PASSANDO O TRATOR NO EXTERIOR
por Jorge Eduardo Antunes
Para chegar na Copa de 1970, a maior seleção brasileira de todos os tempos precisava passar por três adversários nas eliminatórias. Alinhado no Grupo B da seletiva sul-americana, ficou na única chave com quatro seleções, ao lado de Colômbia, Paraguai e Venezuela. A estreia estava marcada para 6 de agosto de 1969, contra os colombianos, em Bogotá, a 2.640m de altitude.
As eliminatórias sul-americanas começariam um mês antes da estreia brasileira. Pelo Grupo C, o Uruguai aplicou 2 x 0 no Equador, em Guayaquil, em 6 de julho. Uma semana depois, arrancou um empate sem gols com o Chile, em Santiago. Em 20 de julho, nova vitória sobre os equatorianos, em Montevidéu, por 1 x 0, deixando a vaga bem encaminhada – até porque o Chile, após golear o Equador, em casa, por 4 x 1, tropeçou fora, ficando no 1 x 1. Bastava empatar em casa, com os chilenos, na última rodada, em 10 de agosto de 1969. Mas, com gols de Julio Cortez e do inesquecível Pedro Rocha, craque uruguaio que brilhou no São Paulo, o Uruguai foi o primeiro país a se garantir no México-70.
Pelo Grupo A, a Argentina viveu um drama. Os portenhos estrearam com derrota para a Bolívia (2 x 1), em 27 de julho de 1969. Antes mesmo da estreia do Brasil veriam a situação se agravar, ao serem batidos pelo forte time peruano de Chumpitaz, Cubillas e Mifflin por 1 x 0, em 3 de agosto, partida realizada em Lima e apitada pelo popular Sansão, apelido do brasileiro Ayrton Vieira de Moraes. A Bolívia venceu o Peru (2 x 1) em casa, mas perdeu fora, por 3 x 0. Então, bastava a Argentina vencer as duas seleções em Buenos Aires para se classificar. Fez 1 x 0 nos bolivianos, mas não passou de um 2 x 2 com os peruanos, mesmo com um homem a mais. Melhor para o mestre Didi, técnico que levou a seleção peruana à segunda Copa do Mundo.
Parte da seleção brasileira que ia encarar as eliminatórias se apresentou na manhã de 26 de junho, uma quinta-feira, na concentração do Flamengo, em São Conrado. Era composta pelos botafoguenses Jairzinho, Paulo Cézar e Gérson (que estava no meio da transferência para o São Paulo); pelos cruzeirenses Tostão, Dirceu Lopes e Piazza; pelos corintianos Rivellino, Paulo Borges e Zé Maria; e por Brito (Vasco); Félix (Fluminense); Everaldo (Grêmio) e Scala (Internacional). Voltando de uma excursão à Europa, os santistas Cláudio, Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel Camargo, Rildo, Clodoaldo, Toninho, Pelé e Edu só chegaram à tarde. Dos 22 convocados, 15 foram ao México, entre eles, os 11 titulares do time tricampeão.
A responsabilidade de levar o grupo do Mundial era de Saldanha e de uma comissão de peso. Chefiada por Antônio do Passo, era integrada por Tarso Herédia (administrador), Agathyrno da Silva Gomes (secretário e futuro presidente do Vasco), Sebastião Alonso (tesoureiro), Jose Bonetti (assessor), Russo (Adolpho Milman, supervisor), Admildo Chirol (preparador físico), Lídio Toledo (médico) e os massagistas Nocaute Jack e Mário Américo.
A preparação em julho, como lembramos no primeiro episódio, teve apenas times e seleções estaduais, com três goleadas – 4 x 0 no Bahia; 8 x 2 na seleção de Sergipe e 6 x 1 na seleção de Pernambuco. Logo após o jogo no Arruda, em 13 de julho, a seleção afivelou as malas e voou para Bogotá, para uma longa rotina de 20 dias de treinos na altitude, obedecendo a um criterioso plano de preparação física de elaborado por Chirol – algo impensável no futebol atual. Assim, até enfrentar a Colômbia, a seleção fez apenas um jogo na altitude, vencendo o Millonarios por 2 x 0. Neste jogo, Brito apareceu como titular e Scala, do Internacional, foi testado no segundo tempo.
Com o time entrosado, preparado para a altitude e definido, em 6 de agosto de 1969 o Brasil estreou nas eliminatórias da Copa alinhando Félix, Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel Camargo e Rildo; Piazza e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Até ali, o grupo da seleção nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970 já havia registrado dois jogos, com a Colômbia vencendo a Venezuela por 3 x 0 em Bogotá e empatando por 1 x 1 em Caracas.
Não foi um baile, mas o Brasil jogou o suficiente para fazer 2 x 0 no primeiro tempo. Com Gerson e Pelé marcados por García e Agudelo, a seleção tinha dificuldade em criar. Aos poucos, foi tomando conta do jogo e, aos 36, Tostão balançou a rede, mas o gol foi anulado por impedimento. Um minuto depois, não teve jeito. Carlos Alberto cobrou lateral nos pés de Jairzinho, que foi à linha de fundo e cruzou para o mesmo Tostão antecipar-se ao goleiro Lagarcha e abrir o marcador. Aos 44, Jairzinho foi derrubado no bico da grande área. Pelé cobrou forte e Lagarcha deu rebote, que Tostão novamente não perdoou, fazendo 2 x 0.
Com o placar favorável, o Brasil voltou para o segundo tempo controlando a partida. Pelé voltou a ameaçar em duas cobranças de falta, bem defendidas pelo goleiro colombiano. A seleção levou um susto no gol bem anulado de Ortiz, aos 16, mas foi sempre mais efetiva e poderia ter feito mais um ou dois gols, esbarrando na boa atuação de Lagarcha. Como o Paraguai venceu a Venezuela também por 2 x 0, as duas equipes estavam empatadas em segundo lugar, com dois pontos, um atrás da Colômbia e um à frente da Venezuela, que seria o adversário do Brasil na segunda partida das eliminatórias, quatro dias depois.
Mesmo ainda insatisfeito com o desempenho do time, Saldanha manteve o seu 11 titular (com Félix, Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel Camargo e Rildo; Piazza e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu) para enfrentar os venezuelanos, quatro dias depois, em Caracas. Na época a pior seleção do continente, a Venezuela não era um adversário à altura do esquadrão brasileiro. Mas, diante de um Estádio Olímpico lotado, no primeiro tempo a seleção esbarrou na retranca dos adversários. Correndo como nunca, o escrete vinotinto segurou o 0 x 0 com o Brasil na primeira etapa. E foi ovacionado pelo público.
O segundo tempo começou na mesma toada – o Brasil atacando, a Venezuela se defendendo e correndo. Mas quem tem Tostão, tem milhões. Aos 14, após quase uma hora de correria, o adversário cansou. E Jairzinho deu um passe açucarado para Tostão abrir o placar. O mineiro não perdoou e fuzilou Garcia, fazendo 1 x 0. Treze minutos mais tarde, Pelé dominou na área, driblou dois e meteu no canto de Garcia, fazendo 2 x 0. Aos 30, Gérson chutou da entrada da área e Garcia, que pegou tudo, soltou no pé de Tostão, que sacramentou o 3 x 0.
Jogo liquidado, mas com espaço para espetáculo. Aos 33, Jairzinho cruzou da direita e a bola passou por toda a defesa, para encontrar Tostão, que mandou no canto direito, fazendo seu hat-trick. A festa foi completada aos 35, com Pelé enfileirando a defesa venezuelana com uma série de dribles, selando os 5 x 0, sob aplausos dos torcedores adversários, que, se tinham vibrado com o 0 x 0, agora iam ao delírio com o espetáculo dado em apenas 21 minutos. O time titular só seria alterado com a entrada de Everaldo no lugar de Rildo, na segunda etapa.
Podia ser mais, tamanha a diferença técnica entre os dois times. Mas a seleção se poupou a partir dali, pois uma semana depois iria enfrentar o Paraguai, que também vencera naquele domingo, 10 de agosto, marcando 1 x 0 na Colômbia, em Bogotá. Com quatro pontos, brasileiros e paraguaios assumiam a liderança do grupo, com quatro pontos, contra três dos colombianos e um dos venezuelanos.
O Brasil chegou a Assunção na noite de segunda-feira. E encontrou um clima de guerra. O mais importante jornal paraguaio, o ABC Color, viu um complô brasileiro no jogo entre Paraguai e Colômbia. O frio intenso e contusões em Djalma Dias e Félix também atrapalhavam a preparação para o jogo do dia 17, que seria a primeira grande decisão – afinal, a seleção paraguaia era a maior ameaça à classificação do Brasil. O clima de guerra foi ampliado durante a semana, com discussões e provocações entre torcedores dos dois países.
Para piorar, na véspera da partida, houve confronto de dirigentes e jogadores do time canarinho com paraguaios que foram perturbar a concentração, chamando os brasileiros de “animais e macacos” e agredindo o dirigente Silvio Pacheco. A pancadaria foi forte, com Félix, Carlos Alberto, Joel, Brito, Rildo, Toninho, Jairzinho e Rivellino encarando o grupo de quase cem pessoas. Brito chegou a desarmar um dos brigões, depois de desferir um “telefone” no ouvido do valentão… A confusão só acabou com um telefonema (de verdade) da missão militar do Brasil para o ministro da Justiça paraguaio, que determinou a interdição da rua do Residencial Bonanza, onde a seleção brasileira estava hospedada…
Como os lesionados se recuperaram e Saldanha levou a campo, no dia 17 de agosto de 1969, seu time titular. Com o estádio lotado e com os dois times com os nervos à flor da pele, o primeiro tempo foi caracterizado pela pancadaria parte a parte. Se o Paraguai batia, o Brasil não ficava atrás – Pelé, Carlos Alberto e Gérson nunca deixaram adversários crescerem na base da intimidação. O jogo virou uma guerra, tolerada pelo chileno Arturo Massaro, o árbitro que dirigiu o encontro. Não foram poucas as vezes que ele teve de separar os jogadores dos times, após lances violentos.
Com isso, a primeira etapa acabou com um previsível 0 x 0 que, se era ruim para o Paraguai, por jogar em casa, parecia ainda pior para o Brasil, dada a diferença técnica entre os selecionados. Embora a segunda etapa tenha começado com ânimos mais serenados, a seleção não conseguia vencer o forte bloqueio paraguaio, rondando sem sucesso a meta de Aguilera – que defenderia Portuguesa de Desportos e Botafogo de Ribeirão Preto anos depois. Animado, o Paraguai se lançou mais e abriu espaços. Um erro fatal.
Aos 25, depois de 70 minutos de resistência, a defesa paraguaia ajudou o ataque brasileiro. Após um recuo errado, Edu entrou na área driblando e chapelando Rojas e Bobadilla e cruzou para Pelé. Afobado, Valentin Mendoza meteu de cabeça, no ângulo da meta de Aguilera. Brasil 1 x 0. O caminho estava aberto. O segundo viria de uma sensacional jogada de Pelé e Jairzinho, aos 36 minutos. O maior camisa 10 da história pegou a bola na intermediária ofensiva e enganou três paraguaios de uma só vez, tocando para Jair, que devolveu rápido. Pelé avançou em direção ao bico da área, enquanto o craque botafoguense vinha como uma bala. Recebeu (ou tomou a bola, nunca se sabe) de Pelé, entrou na área pela direita e acertou o canto oposto de Aguilera, ampliando o marcador.
Com o 2 x 0, a partida estava definida. No último minuto, Edu pegou a bola pela esquerda, invadiu a área, cortou o lateral Molina duas vezes e, antes que a cobertura chegasse, bateu seco, sem defesa. Placar fechado em 3 x 0. Três vitórias, dez gols marcados, nenhum sofrido e a liderança das eliminatórias. Campanha perfeita das feras de Saldanha. Bastava não errar nos três encontros em casa e a vaga estaria garantida.
Mas os jogos eliminatórios realizados no Brasil ficam para o próximo capítulo.
FUTEBOL, GRIPE E HISTÓRIA
por André Felipe de Lima
Lembro-me bem. Tinha somente oito ou nove anos. Minha avó sentada ao meu lado narrava histórias de quando tinha a mesma idade. Era miúda, mas já trabalhava em uma fábrica de tecidos que havia no Horto, atrás do Jardim Botânico. Um tempo no qual “exploração infantil” era algo lamentavelmente tolerável, mas que, obviamente, se tornaria execrável nas décadas seguintes, ou, pelo menos, deveria ter sido. Era uma sociedade rija, árida, conformada. Uma sociedade que lidava com a morte sob uma naturalidade aterrorizante. Justamente esse terror tomou conta de mim ao ouvir minha avó contar com minúcias o que ela mesma presenciara naquele longínquo outubro de 1918. Corpos e mais corpos empilhados em carroças transitavam diariamente pelas ruas do Jardim Botânico. Ela ia para o trabalho assustada com tudo que via. Era somente uma menina de nove anos. Mesmo com a vida convidando-a a imediatamente crescer pelas vias do trabalho braçal, minha avó era uma criança. Os corpos de que falava foram vítimas da mais temível epidemia que assolou não somente o Rio de Janeiro naquele ano, mas todo o Brasil, todos os continentes. A gripe espanhola ignorava fronteiras para matar em massa. Minha avó não tinha (coitada) a dimensão exata do terror que provocava em mim e nos meus primos com aqueles casos e “causos”. Nunca esqueci as histórias da gripe espanhola. Hoje, com já bem vividos 51 anos, recordo minha avó, que escapou daquela fatídica epidemia. Tornei-me um jornalista e uma “tentativa” de cronista do velho e violento esporte bretão. Nessa minha “tentativa” pontual sobre a gripe espanhola, resgato o impacto dela no futebol daquele distante 1918. Foi algo que, espero, jamais aconteça novamente.
Do Rio e de São Paulo, as cidades mais afetadas pela influenza e os dois principais centros desportivos da época, muitos craques foram vítimas da epidemia. A morte prematura de dois deles causou comoção por serem eles craques de importantes agremiações esportivas. Do Fluminense, Archibald “Archie” French, o jovem e promissor craque egresso do Bangu, e de São Paulo, o centromédio (hoje volante) Octavio Egydio de Oliveira Carvalho.
Archie tinha uma ambição: ser ídolo do Tricolor das Laranjeiras. Caminhava célere para atingir sua meta no futebol. O Fluminense pretendia manter a supremacia, para isso, em relação ao time campeão carioca de 1917, modificou toda sua ala esquerda. O ótimo Machado foi deslocado para a extrema, com Archibald French assumindo o posto de centroavante. Logo no começo do campeonato carioca de 1918 organizado pela LMDT [Liga Metropolitana de Desportos Terrestres] a devastadora gripe espanhola, que chegara à cidade pelo porto, matou milhares de pessoas na cidade, sobretudo entre setembro e dezembro. Archie sucumbiu no dia 29 de outubro de 1918. No final do campeonato, o Fluminense levantou o troféu de campeão e dedicou o título ao bravo centroavante.
O clube mostrava-se extremamente preocupado com o cenário devastador imposto pela influenza. Na semana seguinte após a morte de Archie, os cartolas do clube Mario Pollo e Marcondes Ferraz doaram à matriz da Glória uma quantia em dinheiro para que fosse distribuída às vítimas da gripe. Os dois dirigentes tricolores também colocaram à disposição do vigário a sede do clube, na rua Álvaro Chaves, e médicos para qualquer emergência. Mas não foi somente Archie French o único infectado pela influenza. O time inteiro do Fluminense (ou grande parte dele), que contava, entre outros, com Marcos Carneiro de Mendonça, Welfare e Chico Netto, teria tombado no leito. Para sorte dos tricolores, todos sobreviveram e garantiram não somente o título de campeão carioca de 1918 e, no ano seguinte, o épico tricampeonato, uma das conquistas mais notáveis da história do clube.
Octavio Egydio nasceu em uma família abastada. Era filho do ex-senador e abolicionista Paulo Egydio de Oliveira Carvalho, fundador do Instituto de Sociologia de São Paulo, diretor do antigo Diário de São Paulo e colaborador do também extinto Correio Paulistano. Quando morreu no dia 24 de outubro de 1918 após contrair a gripe espanhola, Octavio tinha somente 26 anos. Ele, que se formara em direito em 1916, casara-se com Alda Cavaliere sete meses antes do óbito. Uma tragédia sem precedentes.
Octavio defendia a Associação Atlética Palmeiras (nada a ver com o atual Palmeiras), que rivalizava com o Paulistano, de Friedenreich e Rubens Salles. Era um dos principais nomes do futebol paulista daqueles primeiros 20 anos. Após sua morte, o craque deu nome à taça entregue ao campeão do torneio início do campeonato paulista de 1922, no caso, as sua querida A.A. Palmeiras.
Outros dois famosos nomes do futebol tombaram na cama: Píndaro de Carvalho, notório zagueiro do Flamengo e da seleção brasileira que conquistaria o campeonato sul-americano do ano seguinte, e Belfort Duarte, fundador do América do Rio. O primeiro permaneceu no Rio durante a convalescença; o segundo seguiu para se recuperar da enfermidade em uma fazenda do interior fluminense. Os dois escaparam do pior. Do Botafogo, o caso mais famoso foi o do uruguaio Beheregeray, um dos melhores do time. Ele adoecera em outubro de 1918 e no mês seguinte arrumou mala e cuia e se mandou para Montevidéu para se recuperar da epidemia devastadora. Àquela altura, não havia mais condições para se jogar futebol no país.
A gripe espanhola que matava milhões e paralisara o País também forçou a suspensão dos campeonatos estaduais. Por precaução, a CBD [Confederação Brasileira de Desportos] adiou o campeonato sul-americano no campo do Fluminense (que ficaria para 1919, tendo o Brasil como campeão) e os jogadores tiveram de devolver à entidade máxima do esporte nacional o dinheiro adiantado para a viagem ao Rio de Janeiro. Os paulistas Neco, Amílcar Barbuy e Friedenreich gastaram tudo e foram punidos. Nova crise instaurou-se entre a Apea [Associação Paulista de Sports Athleticos], imprensa paulista e CBD. Coelho Neto interveio e os ânimos se acalmaram.
A gripe, por sua vez, deu uma trégua. O país e o futebol retomaram suas atividades.
A gripe espanhola foi a primeira de outras epidemias que mexeriam com o futebol, mas não tão devastadoras como ela. Entre 2002 e 2003, a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) causou um rebuliço no calendário do futebol, levando a Copa do Mundo de futebol feminino da China para os Estados Unidos. Em 2006, outra gripe (a aviária) quase impediu a realização da Copa do Mundo. Por pouco a Fifa não desistiu da Copa. Agora, com o avanço mundial do coronavírus, o mundo do futebol volta a se preocupar. Na Itália, país europeu mais atingido pela epidemia, partidas do campeonato italiano foram adiadas e outras foram realizadas com portões fechados.
Não quero, juro, voltar a ter medo das histórias da minha avó.
SAULO CEROULA
por Jonas Santana
Já não bastava ter um zagueiro por nome de Todo-Duro agora vinha o Saulo Ceroula (era mais fácil gritar Ceroula que Saulo), aquele volante clássico, pequeno, mas firme no desarme e milimétrico nos passes, maquiavélico e preciso na armação das jogadas.
Como cada um naquela equipe, ele também lembrava jogadores épicos, e Ceroula tinha características de craque. Uns diziam que na qualidade do desarme era tal qual Clodoaldo, um dos mais elegantes e altivos líberos (os mais jovens irão perguntar o que é isso), que marcou época no Santos e na seleção brasileira (bons tempos!!!). Outros juravam que era o Batista do Inter ou mesmo o Toninho Cerezo (do Atlético Mineiro) numa versão mais reduzida. O fato é que Saulo era realmente um deslinde na frente da zaga, fosse armando ou frustrando o ataque dos adversários, coisa comum para ele.
Nosso craque tinha lá suas peculiaridades e suas exigências, tais como usar somente chuteiras de trava alta, talvez para dar maior segurança ou, quem sabe, aumentar alguns centímetros em sua altura. Usar gel no cabelo mesmo que fosse dia de chuva era outra. Ou ainda usar a camisa por fora (numa época que isso dava cartão) com os meiões arriados.
Mas nada disso tirava o brilho daquele time nem dos seus craques, inclusive do próprio Saulo, um simpático analista de sistemas durante a semana e um craque nos fins de semana naqueles campos, muitas vezes enlameados, muitas vezes em gramados que mais pareciam tapetes!! E toda a equipe era um espetáculo à parte, alegrando aos torcedores e amantes do futebol.
E foi numa dessas partidas que ocorreu um episódio que marcou nosso atleta e deu origem ao segundo apelido (o primeiro era Saulinho, óbvio!). Foi o seguinte:
Jogo do time do Ceroula contra um combinado do município. Jogo duro, pegado, onde cada dividida voava faísca e onde os melhores estavam em campo.
Dirran, Nerrôda, Zé Rosca, Pedro Preto, entre outros eram os atores daquele jogo catimbado, onde Nego Jordan (que depois seria contratado para fazer a meia cancha com Saulinho) estava acabando com o meio campo adversário, tanto no desarme quanto nos lançamentos, que deixavam quase sempre os atacantes de frente para o grande Quiabo, aterrorizando a de dupla de zaga Lila e Todo Duro que já estavam desesperados. E aconteceu…
Orlando Touro (como sempre, ele) recebe a bola na meiuca (apelido do meio campo, mais precisamente do círculo central), parte para cima de Saulinho (até àquela altura do jogo) e dá uma gingada de corpo que faz com que nosso atleta se desequilibre. Aliado a isso, a trava alta segurou o pé do craque no gramado que, incontinenti, ao ver escapar ali o seu algoz não tem dúvidas e lança mão da seu último recurso: puxar-lhe o calção. Nosso jogador só não contava com o inusitado da situação nem com a força do Touro, que dispara e, sem perceber, deixa o calção rasgado na mão de Saulo, ficando somente de ceroulas, aquelas conhecidas como samba-canção, especificadamente uma azul de cetim, com figurinhas de urso, que além de brilhar com o reflexo do sol, fez com que todo o estádio viesse abaixo num grito uníssono de Ceroula!!!! Ceroula!!!!
Diante de tal episódio restou-lhe o cartão vermelho, e a herança do nosso jogador, que agora era mais conhecido como Saulo Ceroula, epíteto que o acompanhou durante toda sua carreira, encerrada antecipadamente por causa de uma pequena lesão nos joelhos.
Mas mesmo assim nosso craque desfilou por bastante tempo seu talento, sempre ouvindo os gritos da torcida sempre que pegava na pelota. E a fama o perseguia até o pendurar de suas chuteiras.
Dizem que depois de algum tempo, em sociedade com Dirran, montou uma fábrica de peças intimas. Mas a pecha da Ceroula continuou.
Jonas Santana Filho é funcionário público, escritor, gestor esportivo e amante do futebol. O bom futebol.
Jonassan40@gmail.com. Skype jonassan50
A OUSADIA DO PATROCÍNIO
por Idel Halfen
Patrocinar atletas é uma das decisões mais difíceis para uma marca, e não me refiro aqui ao sempre presente risco de uma performance abaixo das expectativas, afinal essa é uma das variáveis inerentes ao esporte.
O maior problema, no meu modo de ver, está relacionado às atitudes dos atletas, pois, como qualquer ser humano, são passíveis de ações polêmicas, muitas das quais com forte poder de polarizar a sociedade, o que exigirá do patrocinador decisões ágeis sobre as reações.
Peguemos o caso do jogador de futebol americano, Colin Kaepernick, que para protestar contra o racismo ficou sentado durante a execução do hino antes de uma partida. Como era de se esperar, parte da população foi contra a atitude e outra parte foi a favor. Não cabe neste espaço discutir o ato em si, até porque a proposta do blog é outra, todavia é interessante refletir sobre a reação da Nike, sua patrocinadora que, mesmo pressionada pela opinião pública e até vítima de boicote por parte de alguns varejistas, seguiu em frente com a parceria.
Aliás, não apenas preservou a parceria como passou a utilizá-lo como parte de suas campanhas, chegando ao ponto até de cancelar o lançamento de um produto, pelo fato do mesmo trazer impressa uma das primeiras bandeiras dos EUA com apenas treze estrelas e, dessa forma, remeter ao período em que a escravidão era permitida.
O que queremos mostrar aqui é como a empresa se aproveitou de uma situação, provavelmente inesperada, para daí fortalecer os conceitos associados à sua missão: “trazer inspiração e inovação para todos os atletas do mundo”. Não há como negar que a postura de Kaepernick simboliza com bastante propriedade essa missão.
Vemos assim, uma iniciativa que consegue encontrar uma solução de fortalecimento de sua marca em uma situação que muitas empresas prefeririam se omitir, seja rescindindo o contrato ou, pior, mantendo, mas deixando o assunto ser esquecido.
Por mais que se fizessem pesquisas sobre a decisão, nenhuma delas poderia prever que o mercado, no caso as vendas dos produtos da Nike, não seria impactado negativamente no decorrer do tempo, mais ainda os produtos que tivessem alguma relação com Kaepernick.
É certo que logo após o incidente do hino em 2016 suas camisas foram as mais vendidas, porém muitos o fizeram para queimá-las em forma de protesto.
Mas o que chama mais atenção e indica que a Nike acertou em manter e utilizar o citado jogador foi o lançamento do tênis “True to 7”, que traz o retrato do jogador bordado na aba do calcanhar, e mesmo vendido a $ 110 se esgotou no primeiro dia.
Independentemente da polarização que certamente vai existir acerca da polêmica causada pelo protesto realizado no momento do hino, creio que não haja dúvida quanto à eficácia de um trabalho com foco estratégico e que saiba aproveitar os recursos que lhes são disponíveis.
DADÁ E A ‘SOLUCIONÁTICA’ QUE DRUMMOND ADORAVA
por André Felipe de Lima
Poucos são os circos que existem hoje, que encantam crianças e despertam sonhos nelas. Esperança. Raro vê-los nas grandes cidades. Estádio de futebol era igualzinho ao circo de antigamente. Vivia lotado, sobretudo, com crianças. E nem precisava ser Fla-Flu, SanSão, AtleTiba, BaVi ou GreNal. A casa estava sempre cheia. Mas quem atraía essa meninada? Os craques, naturalmente. Alguns deles, nem tão craques assim, mas folclóricos. Jogadores impagáveis, que divertiam com gols e… frases. Nisso, Dario, o “Dadá Maravilha”, foi insuperável. “O povo quer pão, terra e circo. O Dadá dá o circo”. E dava mesmo. Impossível sair do estádio sem rir e se deleitar com os seus gols, uns com a popular paradinha no ar. E tome gol e frase também: “Só existem três coisas que param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá”. E não era galhofa do centroavante, que cumpria o prometido.
O carioca Dario José dos Santos nasceu no dia 4 de março de 1946 com uma missão: dar espetáculo sem, contudo, esquecer o marketing pessoal que compensava a pouca técnica em campo. Fazia gols pra burro, é verdade, mas não era craque. O próprio reconhecia a limitação. “Eu me preocupei tanto em fazer gols, que não tive tempo de aprender a jogar futebol”. Mas Dadá era um marqueteiro de mão-cheia. O primeiro jogador a se autopromover com desenvoltura. Durante os 21 anos em que jogou bola como profissional, não houve nada parecido com Dadá “Peito-de-aço”, apelido que recebeu do locutor Vilibaldo Alves. Dario foi herdeiro da alegria e espontaneidade de Garrincha. E só. Simplesmente porque Garrincha não deixou herdeiros de seu futebol. “Depois do Garrincha, Dadá é a maior alegria do povo”. Como discordar de Dario, se para tudo ele encontrava resposta? Se precisavam de artilheiro, lá estava. Mas se a ocasião clamava por um festeiro para alegrar a torcida, Dadá “ao seu dispor”. Esse era o “Rei” Dadá… cuja infância foi traumática e nem um pouco romântica.
Ao ouvi-lo ou vê-lo jogar nem percebíamos que antes do alegre e simpático Dadá Maravilha existiu o menino Dario. Um garoto muito pobre que cresceu nas ruas de Marechal Hermes, subúrbio carioca. A mãe ateou fogo ao próprio corpo. Dario viu tudo. Tinha apenas cinco anos de idade quando a mãe morreu de forma tão trágica. Muito difícil para uma criancinha assimilar. Muito doloroso. Até hoje Dario evita falar sobre o episódio. Todos entendemos.
Sem referencial na família, criado em um orfanato longe do pai e irmãos, o menino encontrou na rua o seu “lar”. Tinha fome, não tinha dinheiro. Lógica pérfida, mas não tinha escolha. Dario então roubava para comer. Foi preso, ainda menor de idade, e levado para antiga Funabem. Na instituição conheceu uma bola de futebol. Santa providência. A bola mudou o destino de Dario, que prometera a si mesmo nunca mais assaltar ninguém. Esforçou-se e até um emprego na Light, erguendo postes e esticando fios condutores de energia elétrica, ele arrumou. Mas queria mesmo é jogar bola. Fez testes em praticamente todos os clubes do Rio. Nenhum o aprovou o garoto desengonçado, que se embaralhava com as próprias pernas.
O único clube a abrir as portas para o jovem foi o Campo Grande, em 1965. Dario é quem fez a oferta. Se lhe dessem um prato de comida, treinaria e jogaria pelo clube, sem problemas. No ano seguinte, foi promovido dos juniores à equipe principal. Antes, porém, ouviu do treinador do Campo Grande, Gentil Cardoso, uma desanimadora opinião: “Sai pra outra, garoto. Futebol não será o teu forte. Se for depender dele, vai morrer de fome. Arranja rápido outra profissão.” Dario ouviu, em parte, o “conselho” de Gentil. Arrumou um emprego na fábrica de bebidas Dubar e manteve-se no clube para dar a volta por cima. Até 1968, a grande sensação do time da zona oeste do Rio era Dario, que marcou 15 gols na temporada.
Jorge Tavares Ferreira, diretor do Atlético Mineiro, viu em Dario algo muito especial. Talento, com certeza não. Mas era uma aura, um carisma que nenhum outro jogador da época ostentava. Pagou 110 mil cruzeiros e o levou para Belo Horizonte. Superava as deficiências técnicas com extrema e comovente força de vontade. Em 1968, Dario encantou a todos no Galo. Bem, quase todos. Encantou poucos, para sermos sinceros.
Os primeiros treinadores com os quais trabalhou em Belo Horizonte, Aírton Moreira — este, seu primeiro treinador no Galo e quem solicitou à diretoria do Atlético a contratação de Dario, deixou-o meses na reserva — e Fleitas Solich, nunca repararam nas qualidades de Dario. Para eles, um jogador “bonde” como ele, que se atrapalhava com a bola, deveria procurar outra coisa para fazer ao invés de insistir com o futebol. Muitos jogadores do elenco ridicularizavam-no. Exceção feita a dois deles. “Tive dois companheiros que me estenderam a mão no Atlético: o Lola, que tentava me enturmar, e o Ronaldo Drummond, que acreditou em mim desde o começo”.
Dario, ainda rapaz, muito pobre e com um histórico familiar dos mais complicados, encontrava forças sabe-se Deus onde para suportar as humilhações a que era submetido. “Cheguei a levar pedrada de torcedor […] chorava no vestiário, tamanha a humilhação”.
Novos tempos viriam e com eles a primeira oportunidade sob a tutela do técnico Dorival Knippel, o Yustrich, que chegou ao Galo para comandar o time durante o Torneio Roberto Gomes Pedrosa de 69. Durão a toda prova. Não amolecia com nenhum jogador. Por isso uma vez sim e outra também era odiado por profissionais do futebol. Na lista, jogadores, médicos, preparadores físicos, auxiliares, massagistas… principalmente treinadores, como João Saldanha.
Yustrich não era fácil. Mas foi o alemão grandalhão quem primeiro acreditou em Dario, que havia chegado ao Atlético como contrapeso de uma negociação que envolvia outro jogador que acabou não dando certo no Alvinegro. Yustrich lapidou Dadá, que passou a ler a Bíblia sob recomendação de Cleice, sua esposa. Dali em diante, tudo mudaria, como descreveu Ricardo Galuppo. “Eram 150 cabeçadas e pelo menos duzentos chutes a gol por dia: Dario seguiu a orientação ao pé da letra. Todos os dias, chegava à Vila Olímpica às seis da manhã, duas horas antes dos outros. O roupeiro Walter Lopes sempre estava lá para ajudá-lo […] terminada a sessão, tomava um banho rápido e se alimentava com uma vitamina de leite, banana e biscoito Maria. Depois, voltava ao campo com outros jogadores para mais quatro horas de atividade”.
A imprensa mineira implicou com a contratação de Dario, que, cansado do achincalhe, partiu para o contra-ataque retórico: “Todo mundo metia a ronca em mim. Diziam que o futebol mineiro trouxe mais um bonde do Rio de Janeiro. Aí pensei, se não sou eu que falo bem de mim ninguém mais vai falar! E comecei a abrir a boca”. Naquele momento o Dario “publicitário” dava os seus primeiros passos. Começou a falar e não parou mais. De falar e fazer gols. Gols que, primeiramente, abalaram a União Soviética em sua estreia no Mineirão em 2 de março de 69.
Estava com medo de entrar em campo para enfrentar os soviéticos e milhares de pessoas na arquibancada. Yustrich ameaçou aplicar-lhe umas porradas. Dario mudou de ideia e jogou. Fez os dois gols da vitória e saiu sob a maca, com o supercílio sangrando e ouvindo um Mineirão enlouquecido ecoar o seu nome. Pronto, o patinho feio agora era cisne. Yustrich, no fundo, o admirava muito. “É o melhor goleador do Brasil. Não tem a classe de Tostão, nem o toque de bola do Dirceu Lopes. Mas é o jogador mais eficiente, o que rende mais, seja qual for o time”.
Difícil contestar Yustrich e os fatos.
Quando o Galo e o Uberlândia entraram em campo no dia 1º de maio de 1969, Dario e Tostão dividiam a artilharia do campeonato, ambos com 17 gols. Lá pelas tantas do jogo, o juiz apitou um pênalti a favor do Atlético. Yustrich mandou Amauri bater o penal, mas a torcida protestou. Queria Dario, que bateu na bola para marcar seu quinto gol na peleja e decretar a vitória pelo placar de 6 a 3. Fim de jogo, ele foi carregado pelos torcedores e confessaria, em seguida, ter sido aquele um dos dias mais felizes de sua vida.
São gols como estes que começaram a desbancar Tostão, o grande ídolo e goleador cruzeirense, e o consagraram artilheiro do campeonato mineiro de 69, com 29 tentos assinalados [recorde da Era Mineirão], e o levaram à seleção brasileira. Uma convocação, no entanto, polêmica.
A seleção de 70 foi um panteão de craques. Tostão, Pelé, Carlos Alberto, Piazza, Rivellino, Gérson… lista infindável. Dario destoava. Só chegou ao escrete — uns confirmam, outros não — por influência política do então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, que teria intimado João Saldanha para que pusesse o nome de Dario na lista, sabe-se lá o porquê. Saldanha bateu o pé e disse não ao militar ou ao AI-5, quem sabe. Quando se preparava para decolar para o México, foi retirado do avião por agentes do governo e, em seu lugar, puseram Zagallo.
João Saldanha contou, em 1983, a sua versão do caso “Dario” ao repórter Geneton Moraes Neto: “Fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici — que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje […] Quiseram impor a convocação de Dario — por sinal, um bom jogador. Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivellino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma”.
O ex-treinador insinuou que a convocação de Dario consistiria em uma tentativa do governo militar em mostra-se mais simpático aos olhos dos mineiros. “Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada [N: mesura, elogio exagerado] pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho — do Santos — um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite”.
A resposta de João “Sem medo”, como definiam o gênio impetuoso e franco de Saldanha, foi curta e grossa, mas as consequências do gesto altivo não foram nada profícuas para o técnico: “Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso […] Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: ‘Ou bota Dario ou sai fora’. Chegaram e me disseram: ‘João, não podemos aguentar mais! Faça isso!’”.
João Havelange, presidente da CBD na época, estava desesperado com a tal pressão atribuída ao Médici, como narrou João Saldanha: “João Havelange dizia: ‘Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!’ Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil [N: na época da Copa, João Saldanha já tinha sido substituído por Zagallo]”.
SERIA IMPLICÂNCIA DE SALDANHA?
Há quem acredite que antes da indisposição entre Médici e Saldanha, o segundo implicava com Dario e com o Atlético desde os tempos em que era colunista esportivo do jornal Última Hora, do Rio. Galuppo afirma que a rusga começou quando o Botafogo perdeu no cara e coroa para o Atlético uma vaga na fase seguinte da Taça Brasil de 1967. Indignado com a desclassificação do “seu” Botafogo, Saldanha alfinetou o clube mineiro em sua coluna.
A antipatia de Saldanha pelo Atlético dirigido por Yustrich era flagrante. Alheio aos bastidores políticos, Dario acirrou-a ao marcar o segundo gol do Galo na vitória de 2 a 1 sobre a seleção brasileira, já com o João “Sem medo” de técnico, no dia 3 de setembro de 1969. Vale destacar que o Atlético entrou em campo com o uniforme vermelho da Federação Mineira. Após a partida, Dadá levantou a camisa e mostrou à torcida a blusa do Atlético que vestia por baixo. Começava a pressão para que Saldanha o convocasse.
Galuppo cita que a origem, de fato, do clamor por Dario no escrete de 70, foi involuntária. Que Médici não teria feito tal pressão, pelo menos num primeiro momento, quando foi entrevistado por Armando Nogueira, que assinava uma coluna de esportes no Jornal do Brasil: “Repórter de muitos quilates, não perdoou a chance de fazer algumas perguntas sobre futebol — j[a que outros temas estavam fora de cogitação naquele tempo. A respeito do centroavante atleticano, Médici disse, única e tão-somente, que admirava suas qualidades de artilheiro. Não falou mais que isso, e foi exatamente o que Nogueira publicou — nem meia palavra mais. Na boca dos que conspiraram contra Saldanha, a frase ganhou uma tradução: ‘O presidente quer Dario no lugar de Tostão’”.
A seleção voltou a campo no dia 4 de março de 70 contra os argentinos, que sacudiram as “feras” do João derrubando-as por 2 a 0. Lá pelas tantas um repórter perguntou ao Saldanha como estava a saúde de Tostão, que por pouco não perdeu a visão do olho esquerdo ao levar uma bolada em outubro de 69. O treinador respondeu que estava tudo bem com ele. O repórter insistiu e emendou que Médici queria Dario no time. Foi sintomático. Contrariado, o impulsivo João Saldanha desferiu: “O presidente escala o ministério dele e eu escalo meu time”.
Yustrich, que gostava muito de Dario “Peito-de-aço”, trocou o Galo pelo Urubu. No Flamengo, o “alemão” começou a falar mal de Saldanha. Duas semanas após a derrota das “feras” para os portenhos, Yustrich acirrou o discurso contra o treinador da seleção, que foi à concentração do Flamengo atrás do ex-técnico do Atlético com um revólver na mão e decidido ir às vias de fato. Mas não o encontrou. O episódio precipitou a demissão de Saldanha. João Máximo, que o biografou, assinalou que gente de dentro da própria comissão técnica conspirava contra o treinador. E deu nome aos bois. “Os demais membros da comissão técnica — Passo, Chirol e Lídio — tinham apenas participado da farsa para derrubar Saldanha”. Mas o que surpreendeu mesmo em meio ao imbróglio foi a afirmação de Máximo de que Médici “gostava” de João Saldanha. “É segredo guardado em caixa-forte que o general Emílio Garrastazu Médici tinha por João Saldanha uma admiração sem limites”. Durma-se com um barulho desses…
Dadá, que não tinha nada a ver com a briga de Saldanha com Yustrich e Médici, acabou embarcando para o México. Foi como espectador privilegiado. Sequer entrou em campo. Na final contra os italianos até tentou convencer o supersticioso Zagallo de que sonhara com três gols que marcaria na Itália. Zagallo não caiu na conversa fiada de Dario. Mas não perdeu a esportiva: “Olha, gente, o Dadá sonhou que vai fazer três gols na final. Não tem ninguém que queira dar o lugar para ele?”. Embalado no bom humor de Dario, que contagiou a todos, Pelé levantou o braço: “Por mim tudo bem, se a gente já começa a final ganhando de 3 a 0”. Dario ficou no banco e o resto, bem… Brasil 4 a 1 e Pelé coroado Rei do futebol. Dadá sempre respeitou Pelé: “Garrincha, Pelé e Dadá têm de ser currículo escolar”. O goleador do Atlético fazia, no entanto, uma ressalva: “Pelé foi o maior jogador do mundo de todos os tempos. Mas nunca vou dizer que é melhor do que Dadá”.
Dadá Maravilha vestiu canarinho em 13 jogos e marcou dois gols. Pouco para a extraordinária média dele, que sempre criou o costume de batizar cada gol que assinalava. Quem lhe deu a dica para nomeá-los foi um professor de língua portuguesa com quem Dario bateu um papo no centro de Belo Horizonte.
Dia de jogo, aquela convenção de jornalistas empoleirada em Dario, que contou a historinha do tal professor aos atentos homens de imprensa: “Em homenagem ao professor, vou marcar o ‘gol cultura’ contra o América”. Dadá marcou o “gol cultura” e todos os jornais estamparam a notícia no dia seguinte. Também estampariam tempos depois fotos de Dario, o grande destaque do Galo campeão do Brasil em 1971, autor do gol [de cabeça!] do título em jogo contra o Botafogo. Dadá calou um Maracanã apinhado de gente e terminou a competição como artilheiro do certame ao assinalar 15 gols, feito que repetiria no Brasileirão seguinte, com 17 gols.
O próprio Dario destacou, no entanto, outro motivo que o fez frasista incomum no futebol brasileiro: ciúmes de Pelé. “A imprensa só falava dele e achava injusto. Havia um tempinho para os outros jogadores que chamavam a bola de você. Como eu chamava de Vossa Excelência, precisava arrumar um jeito de despertar a atenção do público e da mídia. Foi um sucesso. A imprensa do Brasil todo queria saber na sexta-feira qual era o nome do gol do domingo. O público aumentou nos estádios. Minha torcida ia conferir se eu marcaria o gol prometido. Os rivais iam para me xingar”.
Dario balançou as redes pelo Atlético 211 vezes em 290 jogos. Marca que faz dele, atrás de Reinaldo, o segundo maior artilheiro da história do Atlético Mineiro, clube que defendeu de 1968 a 73 e em 74, 78 e 79. Além da artilharia do campeonato mineiro de 1969, Dario repetiu o feito em 1970 [16 gols], 1972 [21] e 1974 [24]. Em clássicos contra o Cruzeiro, foram oito gols de Dadá.
Mas quem pensa que a vida de Dario no Galo era maré mansa, enganou-se. A amigos revelou que as conquistas pelo Atlético e o tricampeonato mundial no México não engordaram seu cofre. O salário era tão minguado que Dario mal conseguia pagar contas de luz, que invariavelmente acabava cortada por falta de pagamento.
Após o título de 1971, a crise financeira do Atlético era bastante incômoda. Insustentável. O clube devia 1 milhão de dólares ao Banco Mineiro do Oeste, que acabara de sofrer intervenção do Banco Central. A debandada foi geral. Vaguinho foi para o Corinthians e Minas Gerais inteiro bradava que sem o ponta-direita, o Galo estaria “morto”. Em resposta, as frases de Dario tornaram-se mais constantes. E contundentes, emblemáticas. A um repórter que perguntou sobre a saída de Vaguinho, Dario respondeu a célebre “não venha com a problemática, que eu tenho a solucionática”. Dadá disse isso no dia 15 de agosto de 1971, um domingo em que o Atlético disputava um jogo amistoso contra o Corinthians. A semana inteira Dario foi a pauta principal dos jornais e colunistas esportivos. Motivo de chacota para os jornalistas, mas não para um gênio literário: Carlos Drummond de Andrade. “Eis aí. Dario disse mais do que disse, dizendo apenas sobre futebol. […] sua frase me parece digna de ser inscrita entre as manifestações mais autênticas de sabedoria”.
Vida de craque do passado não era fácil. Um dia o inferno, noutro o paraíso garantido, por exemplo, em palavras redentoras como as escritas pelo poeta.
Com o preço do passe estipulado para quem quisesse pagar, Dario acabou deixando o Atlético em 1973 e trocando-o pelo Flamengo. “Agradeço sempre a Deus pela dádiva que pelo Atlético em minha vida. E sinto muito orgulho de ter marcado o gol mais importante da história do clube”.
Em curtíssima temporada na Gávea, Dario assinalou 35 gols e teve o passe emprestado ao Galo, que cedeu Vantuir ao Flamengo como compensação. Mal esquentou a posição no ataque alvinegro, foi novamente negociado para o futebol pernambucano. E o Sport Clube Recife encantou-se com Dario, que não foi campeão, mas marcou muitos gols entre 1974 e 76. Foram 94. Dez deles num só jogo durante goleada de 14 a 0 sobre o Santo Amaro. Um recorde absoluto. Nada de Pelé, ou Jorge Mendonça, que marcaram oito numa só partida. Dadá é o maioral. Foi artilheiro dos estaduais de 74 e 75, com 32 e 30 gols respectivamente.
Missão cumprida em Pernambuco, hora de arrumar as malas e botar o pé na estrada. Em 1976, o goleador iniciou expediente no Beira-Rio.
Se o Galo foi importante na vida de Dario, o Internacional de Porto Alegre não ficou atrás. No clube gaúcho, repetiu o sucesso de 1971 e foi campeão brasileiro e artilheiro da competição, com 16 gols. O Colorado tinha um timaço: Manga; Cláudio, Figueroa, Marinho e Vacaria; Caçapava, Falcão e Batista; Valdomiro, Dadá e Lula.
Entre 76 e 78, Dario foi também campeão gaúcho em 76 e marcou 28 gols pelo Alvirrubro. Era o que melhor sabia fazer, além das folclóricas frases, que deveriam estimular, em alguns, gargalhadas homéricas, em outros, profunda reflexão. “Num time de futebol existe nove posições e duas profissões: o goleiro e o centroavante”. Dublê de craque e também filósofo. Dadá é uma figura…
GOLS… MUITOS GOLS
“Com Dadá em campo não existe placar em branco” ou “Enquanto os beques ladram, Dadá passa”. Não se sabe se é por brincadeira, mas Dario garante que marcou 926 gols. As estatísticas oficiais apontam, no entanto, 559. E foram gols de todos os jeitos. Com ele, o que importava era ver a rede balançar. “Não existe gol feio, feio é não fazer o gol”. Essa virou clichê, mas é do repertório vastíssimo de Dario, que, na Ponte Preta, ajudava a Macaca a brilhar em 1977, com 21 gols. Enquanto o seu querido Atlético, amargava no mesmo ano — sem perder um jogo sequer — o bicampeonato brasileiro para o São Paulo.
O craque do time era Reinaldo, que acabou se machucando no ano seguinte. “Chamem o Dadá!”, alguém da diretoria do Galo deve ter bradado. E o artilheiro das causas impossíveis estava, novamente, no Atlético. Seu pé-quente era infalível. Marcou gols, falou bastante e abriu a série de títulos do Galo, em 78, que levaria o clube ao hexacampeonato estadual. “Tenho o olho balístico da águia para vislumbrar o gol, a velocidade do falcão para ultrapassar os marcadores e a impiedade do abutre para estraçalhar os adversários”. Dadá era demais!
O Sudeste e o Nordeste, “Beija-Flor” já os conhecia bem. O Sul, idem. Faltava desbravar o Norte. De mala e cuia para Belém, em 79, onde vestiu o belo uniforme do Paysandu e marcou 17 gols. Depois veio o Náutico, em 80, com um Dario inspirado: 26 gols. Permaneceu por Recife e, no ano seguinte, vestiu tricolor. No Santa Cruz, Dadá não foi bem. Escassez de gols. Apenas sete. Mas o artilheiro gostava do futebol nordestino. Defendeu os grandes de Pernambuco. Precisava compor o currículo com algum time baiano. O Bahia foi ideal.
Com o Tricolor, conquistou o campeonato baiano de 1981, marcou 48 gols até 1982 e tornou-se o “Rei da Massa”. Quem sofreu com o “Beija-Flor” foi o rival Vitória. Em jogos do clássico Ba-Vi, ele marcou três gols. Uma curta, porém gloriosa jornada baiana, que fez de Dario um líder de audiência do quadro Gols do Fantástico, da revista eletrônica dominical da TV Globo. Muita gente hoje na casa dos 40 anos ficava acordada até tarde só para ver os gols narrados por Leo Batista.
Depois da façanha na Bahia, Dario defendeu Goiás em 1983, sendo campeão estadual. O seu último título na carreira. O craque passou também por Coritiba [83], América Mineiro [84], Nacional de Manaus [84 a 85], XV de Piracicaba [85], Douradense do Mato Grosso do Sul [86] e Comercial de Registro, no interior paulista, onde descansou os pés e guardou as chuteiras para sempre em 1986. Mas sem trauma ou depressão. Nada disso. Levou numa boa o fim da carreira. “Quando eu era profissional, tinha uma grave lesão no coração… de tanto colocar faixa de campeão”.
Dario só não foi original em uma coisa: despedir-se dos gramados decidiu ser treinador. Deu-se mal na Ponte Preta e em outros clubes menores. O dinheiro começou a sumir. Se quando jogador os salários já não eram lá aquelas coisas, imagine agora, aposentado? Havia, porém, uma solução. Se Dadá foi um showman dos gramados, por que não levar o mesmo estilo para a outra área? A TV brasileira acabou ganhando um comentarista de futebol, que cobriu pela TV Globo a Copa do Mundo de 2002. Mas a emissora da família Marinho teve de coçar o bolso para transmitir as pérolas de Dario. Pagaram a ele o triplo do que ganhava na TV Alterosa, repetidora do SBT, em Minas Gerais.
A primeira vez de Dario como comentarista aconteceu durante um jogo entre Inter e Galo, pelo Brasileirão. Os dois clubes onde a estrela reluzente de Dadá Maravilha mais brilhou. “Dadá não é eterno… mas a história de Dadá é”. Conte outra Dadá, que a galera gosta de ouvi-lo.