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NARRANDO O GOL DO INIMIGO


Charge: Eklisleno Ximenes

Final dos anos 50. De férias em Ubá, sua terra natal, Ari Barroso é apresentado a um jovem locutor esportivo de uma cidade vizinha, do qual falavam maravilhas.

Ari, com a experiência de tantos anos, logo se impressionou com a postura e a voz do locutor, que parecia realmente ser muito bom. Resolveu, então, testá-lo,  visando um possível aproveitamento na Rádio Tupi, na qual era uma das estrelas da narração esportiva.

Dias depois, o recebe no Rio, na sede da emissora. Querendo ver a desenvoltura da jovem promessa, pede que ele narre, de improviso, três lances de um hipotético jogo de futebol.

Enquanto o locutor ficou dentro da cabine, Ari permaneceu do lado de fora, fazendo sinais de positivo ou negativo através da divisória de vidros, muito comum nas emissoras de rádio. 

Assim, o narrador descreveu o primeiro lance, de um fictício jogo entre Flamengo x Botafogo:

Avança o Flamengo com o ponteiro Joel pela direita… É barrado por Nilton Santos. 

A enciclopédia do futebol toca com elegância para Didi no meio de campo…

Didi passa a bola entre as pernas de Moacyr e toca para Garrincha na ponta…  

Mané ginga para um lado e pro outro, finta Jordan, invade pela direita, passa por  Jadir e cruza para a área…  Quarentinha emenda de primeira:

 GOOOOOOOOL do Botafogo!   Qua…ren… ti… nha!

Botafogo, um! Flamengo, zero!

Ari faz sinal de positivo, e sem muita euforia manda narrar o segundo lance. E o narrador continua, agora mais vibrante ainda:

Desce novamente o Botafogo para o ataque… 

Zagalo recebe pela esquerda e toca pra Didi… O Príncipe Etíope se livra da marcação e lança para Paulo Valentim. O avante alvinegro passa por Pavão e abre para Garrincha…

O demônio da pernas tortas passa espetacularmente por Jordan… Dequinha vem na cobertura e também é fintado…

Garrincha cruza… Quarentinha entra de bicicleta:

GOOOOOOOOL do Botafogo:    Qua…ren…ti…nha!

Botafogo,  dois! … Flamengo,  zero!   

A torcida Botafoguense delira. Show de bola no Maracanã! 

E, empolgado, começou logo a narrar o terceiro lance: 

Ataca o Botafogo novamente com Garrincha…

Neste instante, Ari Barroso, furibundo, invade a cabine e interrompe o teste:

–  Meu filho! Afinal de contas, você veio aqui para fazer teste ou para me gozar? 

– Vai radiar jogo do “arranca  tôco”,  lá na sua cidade! 

O promissor locutor, que não sabia da paixão do homem da gaita pelo Flamengo, acabou reprovado no teste.

O ALEMÃO BOM DE BOLA

por Luis Filipe Chateaubriand


Quando penso em um jogador de futebol alemão que jogava demais, penso em Karl Heinz Rummenigge.

Uma característica de seu futebol era a altíssima técnica. Executava todos os fundamentos do futebol com perfeição. Isso, sempre, com absoluta inteligência. 

Outra característica do craque era a frieza impressionante. Nos momentos mais difíceis, conseguia manter-se forte, confiante, altivo. 

Outra característica era a força física, o que fazia do craque alguém que costumava levar vantagem nas divididas contra jogadores adversários. 

Fez uma grande carreira, seja no Bayern de Munique, seja na Internazionale de Milão, seja, ainda, na Seleção Alemã. 

Lembro, claramente, da final Argentina x Alemanha, na Copa do Mundo de 1986, no México. Machucado e longe das melhores condições físicas, Rummenigge está na reserva. Mas, como a Argentina ganha de 2 x 0, acaba indo para o jogo. Joga tanto que o time se transfigura e empata o jogo em 2 x 2 (depois, Maradona faria a diferença para a Argentina, mas essa é outra estória). 

Também é inesquecível a semifinal da Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Rummenigge, também fora das melhores condições físicas, está na reserva. O primeiro tempo da prorrogação termina França 3 x 1 Alemanha. Rummenigge vai para o jogo. Em 15 minutos, faz um gol, dá passe para outro e azucrina a defesa francesa. O jogo fica 3 x 3, vai para os pênaltis e, no pênalti decisivo, Rummenigge converte e coloca a Alemanha na final. 

Ainda na Copa do Mundo da Espanha de 1982, jogam Espanha x Alemanha. No final do jogo Rummenigge entra, faz uma jogada genial e manda uma bola por cobertura que… bate caprichosamente no travessão. 

Sérgio Noronha, o Seu Nonô, resume tudo: “Muitos se perguntam se um grande craque de um clube ou seleção em más condições físicas deve ir para os jogos, para que seja utilizado nem que seja em pequena parte destes. Está aí a resposta”.

A resposta é esta: mesmo “baleados”, craques com Karl Heinz Rummenigge fazem o futebol ser mais colorido!

Luis Filipe Chateaubriand acompanha o futebolhá 40anos e é autor da obra “O Calendário dos 256 Principais Clubes do Futebol Brasileiro”. Email:luisfilipechateaubriand@gmail.com.

ARÃO

por Marcos Vinicius Cabral


“Arão era o Patinho Feio e hoje é um ídolo”, disse o treinador rubro-negro Jorge Jesus após a apoteótica exibição do volante e da equipe na vitória por 3 a 1 contra o Atlético-MG, em pleno Maracanã, na última quinta-feira.

Perseguições, vaias, questionamentos e uma vontade grande de mudar o quadro de sua história.

Tanta vontade de mudar que mesmo estando numa grande vitrine como é o Flamengo, nunca se arriscou a bater faltas em uma partida sequer, desde sua chegada em 2016.

Porém, vem treinando no CT Ninho do Urubu, com aproveitamento convincente.

Bem-humorado, desconversa quando alguém o elogia: “Isso aí a gente deixa pra surpresa. Deixa quieto, a gente vai trabalhando quietinho. Se tiver oportunidade, vou tentar bater ali, mas deixa quieto”, afirmou sacudindo a vasta cabeleira que se tornou sua marca registrada.

E não será surpresa mesmo que numa bola dessas da vida em uma partida, ele bata e converta.

Poderia ser contra o Grêmio ou talvez contra o River ou Boca…vai saber!

O futebol tem muito disso e com Willian Arão não seria diferente.

Titular mas com ressalvas por quase todos os treinadores que trabalharam no Flamengo, ele usou a camisa 5 sem muito brilho desde quando saiu brigado do Botafogo.

Nascido em São Paulo, no terceiro mês do ano – o mesmo em que Zico, Uri Geller e Leandro deram seus primeiros choros em vida – o predestinado Bola de Prata do Campeonato Brasileiro de 2016 vem sendo um trunfo para o esquema de Jorge Jesus.

Cresceu no momento certo junto com a chegada do português e, vestindo a 5, pode fazer história.

Já vestiu a faixa de Campeão Carioca neste ano, pode vestir em dezembro a de Brasileiro e se vencer a Libertadores, pode – e por que não? – reencarnar o futebol produtivo do paraibano Leovegildo Lins Gama Júnior, na reedição da final contra o Liverpool 38 anos depois.

E com esse peso às costas, tem a responsabilidade de vestir um número que no panteão do futebol mundial diz muita coisa.

Sim, estamos lembrando de Zidane e Falcão também.

Tecnicamente ele não chega perto desses figurões da bola, mas com sua intensidade e vontade de superar seus limites, pode ir mais além do que qualquer cético ousaria apostar.

Arão pode surpreender os que nele não confiavam mas pode também – e deve para o bem do futebol – mostrar que nem todo camisa 5 tem apenas a obrigação de marcar.

Arão é uma espécie em extinção no atual cenário do futebol.

ODE A RAUL, O IMPERADOR DO D.E.R

por Marcelo Mendez


Manhãs de inverno são naturalmente belas pela deferência que lhes cabe à existência. Pois senão vejamos como se dá os domingos de várzea no ABCD Paulista…

Não acordo com aquela eletricidade múltipla, o salto da cama não é pirotécnico, furioso e acelerado. Não. Para mais um dia de futebol de várzea, o ato de sair da cama é leve, lento, profundo, não se acorda ao som da ira de um Rolling Stones, mas sim, com um John Coltrane a tocar Naima.

É de introspecção e sonhos que se faz um domingo de inverno. Assim estava eu no caminho do jogo entre D.E.R x Vila Vivaldi, válido pela semifinal do campeonato amador de São Bernardo. Da janela do banco de trás do carro que me levaria para a peleja no Campo do Lavínia, me resignei ao som do silêncio para olhar para o céu de então.

Não havia nele a costumeira resplandecência das manhãs de eterno verão que regem a várzea, mas tinha um encanto igualmente épico. Era de um cinza, de um escuro como os quadros em que Francisco Goya eternizou com suas “Pinturas Negras”. Algo muito forte, denso e vivaz que imaginei que se perpetuaria e até que estava indo bem nesse ínterim.

No entanto, o cinza e o escuro daquela manhã se dissiparam aos exatos 11 minutos do primeiro tempo do jogo em questão. O tempo suficiente que a bola levou para encontrar Raul, o camisa 8 do time do D.E.R…

Vinha ela, a bola, a sofrer. Por entre bicas e chutões, vitimada por esbarrões, cotoveladas, trancos e outras coisas menos nobres, ela, a bola, não se via por nada em um momento de calma e regozijo. Os modos dos homens ludopédicos não eram dos mais refinados. Surge então a dividida:

Uma bola quebrada pela zaga viaja até o meio campo e em meio a tudo isso que havia, ela encontra o peito de Raul. Com a calma de um homem que ama, munido das maiores intenções de versos e odes, o menino dá um salto, enche o peito e a apara. Por entre ventos e tempestades, Raul mantém a bola do seu peito, a protege, com um giro de bailarino do Bolshoi, se livra da marcação, e daí pra frente, com a bola já no gramado, Raul dá um passe preciso e o sol, como por encanto surge no Lavínia:

Até ele, o sol, aparece para ver Raul jogar!

Que coisa bela. Olhando para o campo do Lavínia, inebriado pelo futebol daquele menino de rosto de Rimbaud, me lembrei das coisas mais belas e mais tenras que pode haver na vida. Raul era nada menos que isso.

Com um futebol quase que Imperial, o rapaz eleva aos píncaros da beleza o exercício de se jogar futebol. Com ele nada é feio, nada é tosco, nenhum poema se da pela metade. Raul é intensamente gênio. Tem a primazia de deter todos os minutos, instantes, átimos e segundos dessa coisa bela que é o futebol. O menino que comandava o meio campo do time do DER não era só dono da cancha de jogo:

Raul era dono do tempo.

Quando a bola chegava aos seus pés, como que por encanto, ele, o tempo, parava pra vê-lo jogar. De cabeça erguida coma imponência de um Grande, Raul distribuía muito mais do que passes e lançamentos. Raul esparramava sonhos, versos e odes pelo campo do Lavínia. Ali, nada mais foi meramente comum depois dos seus passos de craque. Seu futebol dignificou até a grama sintética a qual flutuava.

Afinal, quem pisa são os outros que são mortais. Craques flutuam…

Com toda a leveza de um milhão de versos, Raul estufou as redes do Vila Vivaldi com um chute preciso. E o placar de 1×0 se manteve como inevitável. O jogo devia terminar assim por profissão de fé e arte; 1×0 gol de Raul.

Raul o Grande! Eu te louvo!

Coronel

A SOMBRA DE GARRINCHA

entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Felipe de Lima | fotos e vídeo: Daniel Planel 

Todo vascaíno que acompanhou o time no final dos anos de 1950 sabia de cor os nomes dos defensores do cruz-maltino: Paulinho de Almeida, Bellini, Orlando Peçanha e Coronel. Selecionáveis, “scratchmen”, davam o sangue pelo Vasco da Gama e pela seleção brasileira. Um deles, Antônio Evanil Silva, ou simplesmente Coronel, recebeu uma missão que não era das mais fáceis. Quando enfrentava o Botafogo, teria de marcar ninguém menos que Garrincha, o que fazia do jeito que podia. “O Garrincha era imarcável!. Eu era o boi de piranha. O primeiro a dar combate. Quando me virava, havia mais dois ou três jogadores do Vasco caídos”, conforma-se Coronel, durante a primeira entrevista que fiz com ele, em 2009, para o documentário Simplesmente passarinho, sobre a vida do Mané.

 

O reconhecimento da bravura do Coronel em campo veio do próprio “algoz”, já que Garrincha sempre disse ser o vascaíno um de seus melhores marcadores. Após exatamente 10 anos, reencontrei Coronel graças ao Museu da Pelada. Batemos um longo papo e o craque narrou muitas histórias sensacionais dos tempos de jogador. 

 

Defini-lo como um de seus melhores marcadores foi, obviamente, gentileza do Mané, porque Coronel, quando podia, sentava a pua no ponteiro. Só decidiu parar com as bordoadas quando conviveu com Garrincha na concentração da seleção brasileira que disputou o campeonato sul-americano, em Buenos Aires, em 1959. Orlando Peçanha e Bellini, dupla de zagueiros do Vasco, perguntaram ao Coronel porque ele não marcava mais o Garrincha como antes. Ouviram de um renovado lateral: “Ele agora é meu amigo e não consigo bater nele. Só lhe dou umas cabeçadas na nuca. Ele fica zonzo e me deixa em paz por uns minutos.”

 

Naquele torneio sul-americano, Coronel era reserva de Nilton Santos, que se machucou logo na estreia diante do Peru. No jogo seguinte, contra o Chile, Coronel assumiu a vaga. Na final, contra os donos da casa [os portenhos], Nilton recuperou-se. Mas, acatando pedido do titular, o técnico Vicente Feola manteve no time o lateral vascaíno, que vivia a sua melhor fase como jogador. Um ano antes, nos meses que antecederam à convocação para a Copa do Mundo, na Suécia, Coronel era o nome certo para a reserva de Nilton Santos no Mundial. Uma contusão impediu-lhe de realizar o sonho de disputar a Copa. Em seu lugar, Feola convocou Oreco. “Foi uma grande frustração”, confessou. Mas não havia tempo para lamúrias. Garrincha o esperava no Maracanã para antológicos embates.

 

A perseguição ao Mané no campo era tão intensa que o radialista Oduvaldo Cozzi contou o número de vezes que Coronel puxou a camisa de Garrincha em um jogo do Vasco contra o Botafogo. “Foram 23 vezes. Por isso o Cozzi, lembrando que Mané chamava todos os seus marcadores de ‘João’, passou a me chamar de Papa João XXIII”, lembrou Coronel. Só mesmo o imponderável para marcar um gênio da bola como aquele. “Houve um lance em que Garrincha tentou passar por mim. Nós dois caímos. Garrincha em cima de mim. Mané, fazendo catimba, não saía de jeito algum. Eu já estava com falta de ar. Dei-lhe uma mordida na barriga e Garrincha levantou imediatamente. Com ele, só assim mesmo. Não podia dar colher de chá.”

 

Apesar dos dribles do Mané, Coronel foi um dos melhores laterais-esquerdos do Vasco, pelo qual jogou de 1952 e 64. Nasceu em Quatis, no dia 27 de janeiro de 1936. Desde pequeno usava um boné, que — garante ele — rendeu-lhe brincadeiras dos amigos de infância e, inevitavelmente, a “patente”.

 

Chegou a São Januário ainda rapaz. Os primeiros meses na Colina deixaram o menino do interior embasbacado. Benzia-se diante da estátua do almirante português Vasco da Gama, imaginando sê-la a de São Januário. “Fazia isso sempre que passava em frente à estátua até que um porteiro perguntou por que fazia aquilo. Respondi que era um homem de fé. E que estava diante do ‘padroeiro’ do Vasco. O camarada riu e explicou: ‘Rapaz, esse aí é o Vasco da Gama….’. Fiquei muito sem graça.”

 

A fé de Coronel colocou-o em outra situação embaraçosa. Sabe-se que o Vasco sempre foi um clube de grande devoção católica. Coronel seguia à risca essa linha. Não só benzia-se diante da estátua do almirante, como acendia muitas velas. Uma delas, acendida no dia de jogo contra o Botafogo de Garrincha, quase ateou fogo à imagem da santa exposta no vestiário. “Foi um corre-corre danado. Queriam saber quem foi o responsável pelo fogo. Imagine, botar fogo na santa? Nunca descobriram, graças a Deus.”

 

O jovem Coronel não imaginava o que lhe reservava o futuro. Glórias, naturalmente — foi campeão carioca em 1956 e 58 e do torneio Rio-São Paulo de 58 —, mas também difíceis missões nas quatro linhas. Além de Garrincha a tirar-lhe o sossego, havia Telê, do Fluminense, Dorval, do Santos, e Joel, do Flamengo. Em compensação, ao seu lado estavam os craques da zaga, Sabará, Pinga e Vavá.

 

Com Sabará, emérito gozador, viveu uma situação inusitada durante a excursão do Vasco ao México, em 1959, para a disputa de um octogonal internacional. Ao passear pelas ruas da cidade mexicana, Coronel foi abordado por um rapaz que vendia uma caixa de “joias” por módicos 500 dólares. O jovem insistiu tanto que Coronel decidiu comprar a caixa. Nela, um portentoso anel despertou seu interesse. Colocou-o imediatamente no dedo. O vendedor?… já estava longe, feliz da vida, contando as verdinhas.

 

No hotel em que estava hospedada a delegação vascaína, Coronel fazia questão de mostrar para todos os companheiros o anel que comprara com outras “joias” por uma ninharia. No dia seguinte, reparou que o dedo estava todo verde, cheio de zinabre. Sabará ao constatar o desespero de Coronel, tratou de colocar mais lenha na fogueira:

 

— Ô, Coronel… quando fica assim, verde, não tem outro jeito. Vai cair mesmo.

 

Afoito, Coronel correu para o banheiro e tentou desesperadamente tirar o zinabre do dedo. “Foi um custo… e ainda tive de aguentar a pilhéria do Sabará até a volta do Vasco ao Rio”, recordou Coronel.

 

Após o Vasco, o ex-lateral vascaíno rodou por alguns clubes, dentre eles a Ferroviária, de Araraquara, e o Unión Madallena, da Colômbia. Parou de jogar em 1971.

 

Nos tempos de Vasco, Coronel casou-se e teve filhos. Anos depois, separou-se da esposa e hoje vive em Quatis, sua terra natal, ao lado da irmã, dona Dinéa, e de sobrinhos.

 

A família sempre esteve muito presente na vida do Coronel. A mãe e o pai, sobretudo. O pai, por exemplo, foi sua grande referência de retidão. Mas um drama marcou a vida do Coronel quando ainda era apenas um menino. Ele mesmo narrou a história a um repórter da antiga Revista do Esporte:

 

“Eu tenho um grande drama na vida, sabem? Um drama que o destino marcou com sangue numa cena pavorosa, de horror indescritível, e que jamais se apagará da minha memória. Embora sempre me seja penoso recordaar esses momentos de desespero pelos quais passei, vou contar como foi: havia lá em Quatis um desordeiro perigoso, assassino frio, que andou fazendo uma série de estripulias na cidade. Papai trabalhava na polícia como investigador e recebeu ordem de expulsá-lo. O homem, entretanto, resolveu não obedecer à intimação e vingar-se de papai de maneira sanguinária e covarde. O crime ocorreu a poucos metros de nossa casa, no dia 31 de agostos de 1951. Papai ia saindo de casa rumo à delegacia quando, inesperadamente, surgiu o criminoso de revólver em punho. Eu e minha irmã mais velha, Maria José, que estávamos encostados ao portão, não tivemos tempo sequer de gritar, advertindo papai, tão rápida foi a cena. Com os olhos esbugalhados assistimos a tudo.”

 

Naquele instante do depoimento, segundo o repórter, Coronel respirara profundamente antes de prosseguir recordação tão dramática:

 

“Papai parou aturdido, mas só teve tempo de levar a mão ao coldre de sua arma. O assassino disparou primeiro e ele caiu de borco [de barriga], esvaindo-se em sangue. Eu e a mana gritamos e corremos para junto de papai. Ela chegou primeiro e recebeu a segunda bala, certeira no coração. Amparei-a na queda e ela morria em meus braços quando o criminoso decidiu completar a obra, desfechando sobre mim o terceiro tiro. Fui atingido em pleno peito, a poucos centímetros do coração, e tombei sobre o corpo de minha adorada irmã, Maria José. Deus não quis que eu morresse também. Os dias que se sucederam foram de dor e desolação. A alegria desapareceu para sempre de nossa casa, até então um verdadeiro paraíso de felicidade, dando lugar ao mais completo luto. Mãezinha chorava dia e noite, beijando uma fotografia grande da mana. Papai se mantém até hoje em sua cadeira, imóvel e triste.”

 

A tragédia na família de Coronel foi devastadora, mas a vida precisa continuar. Coronel tocou-a adiante ao se tornar marido, pai também e um grande homem, um grande profissional. Um ídolo de milhões.

 

Mesmo após o fim da carreira de jogador, Coronel sempre esteve presente no Vasco, acompanhando de perto as divisões de base do clube da Colina e os “brotos” que se tornariam ídolos como ele, dentre os quais Roberto Dinamite. “Com o futebol, consegui ajudar minha família. Meus pais viveram com mais conforto e pude ver minhas irmãs se formarem.”

 

Os amigos do passado guardam boas memórias de Coronel. Como o ex-meia-esquerda dos juvenis do Vasco nos anos de 1950, Paschoal Rapuano, que o reencontrou quando o entrevistamos para o filme sobre Mané: “Eu era o titular do juvenil do Vasco e, provavelmente, o futuro marcador de Garrincha. Machuquei-me e Coronel pegou a vaga. Coronel, grande amigo, que só pude reencontrar agora, 40 anos depois de nosso último encontro, nos anos de 1960.”

 

Sorte ou não de Paschoal, quem levou a fama de “João” do Mané foi Coronel. Após mais de 50 anos, muitos se lembram dele como o grande jogador vascaíno que por pouco não parou Garrincha. “Jogava meu feijão com arroz. Às vezes funcionava contra Garrincha. Às vezes…”