REDENÇÃO POPULAR
por Leandro Ginane
Há séculos a baixa auto estima do brasileiro é uma característica que acompanha a grande maioria da população. Desde a colonização portuguesa, que passa pelo genocídio indígena e o fato de o Brasil ter sido o último país na América do Sul a decretar o fim da escravatura, o Brasil carrega consigo as consequências decorrentes da repressão dos colonizadores sobre os povos mais pobres.
Curiosamente, o football criado na Inglaterra como um esporte restrito à elite, trouxe para o brasileiro um frescor de auto-estima, principalmente nas periferias que passaram a usar o futebol como objeto de projeção social, além de servir como um caminho para desaguar as durezas da vida.
A projeção social proporcionada pelo futebol que contribui com a auto-estima do povo sofreu duros golpes ao longo dos anos, a começar pela final perdida em casa para o Uruguai em 1950 por dois a um. De lá pra cá, o Brasil se estabeleceu como o país do futebol, ganhou três copas do mundo, teve Pelé reconhecido como melhor jogador de todos os tempos e seus jogadores ficaram famosos pelo gingado e o improviso, a malemolência típica da capoeira e dos terreiros do samba. Mas em 82, com uma seleção que encantava o mundo, o Brasil sofreu uma das suas piores derrotas, a derrota na final para a Itália de Paolo Rossi.
Foram vinte e quatro anos sem uma conquista de Copa do Mundo, que veio apenas em 94 com um time que herdou muito pouco da lendária história do estilo brasileiro, trazia com ela apenas os talentos individuais de seus jogadores, em especial Bebeto e Romário. Esse título, tão aguardado por mais de duas décadas que chegava no ano em que Senna morreu, mostrou para o mundo que era possível vencer sem jogar bem. Em 2002, com mais um título nas mãos, a seleção se tornou a única pentacampeã do mundo. Novamente dependendo de talentos individuais, mas havia então uma confiança brasileira que era aliada a um momento de prosperidade e maior igualdade social.
Essas conquistas baseadas em táticas defensivas promoveu uma profunda e lenta transformação no estilo de jogo brasileiro. Técnicos antiquados e jogadores truculentos se destacaram, enquanto o futebol europeu se desenvolvia, até a mais terrível derrota do futebol brasileiro em 2014, em casa, por 7 a 1, para a Alemanha. Esse vexame expôs a fragilidade de um modelo de jogo ultrapassado.
Em 2019, onde a seleção já amarga 17 anos sem ganhar uma Copa do Mundo e ainda insiste em modelos defensivos, surge uma manifestação popular sem precedentes justamente no momento em que o povo vive um ano trágico com a redução das políticas sociais.
Uma festa rubro-negra em comemoração ao título da Libertadores e do Campeonato Brasileiro do Flamengo conquistados no mesmo final de semana, que teve início antes do jogo decisivo, No embarque, o povo abraçou o time e o levou até o aeroporto em uma grande mobilização popular.
O que aconteceu a partir daquele instante pode ser o início do resgate da alegria e auto estima popular proporcionado pelo verdadeiro futebol brasileiro, que se torna muito mais importante que o título em si, quando observado em um contexto mais amplo.
Embalados pelo funk, o mar de amor que se formou em volta do time Mais Querido do Brasil promoveu uma festa com centenas de milhares de pessoas que hoje não conseguem mais frequentar o Maracanã devido seu alto preço. A comemoração seguiu pelas ruas do Rio de Janeiro e serviu para lavar a alma do povo e renovar a esperança em meio a tanta miséria social.
Resta saber quais serão as consequências dessa mobilização popular no cenário esportivo, social e, principalmente, na periferia e nas favelas.
BELFORT DUARTE, O ‘PAI’ DO AMÉRICA
por André Felipe de Lima
Quando um atleta se torna referência incontestável do esporte, a ponto de seu nome batizar um dos mais importantes prêmios do futebol, sua história deveria ser sempre reverenciada através das gerações. Mas, lamentavelmente, não é isso o que ocorre no Brasil.
Caso exemplar dessa perda de memória social é a trajetória do ex-zagueiro Belfort Duarte, um dos responsáveis pela popularização do futebol no Brasil, no começo do Século XX, e, portanto, um dos maiores desportistas que já surgiram no País.
Em 1946, um prêmio que leva o nome do ex-ídolo do América do Rio de Janeiro foi criado para os jogadores que permanecessem dez anos sem receber nenhuma punição em campo. A premiação, extinta em 1981, foi recriada pela TV Globo e o portal GloboEsporte.Com, em 2008, para ser concedida ao jogador da Série A do Campeonato Brasileiro que obtivesse menos pontos descontados por infrações cometidas durante a competição.
Mas quem foi, afinal, esse atleta exemplar capaz de ser lembrado até hoje como sinônimo de retidão nos gramados?
O engenheiro civil João Evangelista Belfort Duarte foi o primeiro zagueiro clássico do futebol brasileiro. Seu pai, o Dr. Francisco de Paula Belfort Duarte, tribuno, foi o primeiro governador republicano do Maranhão e ministro na Embaixada Brasileira, em Londres.
Belfort Duarte nasceu no dia 27 de novembro de 1883, em São Luís, no Maranhão, mas começou a jogar bola em São Paulo, na Faculdade de Ciências e Letras do Mackenzie College. Na instituição de ensino, fundou, no dia 18 de agosto de 1898, o primeiro time de futebol formado basicamente por brasileiros, o que contrariava a tendência de tornar o futebol um esporte dirigido às elites, portanto “coisa de estrangeiros”.
Formado engenheiro no Mackenzie, Belfort se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1907, para trabalhar na canadense The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power (que fornecia iuminação a gás, depois energia elétrica e, além disso, operava diversas linhas de bondes e carris urbanos que funcionavam na Cidade Maravilhosa).
Antes, contudo, o amigo Gabriel de Carvalho, com quem se comunicava constantemente por meio de cartas, narrava a situação na então Capital Federal e o afeto que criou pelo América, um pequeno time de futebol da Zona Norte da cidade.
Gabriel mostrava a Belfort a sua frustração pelo time de seu coração não ter alguém com pulso firme para livrar o clube das crises cada vez mais constantes, que o impediam de igualar-se ao Fluminense, o então todo-poderoso.
“Na tarde de 27 de dezembro de 1907, Gabriel achava-se em seu quarto, na pensão de Dª. Laura Brito, no terceiro andar do nº. 50 da Avenida Central (hoje, Avenida Rio Branco), quando inopinadamente surge à sua frente o amigo, carregado de malas” – escreveram Orlando Cunha e Fernando Valle, pesquisadores da história do América, sobre a chegada de Belfort ao Rio de Janeiro.
O jovem maranhense ambicionava ser jogador do Fluminense, mas, convencido por Gabriel, logo aportaria no time do América. Poderíamos defini-lo como um vira-casaca? Mas Belfort teve motivos de sobra para mudar de rumo. Ou de camisa, como queiram.
Após um jantar com o amigo, convencera-se da gravidade da situação do clube. “O América precisa muito mais de você que o Fluminense”, ponderou Gabriel e, de imediato, sugeriu a integração de Belfort ao clube e uma reunião informal, entre amigos, no Bar do Leme, para convencê-los a aderirem à “causa americana”.
Ninguém resistiu à eloquência de Belfort e decidiram segui-lo. Dias depois, uma assembleia o elegeu capitão do time. E foi com esse estilo pé-no-chão, que o novo comandante da nau proferiu a célebre frase: “O América não recebe nada de graça; tem de lutar para viver”. No ano seguinte, Belfort levou para o Rio de Janeiro muitos amigos que estudaram com ele no Mackenzie: Aquino, Dinorah Assis e Roberto Shalders foram alguns deles que vestiram a camisa do América nos primeiros momentos do clube.
O espírito inovador de Belfort Duarte não tinha limites, e sob essa égide promoveu sua primeira revolução no clube carioca. Traduziu as regras do Inglês para o Português e propôs a troca do uniforme preto e branco pelo vermelho e branco, o mesmo que era utilizado pelo Mackenzie College. Não houve objeção. Do arrojo de Belfort nasceu a mitológica camisa rubra. A decisão foi oficializada no dia 12 de abril de 1908, um uniforme vermelho e a bandeira, semelhante à do Japão (branca, com um círculo vemelho, dentro dele, as letras AFC como vemos hoje no escudo do clube).
Nitidamente, a opção pela cor vinha do amor que Belfort nutria pelo seu ex-time, o Mackenzie College. Já o novo escudo do América, como o conhecemos até hoje, foi criado pelo goleiro Marcos Carneiro de Mendonça, em 1913.
Inovação e fleuma eram marca da personalidade de Belfort. Dizem os historiadores que, em 1909, antes do início de um embate do América, de Belfort, contra o Botafogo, os jogadores americanos saudaram a torcida, gesto então pioneiro que acabou sendo repetido por outros times e se eternizando nos estádios do País. Tudo sob o espírito conciliador do capitão Belfort.
O craque era um político nato. Mas sua altivez fora dos gramados foi muitas vezes confundida com arrogância. Sua palavra, porém, sempre era acatada. Tanto que, em 1908, a sede do clube foi transferida para uma sala na Rua do Passeio, número 56, no segundo andar do prédio Centro Paulista, onde funcionava o Clube dos Boêmios e o carteado – permitido na época por lei – rolava solto.
A nova casa não deu certo. E o capitão, que nem presidente do América era, determinou nova mudança de QG. E foram todos parar na casa do próprio Belfort, na Rua Torres Homem, 279, em Vila Isabel. Mas, com a mudança de residência de Belfort, no final de 1908, a troca da sede também foi inevitável. Tudo foi para o porão da nova casa do Capitão, na Rua Maria José (hoje, Zamenhoff), nº. 63, na Tijuca. Tudo era decidido lá, em 1909. Sempre sob o comando de Belfort. Mas como ele mesmo sempre afirmava, tudo era muito difícil para o América.
Incomodavam-no, por exemplo, os privilégios concedidos pela Liga aos times da Zona Sul. Em face disso, liderou um projeto que fundaria uma nova liga e ergueria um campo na Zona Norte, que sustentaria a dissidência. A ideia do campo, de certa forma, acabou se concretizando, 42 anos mais tarde, com a construção do Estádio do Maracanã.
O projeto rebelde de Belfort não foi adiante. Em 1911, em busca da solução para o impasse do campo de jogo, o clube concretizou parceria com o antigo Haddock Lobo Football Club. Assim, incorporou ao seu patrimônio o terreno da Rua Campos Sales, 118, onde havia a sede oficial do clube, recentemente negociada em função de dívidas. Seria preciso existir um Belfort Duarte para resolver de novo esse problema do América?
Ideia tão ousada só poderia mesmo partir de Belfort Duarte. Mas, por pouco, os dirigentes do Haddock Logo fizeram a parceria com o Sport Club Mangueira, o mesmo que servia de saco de pancadas para os times da Zona Sul, deixando de lado América. Não fosse a habilidade política de Belfort, talvez o América terminasse sua história, ali, no comecinho do Século XX. “O acordo teve, entretanto, consequências inesperadas. Ou não teriam sido inesperadas? Há quem garanta que Belfort tinha plena consciência da armadilha que preparara. O Haddock Lobo não conseguiu resistir ao progresso, cada vez mais envolvente, do América e as fronteiras entre as duas agremiações foram, pouco a pouco, ruindo”, contaram Orlando Cunha e Fernando Valle, no livro “Campos Sales, 118 — A história do América”.
Propuseram a fusão, que Belfort rechaçou, pois o clube teria de trocar o nome. Manteve-se América, em assembleia realizada no dia 17 de maio de 1911 pelas diretorias dos dois clubes. Belfort estava ainda mais forte.
Como assinalaram Cunha e Valle: “Nunca é demais ressaltar a extraordinária sagacidade de Belfort que, em inteligente jogada, conseguiu tudo de que o clube necessitava: campo, sede, bons jogadores e a consolidação do gabarito social”.
O time a ser montado seria um dos mais fortes do futebol carioca. A começar pelo gol. Entre os novos jogadores, o jovem arqueiro Marcos Carneiro de Mendonça, que veio do Haddock Lobo.
O temido esquadrão conquistaria o Campeonato Carioca de 1913. Aliás, no ano do primeiro título, o clube já se mostrava tão grande quanto os da Zona Sul. Se o clube crescia, a autoridade de Belfort, idem. E isso já causava desconforto entre os cartolas.
Alberto Carneiro de Mendonça era o presidente do América, e não concordava com a excessiva autoridade de Belfort, então tesoureiro, que, por sua vez, era avesso a dar satisfações. Não demorou, o caldo entornou durante a vinda da delegação chilena, que disputaria algumas pelejas no Rio de Janeiro. Belfort era favorável aos jogos com os andinos; Alberto, contra. Não houve consenso, mas prevaleceu a palavra de Belfort. E os chilenos vieram.
Alberto renunciou no dia 29 de agosto e, somente no dia 9 de setembro, após assembleia geral, Joaquim Amarante assumiu a presidência com a condição de manter-se no cargo até a chegada dos chilenos, o que aconteceu no dia 15 de outubro. Guilherme Medina substituiu-o, também por pouco tempo. O impasse permaneceu até Belfort publicar a seguinte declaração, em novembro, na imprensa: “Sendo voz corrente que o ‘team’ do América não jogará hoje completo por eu ser ainda diretor, declaro que, ao entrar em campo, não serei mais diretor do clube, no caso do ‘team’ inteiro disputar o ‘match’ de hoje, no campo do Fluminense. É esta uma resolução que tomo, escudado no meu acendrado amor ao América”.
O time não só entrou em campo, como foi campeão de 1913. E Belfort consolidou-se como o maior líder, dirigente, capitão e zagueiro que o clube já teve em toda a sua história.
Ele era o primeiro a chegar aos treinos. “Só desculpava faltas de Marcos de Mendonça porque sabia que o goleiro treinava em casa, com as suas bolas de tênis, com suas laranjas e latas (…). também ele (Belfort) dava o exemplo se matando em campo”.
Essa descrição feita por Mario Filho traduz o estilo de Belfort: líder incontestável. Nasceu para aquilo, ou seja, comandar. Um comando, por sua vez, tratado com ironia, não dos jogadores. Isso, afinal, era inadmissível, mas pela molecada que assistia aos treinos e jogos do América. O sisudo Belfort tinha cadeiras largas, e isso lhe rendeu o apelido de “Madama”.
O calção, escreveu Mario Filho, reforçava a tese da garotada debochada. Era mandão, parecia uma dona de casa ao passar carão nos passivos subordinados. E ai daquele que o questionasse!
Os pesquisadores Orlando Cunha e Fernando Valle relembraram uma curiosa história que se passou com o ponta Gabriel de Carvalho, responsável pelo ingresso de Belfort no América: “Certa vez, durante uma partida amistosa, expulsou de campo seu amigo Gabriel de Carvalho, que, por mero capricho, resolvera tentar uma série de dribles desnecessários. Daí, aliás, o apelido que recebeu – Madame”.
O temperamento do craque não era fácil. Generoso, porém franco, revelava uma vontade incontrolável de vencer, inclusive nos treinos.
Essa alma se estendeu aos seus comandados, como ressaltou Mario Filho: “Um jogador encarnava a bandeira do América, a camisa de ganga (o bom e velho brim, que tingido, ganhou o nome mais pomposo e americanizado “jeans”), bordeaux, de sangue velho. A bandeira, a camisa de Belfort Duarte. Para o time, para a torcida. Só assim o América vencia. Era campeão. Os onze jogadores ouvindo, obedecendo a Belfort Duarte, querendo ser América com ele”. E isso era comum.
Vitti, por exemplo, era um dos jogadores mais confiáveis da lista de Belfort. Dava voltas e mais voltas pelo campo após o treino. Só parava de noitinha, mesmo assim precisava alguém chamar Belfort Duarte para convencê-lo a parar. Vitti e todos os americanos só ouviam – e inapelavelmente – obedeciam Belfort.
Durante um jogo beneficente para angariar fundos para a Cruz Vermelha, enfrentando um time de alemães radicados em São Paulo, o América saiu de campo com um placar favorável de 6 a 1. Mas, em contrapartida, perdeu o zagueiro e capitão Belfort Duarte, que recebera uma bolada no peito. Saiu de campo para não mais voltar.
Os dias passavam, mas as dores por conta da bolada persistiam. Não dava mais para Belfort continuar jogando bola. Cedera à dor física, abandonando definitivamente os gramados, porém não abandonara a vida esportiva, pois atuava como dirigente nos dois Américas, o do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Não era a toa que gozava de respeito. Durante uma partida do América, o craque cometeu um pênalti. O árbitro não viu o lance e deixou o jogo prosseguir, mas Belfort foi até ele para avisá-lo do penalty.
A despedida do craque foi na derrota de 4 a 2 para o Flamengo, no dia 11 de julho de 1915.
Por sempre jogar na defesa, marcou apenas 12 gols pelo clube alvirrubro. Deixou os gramados, mas não o América. Foi o treinador da equipe que conquistou o título estadual de 1916.
Quando o comandante do América pendurou as chuteiras, aposentou também a pecha de “Madama”, alcunha desagradável que recebeu por gritar histericamente com os jogadores quando era o capitão (quase dono) do time.
Mas o fato de se transferir para a cidade de Rezende não o demoveu da missão de líder do América. Escolheu Paula Ramos, o novo capitão, como mensageiro de cartas aos craques americanos, que as ouviam como se fosse um “conselho paterno”.
Às vezes, Belfort Duarte aparecia em treinos e em pelejas. Em dia de jogo, silenciava nos primeiros 40 minutos. No intervalo, aparecia no vestiário e dizia o que o agradou ou não. O que falava, era sagrado. “Por isso, todas as tardes, chegando ao América, perguntavam se havia carta de Belfort Duarte. Quando não havia carta nova, Paula Ramos lia, outra vez, a última carta, sempre guardada no bolso, conservada como relíquia”, escreveu Mario Filho. Todos se uniam em torno de Belfort, em torno do América. Os dois eram uma só entidade.
Belfort Duarte, o craque-cartola – Do campo, o craque foi também ser craque na sala da diretoria. E na política esportiva mostrou ser um dos melhores exemplos. Foi responsável pela oficialização das regras do futebol no Brasil. O primeiro a trazer para cá a legislação do esporte bretão e traduzi-la, com a ajuda da esposa, Aída, para a Língua Portuguesa. Trouxe um time estrangeiro para jogar no País, no caso, a seleção chilena. E fez do América um clube para banir o preconceito ao aceitar o ingresso de atletas negros. Partiu dele a iniciativa de criar, em 1915, um campeonato de terceiros times para popularizar ainda mais o futebol no Rio de Janeiro.
Todos esses feitos de Belfort Duarte foram traduzidos na medalha que é entregue ao melhor desportista brasileiro. O primeiro a receber a medalha foi “half-direito” Antonio Motta Espezim (1914–2010), o Tonico, do Coritiba EC, no dia 25 de junho de 1948. Já o primeiro grande craque de Seleção Brasileira a ser agraciado com o prêmio foi Jaime de Almeida, no dia 24 de novembro de 1949. Tal premiação tornou-se cada vez mais escassa devido ao excessivo número de faltas que o futebol passou a ter.
O ex-craque também influenciou politicamente o Palestra Itália, o hoje Palmeiras.
O terreno do Parque Antarctica, que atualmente pertence ao alviverde paulistano, já foi da Companhia Antarctica Paulista de Bebidas, que o alugava, primeiramente ao Germânia, do craque alemão Hermann Friese, e, depois, ao América – braço do América carioca na capital paulista —, que não conseguiu arcar sozinho com as despesas de locação. Em 1917, o clube do Rio de Janeiro fez um contrato de aluguel com o Palestra Itália, que também passou a utilizar o campo para treinar e disputar jogos. Em 1920, o Palestra fez uma posposta de compra do estádio à empresa de bebidas, que não se opôs ao negócio desde que Belfort Duarte, que na época já morava em Rezende, no Pico do Itatiaia, concordasse.
Vasco da Gama Stella Farinello, um dos líderes políticos do Palestra, tomou um trem no qual viajou durante dez horas, até a casa de Belfort. A proposta seria uma ajuda ao América para obter uma vaga na Associação Paulista de Esportes Atléticos, o que não aconteceu porque o América paulista encerrou as atividades meses após o encontro entre os dois dirigentes. Belfort aceitou os argumentos de Vasco da Gama e o Palmeiras, graças ao craque do América e ao cartola Vasco da Gama, ganhou o seu estádio.
O Coritiba também homenageou Belfort Duarte. O estádio Couto Pereira foi batizado inicialmente com o nome do inesquecível craque americano. Reconhecimento justo pelo que Belfort representa para a história do futebol brasileiro.
O América crescera, e o craque foi se afastando aos poucos do clube, mas sem mágoas. A figura altiva e dominadora não cabia mais naquele cenário.
Vítima de uma gripe muito forte (há quem diga tuberculose), Belfort refugiou-se em seu sítio, no distrito de Campo Belo, município de Rezende, interior do Estado do Rio de Janeiro. Afinal, todo o cuidado era pouco, pois a temida gripe espanhola, uma epidemia que matou milhões de pessoas no Brasil e um terço da população mundial, acabara de chegar por aqui.
Na estada em Campo Belo, na região de Itatiaia, no sul fluminense, o ex-ídolo do América foi assassinado por Antonio Monteiro de Sá Freire devido a uma briga por posse de terras, segundo o testemunho de sua filha, Mary.
Como descreveu reportagem do jornal “O Imparcial”, Sá Freire era o zelador do núcleo de fazendas da região de Itatiaia. Quando fazia uma inspeção, constatou que Belfort estava construindo uma cerca que contrariava as normas de administração do local. Sá Freire o repreendeu. O ex-craque ofendido, iniciou uma áspera discussão com o zelador. Sentindo-se acuado, Sá Freire sacou sua arma. Bastou um tiro para que Belfort Duarte tombasse na terra, deixando-a banhada de sangue.
Após o crime, Sá Freire desceu de Itatiaia até Campo Belo e entregou-se à Polícia, alegando ter agido por legítima defesa. “O morto ha muito que era colono do Nucleo e apezar de ser cavalheiro distincto, era malquisto pelos seus vizinhos devido às contendas que com elles mantinha”, descreveu “O Imparcial”. Mas o mesmo jornal mudou de opinião dias depois: “As primeiras noticias fornecidas à imprensa desta capital sobre o bárbaro crime de Itatiaya, deturparam propositalmente os factos, com o intuito de facilitar a defesa do assassino (…). Com effeito, desde logo ressalta a má-fé de taes informações, que emprestam ao Dr. Belfort Duarte, grande antipathia em relação aos colonos de Itatiaya, quando é sabido que o distincto ‘sportman’, portador de excellente cultura, era geralmente estimado em todas as rodas sociaes aqui como naquelle recanto fluminense”.
O jornal frisou que Sá Freire estava empolgado com a ideia de “mandonismo”, embora o núcleo de terra nada mais tinha de influência do poder público.
Mais adiante, a reportagem destaca que Sá Freire, na manhã do crime, segundo parentes do algoz de Belfort e de outras testemunhas, vociferava que deveria matar alguém. “Effectivamente, o Sr. Sá Freire, que assim se expandia, armou-se de revólver, carregando, nos respectivos pentes, 18 balas e horas depois, esbarrando seu cavallo à porta da chácara do Dr. Belfort Duarte, o chamou, com voz alterada, como quem intima”.
Belfort Duarte, que estava no quintal, atendeu ao chamado de Sá Freire, que o teria proibido de colher inhame para os porcos. Belfort ponderou que o legume colhido prejuízo algum causaria à fazenda. Sá Freire e Belfort intensificaram a discussão e o desfecho foi o mais trágico possível.
Belfort Duarte morreu no dia 27 de novembro de 1918, no dia em que completava 35 anos. Na trágica ocasião, lenda ou não, há testemunhos de que estaria vestido com a camisa rubra do América. A diretoria do clube tentou trazer o corpo do ídolo para o Rio de Janeiro, mas o estado de decomposição do cadáver já estava bastante adiantado. Às 8h, Belfort Duarte foi enterrado na pacata Campo Belo. Tombou brigando, exatamente como sempre fez pelo seu querido América.
CIDADE COLORIDA
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
Amigos, a euforia pela vitória do Flamengo foi tanta que pouco falou-se de futebol. Na verdade, a mídia viveu um delírio coletivo, jamais testemunhei uma cobertura tão sufocante, nem quando o Brasil foi campeão do mundo, nem em eleições presidenciais, Carnaval ou qualquer outro acontecimento relevante.
Bom demais ver a cidade colorida, pessoas felizes e o futebol carioca no topo do pódio, mas alguns comentaristas só faltaram trabalhar vestindo o uniforme do Flamengo. Durante a cobertura, o gringo Petkovic abraçado a Everton Ribeiro gritava “vamos para cima deles, Mengão!” e o ex-lateral Junior, hoje comentarista, circulava de faixa de campeão. Perderam a linha, o bom senso. Na minha opinião, claro!
Sobre o jogo o que se viu foi uma grande injustiça. Calma, torcida rubro-negra, futebolísticamente falando. Marcelo Gallardo deu um nó em Jorge Jesus, o Flamengo ficou acuado e se não fosse a incompetência de Lucas Pratto o resultado seria outro.
Foi nítido que vários jogadores rubro-negros sentiram o peso da partida. Os medalhões, que vinham se destacando, ficaram acuados e quase comprometeram. Mesmo com tantos anos de Europa e Liga dos Campeões, os experientes laterais também não estiveram bem. Gerson e William Arão bateram cabeça e deu no que deu.
O River é mais time do que o Flamengo, a verdade é essa, mas brilhou a estrela de Gabigol, que apesar de não ser um primor de técnica é fuçador, não desiste e fez por merecer. Mas novamente foi expulso, dessa vez nos minutos finais e mostrou que precisa urgentemente de um acompanhamento psicológico para frear suas atitudes infantis. Sua jogada mais linda foi ter deixado o governador do Rio Wilson Witzel no vácuo. Políticos oportunistas devem ter o fim que merecem.
Enfim, já disse e repito, torço pelo sucesso do futebol carioca. Botafogo e Fluminense venceram de Corinthians e CSA, respectivamente, e deram uma boa respirada na tabela. Tomara que não caiam, mas não vêm fazendo por merecer. O Cruzeiro, de Abelão, o Palmeiras, de Mano, e o Internacional, de Zé Ricardo, provam que a era dos retranqueiros está na reta final.
Bom demais ver o show dos baixinhos Soteldo, do Santos, e Michael, do Goiás. O último, inclusive, deixou um brutamonte caído no chão e me entristece ver que jogadores com esse biotipo estão perdendo espaço no nosso futebol. Saudades do futebol arte!
Ainda sobre o Flamengo, para fechar o ano com chave de ouro seria importante a diretoria do clube resolver essa pendência da indenização dos meninos mortos no Ninho do Urubu, afinal o que estabelece a grandeza de um clube não é somente uma sala de troféus abarrotada, mas é, acima de tudo, a sua dignidade.
‘ELE FOI MELHOR QUE MARADONA, DI STÉFANO E PELÉ’
por André Felipe de Lima
Tínhamos Friedenreich, e eles Héctor Scarone, o “mago charrua”, o “Gardel da pelota”. Um gênio, porém esquecido. Por estas plagas pouco (ou nada) se ouve falar daquele uruguaio ambidestro e de um drible impiedoso e chutes fortíssimos. A poeira do tempo encobriu sua história. Creio que mesmo nossos vizinhos lembram-se dele como realmente merecia. Nós, brasileiros, não fugimos a triste regra. Os mais jovens sequer citam Friedenreich no rol de ídolos. Hoje, as gerações regidas pelo imediatismo e o prazer efêmero e fugaz deixam escapar-lhes pelas mãos a história e o passado. A memória se esvai. Não se apreendem origens que certamente justificam muito do que somos atualmente. Ora, se há na atualidade um avante como Gabriel, cujos gols deram dois títulos ao Flamengo em menos de 24 horas, foi preciso termos antes dele outros centroavantes memoráveis, que de gol em gol foram construindo um estilo, uma trajetória peculiar, e isso começou com Friedenreich, passou por Leônidas da Silva, Ademir de Menezes, Baltazar, Quarentinha, Reinaldo, Romário e Ronaldinho chegando, enfim, ao Gabriel. Mas ignoramos essa estrada. É a tal da “era líquida” sobre a qual o pensador polonês Zygmunt Bauman tanto alertara.
Scarone e Friedenreich tornaram-se “líquidos” para a história do futebol. Quando falam no Uruguai de um centroavante goleador da seleção citam imediatamente Luis Suárez, Cavani e Forlan, respectivamente os três primeiros do ranking dos artilheiros. Mas esquecem de que até 2011 nenhum outro superara Scarone, que marcou 31 gols em 51 jogos. Os outros três precisaram disputar mais de 100 pelejas para superá-lo. No Nacional, o mítico craque marcou 301 gols em 369 jogos. Hoje, dia 26 de novembro, o ídolo maior deveria ser festejado por tudo isso, especialmente em Montevidéu, onde nasceu em 1898.
Scarone, cujo pai Giusseppe torcia pelo CURCC (antecessor do Peñarol), era franzino e relativamente baixo. A compleição pouco favorável para um jogador de futebol era compensada com impetuosidade, perseverança e, acima de tudo, técnica. Felizes eram os torcedores do Nacional de Montevidéu que puderam ver o craque vestindo o manto branco, azul e vermelho por cerca de 15 anos. Com o “mago” no time, que começou a defender em 1916, o Nacional foi várias vezes campeão nacional. O escrete uruguaio, obviamente, também foi privilegiado. Tendo em campo Scarone conquistou campeonatos sul-americanos, duas medalhas olímpicas de ouro (em 1924 e 28) e a primeira edição de uma Copa do Mundo, em 1930. Nasceu naquele momento a mística da “Celeste olímpica”, com Scarone, seu irmão Carlos, o “marechal” José Nasazzi, o parceiro de tabelinhas Petrone e o estupendo Leandro Andrade, a “maravilha negra”. O Uruguai tornara-se o primeiro “país do futebol”. O mundo reverenciava seus ídolos. Scarone, em especial. Afinal, o craque mor era o baixote bom de bola.
Scarone abriu portas europeias para os jogadores sul-americanos logo após a medalha de ouro olímpica em 1924. Foi convidado para defender o Barcelona. Não permaneceu muito tempo por lá. Diziam que sofria boicote do ídolo local Samitier. Ambos desmentiram a rusga, mas os bastidores pareciam mais críveis. O futebol espanhol se profissionalizara. O mago teria de assinar um contrato, que o impediria de defender a Celeste na Olimpíada de 1928. Optou pelo amor pátrio. Regressou ao Nacional e à seleção para manter a série interminável de conquistas. A Taça Jules Rimet seria o seu épico e inesquecível limite.
O extraordinário goleiro espanhol Zamora o descrevia como “o símbolo do futebol” e o italiano Giuseppe Meazza, que seria campeão mundial em 1938, definia Scarone como “o jogador mais fantástico” que viu atuar, pelo menos até se deslumbrar com Garrincha e Pelé: “Sinceramente, já enfrentei muitos oponentes e vi muitos jogadores na minha vida, mas para mim Hector Scarone foi o melhor de todos”, dizia Meazza.
O famoso cronista uruguaio Luis Alfredo Sciutto, cujo pseudônimo era “Diego Lucero”, que trabalhava no jornal argentino Clarín, jamais titubeou: “Olhe, nem Pelé, nem Maradona, nem Di Stéfano; o melhor de todos os tempos foi Héctor Scarone. Nada como ele. Tinha tudo: inteligência, drible, habilidade, físico (aí, nem tanto) e coragem, muita coragem.”
Torcedor fanático do Nacional e um dos mais singulares contistas do futebol, o poeta e ensaísta uruguaio Mario Benedetti enxergava o esporte bretão como um fenômeno transcendental, sem amarras sociais ou econômicas. Para ele, era algo inerente à alma humana. Igualmente a outros gênios homólogos, dentre os quais Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, ele começou a carreira nas letras escrevendo crônicas de futebol nos jornais. Nascido em 1920, o poeta cresceu encantando-se com Scarone. Era o seu ídolo a quem conferiu uma espécie de altar em suas santas memórias juvenis. Benedetti não admitia que naquele tapete verde tão lindo servisse de tela para que falsos artistas o borrassem com jogadas feias e mal desenhadas. Nunca acreditou neles, nos falsos artistas da pelota. Mas sim na arte do Scarone, um “Rembrandt” com a bola nos pés.
Após a Copa de 30, o craque charrua defendeu os italianos Internazionale de Milão e Palermo. Em 1934, ele voltou ao Nacional, onde conquistou seu oitavo campeonato uruguaio. Permaneceu até 1939, quando aos 41 anos decidiu se aposentar no Montevideo Wanderers para tocar a carreira de treinador. Ensinou muita gente a jogar bola de verdade. Era uma unanimidade no meio futebolístico. Vivia com o salário que recebia dos clubes que treinava, mas nunca abandonou o emprego nos Correios de Montevidéu, onde trabalhou como carteiro até se aposentar. Sofreu o trauma da perda do único filho. Isso o abalou muito. O futebol era o seu refúgio emocional.
No dia 23 de abril de 1967, o genial Héctor Scarone foi ao estádio Centenário, acompanhado do amigo Pedro Cea, com quem jogou a Copa de 30 pela Celeste. Sentaram-se no camarote. Era uma tarde fria. Mais fria que o normal para aquele começo de outono. O Nacional entrara em campo para enfrentar o paraguaio Guarany, em jogo da Taça Libertadores da América. Os adversários fizeram o primeiro, mas o tricolor virou, com sobras, o placar. Scarone estava exultante. Voltou para casa bastante feliz naquela tarde. Poucas horas após chegar a sua residência, percebera que aquela felicidade era um convite de Deus. O coração de Scarone parara de bater. A história dele, não. Diante do seu túmulo Nasazzi, outro companheiro de 30, despediu-se do amigo: “Éramos jovens, vencedores, unidos, e nos imaginávamos indestrutíveis”.
Nassazi não estava errado. Scarone é indestrutível. É imortal.
A NIKE SEM AMAZON
por Idel Halfen
Os que se interessam pelas relações entre o varejo e a indústria devem ter recebido com surpresa a notícia de que a Nike decidiu parar de comercializar seus produtos através da plataforma da Amazon.
Faz parte dos objetivos de qualquer executivo de marketing deixar seus produtos distribuídos no maior número possível de pontos de vendas qualificados, sejam esses físicos ou virtuais. Dessa forma se consegue auferir receitas através das compras dos varejistas, se toma espaço da concorrência no que tange às áreas de vendas, de estoque e do próprio capital de giro, além de deixar o produto mais disponível para o consumo.
Portanto a opção de abrir mão de uma plataforma que é referência em vendas online se mostra uma iniciativa bastante arrojada e que provavelmente pode impactar as vendas no curto prazo, apesar de provavelmente oferecer boas perspectivas para o futuro.
A aposta da Nike é trazer o consumidor para sua própria plataforma e assim propiciar uma melhor experiência, a qual pode ser fortalecida através do próprio conceito de omnichannel, ou seja, uma maior e melhor integração com as lojas físicas e demais canais da marca.
Oferecer maior variedade de produtos e direcionados com maior assertividade aos clientes, tanto em função do perfil dos mesmos como também por layouts mais interativos, também faz parte das expectativas da Nike.
Deve ser registrado que a marca norte-americana sempre foi reticente em relação a comercialização de seus produtos na Amazon, tanto que demorou a aderir à plataforma. Nas negociações que propiciaram a parceria foi exigida a extinção das ofertas por intermediários que vendiam Nike naquele canal e, evidentemente, das réplicas piratas.
Contribuiu também para esta decisão a contratação do novo CEO, John Donahoe, cuja experiência contempla posições na eBay e na PayPal, empresas com estreita ligação com o setor de ecommerce.
Apesar de reconhecer a dificuldade e os riscos de se quebrar um paradigma solidificado na indústria: o de estar presente para o maior número de potenciais clientes, creio que a decisão foi acertada, pois, deixa para trás os aspectos estritamente ligados aos resultados de curto prazo e privilegia o lado estratégico que permitirá posicionar a marca e conhecer melhor aqueles que interagem com ela, isso sem falar na extensa rede de lojas físicas – próprias inclusive – e nos demais comércios eletrônicos em que continuará presente.