salvador jogou apenas um ano. Regressou ao país de origem para defender, em 1976, o Colón. Por lá ficou de 1977 a 1982. Participou da seleção argentina que disputou a Copa América de 1963 e teve como ídolo Amadeo Carrizo, o grande goleiro do River Plate, nos anos de 1950 e 60.
No período em que esteve no Rosário Central, Andrada protagonizou lances inesquecíveis. Alguns, pode-se dizer, beirando o nonsense. “O jogo foi no campo de San Martin, de Mendoza. Estava 0 x 0. O San Martin era uma espécie de Olaria daqui [na Argentina], com alçapão e tudo, onde os grandes da Argentina quase sempre perdiam pontos. No primeiro tempo um atacante passou pelo beque. Como única alternativa me joguei nos seus pés, mas não adiantou. Com tranquilidade, ele desviou a bola para o gol. Já estava batido, no chão, quando um menino invadiu o campo e praticou a defesa por mim e fugiu com a bola. O juiz, como manda a regra, mandou vir outra bola e de bola ao chão. Para mim, na minha consciência, levei o gol. O caso teve uma repercussão danada e foi manchete em todos os jornais do mundo.”
No Vasco, Andrada brilhou e conquistou importantes títulos, o que não conseguiu com o Rosário, que seria campeão argentino em 1971 e 1973, período em que Andrada estava no futebol brasileiro.
Com a camisa da cruz de malta, o argentino vivenciou um momento sensacional durante um jogo contra o América, do cracaço Edu, irmão do Zico e que para muitos jogavas mais que o Galinho.
Em um lance dentro da pequena área vascaína, o juiz apitou pênalti. Edu cobrou o primeiro, mas Andrada defendeu. O árbitro mandou bater de novo, alegando que o goleiro dera três passos a frente. Edu bateu de novo e novamente Andrada defendeu. Com indisfarçável má vontade com o arqueiro, o árbitro mandou que Edu cobrasse pela terceira vez. Andrada engoliu seco para não partir para cima do juiz. “Terceira cobrança e fui lá e busquei. Não houve quem dissesse que eu tinha me mexido antes. Francamente, se fosse em cinquenta cobranças, cinquenta vezes faria a mesma coisa. É a única chance que a gente tem.”
Os derradeiros momentos no modesto Colón foram de glória. A estada de Andrada no clube alvoroçou os moradores da cidade de Santa Fé, a 537 km de Buenos Aires. Nem mesmo o mítico boxeador Carlos Monzón e o piloto de F1 Carlos Reutemann, filhos diletos de Santa Fé, empolgavam tanto a população local quanto o goleiro.
Ao repórter Manoel Epelbaum disse: “Saí do Brasil forçado por problemas familiares. Você sabe que meus pais estão idosos, com saúde abalada. Foi aí que pensei: meu ciclo no futebol brasileiro se encerrou. Procurei os dirigentes do Vitória e comuniquei-lhes que estava disposto a parar. Isso aconteceu em novembro de 76. Eu ia parar, mesmo. Aí, em fevereiro de 77, faltando três dias para encerrar o registro de jogadores, na Argentina, eu estava no Rio, tentando vender meu apartamento no Leme. Recebi um telefonema do pessoal do Colón, pedindo que eu voltasse urgentemente para a Argentina. Foi isso. Em dois meses, estava no meu peso normal, pronto para jogar. E a torcida me prestigiou, acreditou em mim, isso me deu muita força […] Honestamente, nada tenho contra ninguém do Brasil, pelo contrário. Lá, consegui minha independência econômica […] No Vasco, fui tratado sempre como se fosse membro da família. A única pessoa de quem poderia ter queixas é do médico Diomedes Guimarães. Pelo fato de não ter aceito uma clínica indicada por ele — e se não saio de lá, poderia estar aleijado —, nos incompatibilizamos. Procurei outra clínica, me internei por conta própria e só por isso continuo jogando futebol, pois meu problema na coluna era mais grave do que suspeitava. Agradeço ao dirigente João Silva, que me reembolsou pelas despesas que fiz na clínica e que, além disso, me tratou como se eu fosse um filho.”
Andrada era paparicado pelos torcedores do Colón, mas já não tinha a mesma disposição para jogar como nos anos em que defendeu o Vasco. As viagens que fazia com o time para jogos dos campeonatos Nacional e Metropolitano era todas realizadas de ônibus. Rodava, em média, mil quilômetros por semana.
Depois que deixou o Colón, Andrada ainda defendeu o pequeno Renato Cesarini, de Rosário. Ali, tratou de pendurar as chuteiras. Voltou ao Rio de Janeiro e chegou a comandar uma escolinha de futebol, em parceria com o técnico Jair Pereira. Regressou, porém, a Rosário.
Em 1988, Andrada, que muito conquistara no futebol brasileiro, mantinha como patrimônio uma banca de jornais e revistas no centro de Rosário. Como não conseguia ficar longe do futebol, assumiu a presidência da Fundación Santafesina de Deportes, com o intuito de difundir a prática de esportes no local.
Anos mais tarde, o Rosário Central acolheu-o. Lá, Andrada trabalhou nas divisões de base do clube que o revelou. Doente, quase sem enxergar e muito abatido, foi afastado do clube no final de 2011 por conta de denúncias de que fora agente do serviço de inteligência da ditadura argentina, no começo dos anos de 1980.
“El Gato” foi levado à Justiça após ser acusado pelo ex-agente repressor Eduardo Constanzo de participar do sequestro de militantes contrários ao regime, entre os quais os peronistas Osvaldo Cambiaso e Eduardo Pereyra Rossi, cujo desaparecimento em 14 de maio de 1983, em um bar do centro de Rosário — como confirma Cosntanzo —, vem sendo investigado pelo juiz Carlos Villafuerte Ruzo. Ao jornal Clarin, Andrada declarou-se inocente, confirmou que participara do Exército e jogava bola, mas que nunca se envolveu em qualquer ato repressor. “Já chega. Não quero falar mais sobre isto. É tudo uma invenção”. Os corpos de Cambiaso e Pereira Rossi foram encontrados dias após o sequestro em Zárate.
Quando a democracia foi restaurada na Argentina, em 1983, Andrada, que encerrara a carreira, um ano antes, no Renato Cesarini, estava vinculado ao vice-governador de Santa Fé, Antonio Vanrell, reconhecidamente torcedor do Rosário Central. Ocupava um cargo de assessor desportivo na província.
Durante alguns anos eram cada vez mais frequentes rumores sobre a participação de Andrada na repressão militar argentina. Em 1997, outra denúncia, porém anônima, foi instaurada contra ele. O documento, que também o acusa de envolvimento no sequestro e na morte dos dois militantes, está em poder das Avós da Praça de Maio, movimento de mães e avós cujos filhos e netos foram mortos pela ditadura militar argentina, cujo tenebroso saldo é de 30 mil mortos e desaparecidos, entre 1976 e 1983. Andrada seria, segundo a acusação, um agente C-3 da Inteligência do Exército, onde ingressara em 9 de novembro de 1981, a dois anos, portanto, de encerrar a carreira, e usava o pseudônimo de “Eduardo Néstor Antelo”, como aponta o processo em trâmite na Justiça argentina.
Ex-companheiros dos tempos de Rosário, como Aldo Pedro Poy e Otto Sesana, mostraram-se estupefatos com as denúncias: “El Gato en la represión de la dictadura? No lo puedo creer”, disse Sesana. Para Aldo Poy, simplesmente inacreditável: “La verdad que me sorprende mucho todo esto.”
Andrada voltaria ao universo do futebol em 2007, como preparador de goleiros do Rosário Central. Anos depois, em 2012, o juiz Carlos Villafuerte Ruzo considerou-o inocente, reconhecendo que as provas contra Andrada eram inconsistentes. Em juízo, o goleiro afirmou que, por ser uma pessoa muito conhecida na época em que os dois ativistas de esquerda foram sequestrados, seria facilmente reconhecido pelos frequentadores do bar onde o fato ocorreu. Mas a Promotoria decidiu recorrer à Câmara Federal de Rosário. Em frente à casa de Andrada, manifestantes escreveram no asfalto palavras ofensivas contra o ex-goleiro e colaram cartazes em postes.
Até a noite de 4 de setembro de 2019, as denúncias não foram comprovadas. Andrada morreu ontem bastante doente e com uma incômoda dúvida rondando sua história. Pena.
DE FRAQUE E CARTOLA
por Rubens Lemos
Sou obrigado a contar nesta delonga que os meninos atuais viram bem menos do que assisti em campo e hoje falam com aspectos arrogantes. O futebol é a minha base de analogia. Comparo-o a qualquer assunto e termino modestamente com alguma razão. Na vida, como no futebol, quem prefere se defender ou se esconder, perde por omissão, medo ou covardia. Quem tem coragem de lutar, é como um time jogando no ataque, driblando para frente, alegrando a plateia.
Tenho dó dos meninos com direito à TV paga que não se assemelham aos pobres frequentadores de circos interioranos, cobertos com lonas de quinta categoria. Os pequenos do campo, do mato, das agruras e do pão contado têm no circo a alegria bem mais autêntica do que o discurso teórico de algumas décadas passadas, quando, entre queijos e vinhos, sem riscos de delação ou tortura, falsos profetas discursavam para ouvidos imbecilizados.
Recitavam Neruda, bebiam bons vinhos e sentenciavam: o povo brasileiro gosta de pão e circo. E olhavam para os interlocutores, todos embevecidos pela falta de opção melhor. A retórica dos catedráticos punha o circo como guarda-chuva de todas as culturas consideradas inúteis por eles, os sábios que, ao passar dos anos, se transformariam em sabidos, no sentido sem graça da esperteza.
O circo dos intelectuais de festa impunha o futebol como ópio das classes dominadas. Esse tipo de arrogante continua achando assim. Com todas as minhas limitações pretéritas , nada é mais cultural do que o futebol, na sua prática que envolve a dança, a literatura expressada por nomes menos pedantes: Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, João Máximo, João Saldanha, Luís Fernando Veríssimo, José Lins do Rêgo.
O futebol era uma festa primordial de massa. Os gurus que tomavam vinho e teorizavam o que outros sentiam na pele e na prática perderam seu manifesto verbal e pedante: o futebol acabou para os humildes.
Nos ingressos a preços absurdos, em clubes proibitivos e na substituição do amor dos torcedores de verdade, pela baba elástica e odienta dos mentecaptos violentos que escolheram um time para destilar suas frustrações de placenta. Palavra de antiquado. De uma alma de fraque e cartola.
PENSATA BOLEIRA
por André Felipe de Lima
O Flamengo tem o melhor time do país. Isso, ninguém em sã consciência discute. Nem mesmo lorpas ou pascácios, como diria Nelson Rodrigues. Mas não se pode comparar — e isso é sacrilégio — o time atual rubro-negro com a extraordinária máquina preta e vermelha de jogar bola do começo dos anos de 1980. Isso não pode.
A estrela Bruno Henrique, o melhor que o Flamengo tem atualmente, jamais será um sopro momentâneo do que foi Zico. Arrascaeta está anos luz de um Adílio ou Tita e Gabriel precisa comer um pouco mais de feijão com arroz para se igualar ao outrora cabeludo Nunes. Legal, o Filipe Luis é melhor que o Junior. Falem sério.
Outro fato a considerarmos: A “turma” — e aí recorro ao pertinaz jargão turfístico — do atual Flamengo é “fraca”. O “páreo” é “mole” demais para o clube da Gávea papar o campeonato brasileiro e a Libertadores. O que há no Brasil? O inconstante Santos? O Palmeiras em franca decadência? Talvez apenas o Grêmio possa ser a “pedra no sapato”, mesmo assim somente na Libertadores, porque os tricolores gaúchos desistiram do nacional.
Não incluo na lista das possíveis conquistas de fim de ano do Flamengo o Mundial Interclubes por um simples motivo:o Liverpool de hoje, embora (por incrível que pareça) não seja tão forte como o de 1981, que Zico e Cia. despacharam em Tóquio, é fortíssimo. Mas em futebol, sabemos, tudo pode acontecer, e como diz meu amigo Mário Moreira, o que vale é “bola na rede”.
No mais, a torcida do Flamengo leva a sério o velho lema “deixou chegar…”. Realmente, os caras estão “chegando”, mas (cuidado!) não caíam na esparrela ao comparar 2019 com 1981, e como canta o contumaz rubro-negro Jorge Ben Jor: “Olha aí meu bem / Prudência e dinheiro no bolso / Canja de galinha / Não faz mal a ninguém/ Cuidado pra não cair da bicicleta, cuidado pra não esquecer o guarda chuva”.