O FIGURINO DO AMOR E DO FUTEBOL
por Wendell Pivetta
Tem magias que só o futebol reserva. Ser fotógrafo na beira da quadra ou do gramado apresenta histórias lindas, e acaba atraindo amizades muito agradáveis com os atletas, sejam eles profissionais ou não.
Em 2019 ocorreu a primeira experiencia em minha nova jornada fotográfica quanto ao futsal feminino. O citadino na cidade de Cruz Alta reuniu um bom número de equipes, e foi nas fotos de comemorações que percebi algo além da quadra. Entre as equipes finalistas da competição estava a ALF. O time treinava bastante e vinha bem encaixado, e diferente das demais equipes, tinha no comando técnico a personagem de nossa história, a Carolaine. Treinadora e jogadora, percorreu um caminho duro para chegar até a competição fisicamente e mentalmente bem.
– Eu tive problema de saúde, um Cavernoma Cerebral (quase um aneurisma). Não sabia se ia poder jogar, fora que eu tenho lCA rompido, mas em todos os jogos eu não senti nada, somente na final eu senti.
É fato que diante das dificuldades, buscamos forças para superação, e o amor é uma bela arma para superarmos as barreiras da vida. Um sentimento que nos reserva forças imensuráveis, no caso da atleta pelo futebol, e por uma pessoa em especial. Cada gol de Carolaine era uma comemoração simples, porém forte. Um abraço como fora repetido durante a competição. E nestes abraços, sempre fotografados, percebi que a atleta buscava alguém em especial no meio da equipe:
– Comemorar com ela era como se eu quisesse pausar nessa foto aí e não sair mais. Com certeza sentia algo extra quadra, porque a gente sempre quis comemorar gol juntas nesse campeonato, era um sonho. Infelizmente não estávamos juntas, mas ali dentro era o único momento que a gente podia chegar mais perto sem receio sabe.
Carolaine relata seus momentos de abraços calorosos após os gols com a sua namorada, a artilheira Ana Kelly.
– Então era emoção, gratidão, alegria, saudade. Olhar pro nosso time que nós montamos e preparamos o ano inteiro para jogar. As gurias tão novinhas. A gente só sentia orgulho e queria dar tudo de nós pra cada uma delas, eu como treinadora e jogando lá dentro vi o quanto elas são esforçadas para me mostrar o melhor.
Naquela competição municipal elas estavam separadas fora de quadra, e após o citadino, reataram sua relação. Hoje fica como aprendizado. Aliás, em sete anos de relação, a dupla foi logo na edição de 2019 do citadino jogarem juntas pela primeira vez. Acredite, sempre jogavam como rivais, e exatamente como adversárias a dupla se conheceu. Jogando juntas emoções foram resgatadas e tudo acertado.
Aliás uma brilhante dupla dentro de quadra. Carolaine sempre de cabeça erguida, ótima armadora de jogadas, pensativa na tática. Ana Kelly mais avançada, pronta para dominar os lançamentos de Carolaine e finalizar as jogadas superando a defesa adversária. Uma completa a outra, e vice versa, como manda o figurino do amor e do futebol.
FÉLIX, ELES NÃO SABEM O QUE DIZEM
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
Sabe o que eu acho mais engraçado? Eu ser chamado de nostálgico. Nessa quarentena, algumas emissoras resolveram transmitir Copas do Mundo do passado e não se falou em outra coisa. Os grupos de zap estavam tinindo: “vai começar Brasil x Uruguai”, “viram a arrancada do Furacão?”, o Pelé era demais!”. E saudosista sou eu.
O que mais me incomodou foram as mesas-redondas atuais comentando essas partidas. Deveria ser proibido. Deixei no mudo, claro. Até porque os analistas de computadores engomadinhos seguem falando baboseiras! Não dá para tratarem o goleiro Félix com tanto menosprezo. Félix foi um goleiraço!
Falhava, claro, mas até Pelé dava suas caneladas. Vocês viram quantos chutes errados o Riva deu contra a Itália? Eu já errei dribles, dominei mal e perdi um gol feito contra a Holanda. E o Félix, como todos nós, também errava. Quem acompanhou a carreira dele inteira? Quem tem bagagem para tratá-lo com esse desrespeito?
Outro dia ouvi o Paulo Victor, ídolo tricolor, dizer que antigamente tínhamos grandes goleiros e hoje temos goleiros grandes. Hoje temos atletas, bem diferente de jogadores. Algum jornalista foi medir a grossura das coxas dos italianos, romenos e uruguaios, na Copa de 70, para compará-las com a de Gerson e Tostão, por exemplo?
Hoje todos jogam de camisetinha colada no corpo, com um GPS instalado, para saber quantos quilômetros correram e quantas calorias foram perdidas. O que percorrer a mais longa distância será o mais elogiado pelos fisiologistas. Agora, mande baterem uma falta com precisão, lá onde a coruja dorme! Falar mal do Félix é fácil.
Já joguei com goleiros altos que nunca souberam sair do gol e baixos que tinham uma agilidade impressionante. Ubirajara Mota é um deles. O ditado diz que quanto mais alto maior é o tombo. Hoje o jogador brasileiro mais valorizado na Europa é o goleiro Alisson. Se não é o mais é um dos mais.
E isso só mostra a decadência avassaladora de nosso futebol. Talvez pela desmoralização sofrida por Barbosa, Félix, Waldir Peres e, porque não Jeferson, os treinadores resolveram investir pesado nessa posição. Esqueceram o resto.
É inadmissível falarem mal de Félix. Teve uma carreira brilhante no Fluminense e, reza a lenda, que em 1964, ainda na Portuguesa, de Ivair, o Príncipe, durante um amistoso, nos Estados Unidos, com o jogo já em 9×0 foi colocado de centroavante e fez um gol.
É fácil dizer que Almir Pernambuquinho era brigão, era mesmo, e omitir que ele jogou muita bola. Félix foi um goleiraço. Mas a imprensa prefere colocar holofote na defesa de Banks, coisa de cinema, na cabeçada de Pelé.
Nesse mesmo jogo, contra Inglaterra, Félix salvou o Brasil. O verbo é esse mesmo, “salvou” o Brasil. Quero saber se algum jornalista preocupou-se em saber quanto Gordon Banks mede, se é mais alto que Félix ou se apenas foi mais um baixinho sortudo. Exaltamos Banks e menosprezamos Félix sem conhecer suas carreiras, seus títulos.
Félix, descanse em paz porque eles não sabem o que dizem.
Geraldão
ARTILHEIRO DAS MASSAS
entrevista e texto: Marcelo Soares | fotos: José Manoel Idalgo/Dep. Cultural S.C.C.P.
O encontro estava marcado. Acompanhado do filho, Geraldão iria conversar com o Museu da Pelada no Parque São Jorge, local onde treinou por anos. Com a camisa do Corinthians de 77, emocionou os torcedores que estavam presentes no memorial do clube.
Solícito, calmo e divertido, atendeu a todos os pedidos com a mesma eficiência que tinha para completar os passes dentro de campo. Artilheiro do clube campeão paulista de 1977, com 23 gols, contou sobre a sua infância como boia-fria no interior de São Paulo, sua trajetória, e o momento em que percebeu que realmente, era um dos ídolos do Sport Club Corinthians Paulista.
Manteiga, como era apelidado, viu de perto o nascimento de Sócrates para o futebol, no Botafogo de Ribeirão Preto. Mais tarde, reeditou a dupla com o Doutor e revelou histórias entre os dois na equipe alvinegra.
Geraldão não faria feliz apenas os paulistas apaixonados por futebol. No Rio Grande do Sul, foi amado e odiado. Brilhou pelos dois lados do clássico Grenal, mas foi no Inter que se sagrou campeão estadual e marcou cinco gols nas finais contra o Grêmio, seu ex-clube. De quebra, ainda falou abertamente sobre a posição de alguns diretores gaúchos em certo momento da carreira.
Exaltou tudo o que viveu no futebol, as dificuldades e os caminhos tortuosos por onde passou, questionou a falta de compromisso dos jogadores atuais com os times e, relembrou a jogada do gol do Corinthians contra a Ponte Preta, que tirou o time da fila.
Confira agora no Museu da Pelada, a história de quem sonhou e realizou o desejo de jogar pelo time do coração.
PARABÉNS, ZAGUEIRO
por Claudio Lovato
Entre os muitos motivos de orgulho que todo gremista tem, um dos mais cultuados se refere à linhagem de grandes duplas de zaga que defenderam o clube ao longo de sua história.
Airton “Pavilhão” Ferreira da Silva e Ênio Rodrigues formaram, nos anos 50 e 60, uma “linha maginot” que transformava o objetivo de fazer gols no Grêmio em uma missão das mais árduas. Airton foi o marcador mais difícil que Pelé teve na carreira – segundo o próprio Rei do Futebol.
Na década de 70, Ancheta e Oberdan foram responsáveis por, entre outros feitos, liderar o Grêmio na conquista de um título de fundamental importância para o futuro do clube: o Campeonato Gaúcho de 77, que abriu caminho para tudo o que viria depois. Quando parou de jogar, em 1978, Oberdan foi sucedido por Vicente, outro beque de excelente cepa.
Em 1981, conquistamos nosso primeiro Brasileiro, em cima do São Paulo. E lá estavam Newmar, jovem zagueiro que ganhara a posição do veterano e vitorioso Vantuir, e De León, “El Capitán”.
Luis Eduardo e Edinho, capitão do time, craque de três Copas do Mundo, foram o central e o quarto-zagueiro do Grêmio na conquista da primeira edição da Copa do Brasil, em 1989.
Em 1995, Adilson Batista e Rivarola deram sequência à lendária trajetória das duplas de defensores gremistas, conquistando a nossa segunda Libertadores. No fim daquele ano, ao enfrentar o Ajax (que era, acreditem, a Seleção da Holanda acrescida do genial finlandês Litmanen), o Tricolor de Porto Alegre e do Mundo perdeu nos pênaltis a final do Interclubes, no Japão. Em 1996, ano do nosso bi-Brasileiro, chegou Mauro Galvão, que ora fazia parceria com Adilsom, ora com Rivarola.
Hoje, Pedro Geromel e Walter Kannemann se encarregam de deixar claro que a saga das grandes duplas gremistas continua a todo vapor, firme e forte. Geromito e o Viking. Falando em motivo de orgulho…
Todos eles heróis tricolores.
Então alguém pode se perguntar: mas esse cara não vai falar da primeira Libertadores e, principalmente, do Mundial, em 83?
Ficou para o fim, porque é nessa hora que entra em cena, nesta bela onda de recordações e homenagens, o nome de Jorge Baidek, aniversariante deste 16 de abril.
Nas batalhas de La Plata, Montevidéu, Porto Alegre e Tóquio, e nas outras antes destas, naquele épico e transcendental ano de 1983, era ele quem estava lá, ao lado de Hugo de León, defendendo o Grêmio com uma devoção e uma coragem que só os grandes guerreiros têm.
Prata da casa gremista, ele jogou na base entre 1977 e 80, subiu para os profissionais em 81 e ficou no clube até 90, quando foi para Portugal, onde teve passagem pelo Belenenses. Encerrou a carreira em 95, ano em que jogou no Madureira e, por fim, no CSA.
Jorge Baidek, nascido em 16 de abril de 1960 na cidade de Barão do Cotegipe, no norte do Rio Grande Sul, está de aniversário. São seis décadas de vida completadas hoje. Parabéns, zagueiro! Tudo de bom. Muita saúde e muitas alegrias ao lado dos teus! A nação gremista te agradece por tudo o que deixaste em campo por nós, e por tudo o que dele trouxeste para nós.
ABRIL, NO RIO, EM 1970
por Rubem Fonseca
Tudo começou quando o cara que sentou perto de mim na grama disse, olha só o cuspe do Gérson. Na hora eu não dei importância, eu tinha feito misérias para chegar até ali, mas a minha cabeça estava no jogo de domingo e eu não ligava as coisas umas com as outras. O jogo de domingo ia ser assistido pelo Jair da Rosa Pinto, técnico do Madureira, que já foi cracão do escrete, e uma coisa lá dentro me dizia, Zé, vai ser a chance da sua vida.
Eu disse pra minha garota, que era datilógrafa da firma, não fico de contínuo nem mais um mês, disse também que o Jair da Rosa Pinto ia me ver no domingo, mas mulher é um bicho gozado, ela nem deu bola. Me larga, deixa eu te contar. Levantei da cama, expliquei, porra, se eu jogar bem e o Jair da Rosa Pinto me levar para o Madureira, estou feito, ninguém me segura, mas ela me puxou de novo pra cama e foi aquela loucura, minha garota é fogo.
O cara se chamava Braguinha. Olha o cuspe do Gérson, ele disse, no segundo tempo do treino. Braguinha tinha chegado no intervalo, todo mundo conhecia ele; diziam, ô Braguinha quê que você está achando?, e ele respondia, vamos estraçalhar os gringos. Eu balançava a cabeça e ria pra ele, concordando. Estava querendo me enturmar, eu era penetra e não queria ser posto para fora, era só olhar para mim que os caras viam que o meu lugar era outro, nem como repórter eu podia passar.
Fiquei de olho no Gérson. Jogador de futebol vive cuspindo. Ele passou perto, deu um daqueles passes de trinta metros e cuspiu. Viu? Limpo, transparente, cristalino. Sabe o que é isso?, perguntpu Braguinha. Fiquei na dúvida, será que ele estava esculhambando o Gérson? Está cheio de nego aí que não topa o Gérson, quê que eu ia dizer? Fiquei calado, balancei a cabeça e o Braguinha mesmo respondeu, preparo físico, menino, preparo físico, pra cuspir assim o cara tem que estar tinindo. Vamos estraçalhar os gringos.
O Braguinha me contou que eles treinavam todos os dias e não viam mulher, nem as próprias; não tem nada de Rose não, Jairzinho não bota o pé na Mangueira, o Paulo César não passa na porta do Lebatô, os caras estão levando o negócio a sério. Mulher, nem a mãe.
Eu já tinha ouvido falar nessa coisa de que mulher acaba com o cara e nunca acreditei, mas naquele dia, não sei por que, comecei a achar que era aquilo mesmo e perguntei ao Braguinha, o senhor é médico?, e ele respondeu, não, não sou médico mas estou por dentro, já vi futebol de garoto de dezoito anos acabar por causa de mulher. Porra, dezoito anos é a minha idade. Vê o cuspe do Tostão, ele está meio fudido, o troço no olho, parou seis meses, vê só o cuspe dele. O Tostão passou perto e cuspiu uma bolota de goma branca. Parece “marchemelo”, disse Braguinha, ele está trinta por cento, mas quando chegar no ponto vai cuspir jatinho de água filtrada igual o canhotinha de ouro. Era assim que chamavam o Gérson.
Não eram as roupas, eram os cabelos e o cheiro, essa era a diferença entre Nely e as moças que andavam a cavalo, pensei enquanto vinha pela estrada fazendo exercício, correndo até o ponto de ônibus da Rocinha; eram os cabelos e o cheiro, e as roupas, puxa vida, eu queria ter uma mulher daquelas, mas o cara pra ter uma mulher daquelas tinha que ser no mínimo da seleção. Eu tinha que comer a bola no domingo, do Madureira para a seleção, bola com Zezinho, é goool! A multidão gritava dentro da minha cabeça.
Nely morava num apartamento de sala e quarto na praia de Botafogo, com uma colega que sabia do nosso caso, uma moça meio corcunda chamada Margarida, muito boazinha; quando ia dormir com a Nely ela ia pra sala, deitava no sofá e fingia não ouvir a gemeção dentro do quarto.
Você não gosta mais de mim, disse Nely, faço uma macarronada, você come e agora quer se mandar dizendo que vai para casa dormir. Que história é essa? Você pensa que eu sou boba?
Eu não queria dizer a ela que estava pensando no cuspe do Gérson, pensando no jogo de domingo, e disse, eu não estou me sentindo bem, acho que estou doente, nem sei se dá pra jogar amanhã.
Não está se sentindo bem, gritou Nely, e comeu dois quilos de macarrão? Você pensa que eu sou idiota?
Acho que foi o macarrão, me encheu demais.
Te encheu demais? Seu burro, então por que você está comendo esse pão?, perguntou Nely.
Eu nem tinha percebido que estava comendo pão, eu estava mesmo com a cabeça noutro lugar. Nely virou para a Margarida, que tinha jantado com a gente, e perguntou, Margarida, você acha que alguém pode acreditar no que ele está dizendo? Não sei, disse Margarida, saindo apressada da mesa.
Você vai se encontrar com outra mulher, disse Nely. A cara ossuda dela, o lábio grosso foram me dando vontade, fiquei naquela base, cheguei a dar um passo para perto dela, mas pensei no cuspe do Gérson, o jato transparente entre os dentes, e disse, eu gosto de você, meu bem, mas vê se me entende, hoje não, vê se me entende, hoje não, amanhã de noite. Eu juro pela minha mãe que eu não vou encontrar nenhuma mulher.
Você não tem mãe!, gritou Nely, espatifando um prato no chão.
Era verdade. Eu não tinha mãe, não conheci minha mãe, mas só jurava pela mãe e a Nely sabia disso. Era um hábito.
Eu vou dizer a verdade, eu não estou doente, mas amanhã o Jair da Rosa Pinto, do Madureira, vai ver o jogo, se eu jogar bem ele me leva pra fazer um teste, eu preciso estar em forma, vê se entende, eu disse.
Mentiroso, você vai se encontrar com outra mulher!
Não vou, juro por minha… palavra de honra, um cara me disse ontem, um cara que está por dentro, que o atleta não pode andar com mulheres na véspera do jogo. Tive vontade de dizer mais, com uma igual você então nem se fala, você me deixa no osso, é a noite inteira, sem parar, mas fiquei com medo que ela quebrasse outro prato na minha cabeça.
Fui andando em direção à porta. Nely me abraçou, me soltei do abraço, não dá pé, hoje não dá pé, amanhã de noite eu venho aqui.
Se você for embora não precisa voltar nunca mais, exclamou Nely enfurecida. Quando ela me viu abrir a porta da rua gritou, vai, mentiroso, frouxo, debilóide, ignorante, pé-rapado!
Fui, chateado. Cheguei na pensão, deitei, fiquei um tempo enorme curtindo o esporro que ela tinha me dado. Não me incomodava de ser chamado de mentiroso, nem de frouxo, ora bolas, depois de tudo que eu fiz com ela tinha graça ser chamado de frouxo, duvido que ela arranjasse outro com mais disposição do que eu, mas ser chamado de ignorante, pé-rapado, isso doeu. Só porque era datilógrafa e cursou o ginásio ela não tinha o direito de dizer aquilo de mim, eu era órfão, minha mãe morreu quando eu nasci, meu pai era pobre, morreu logo depois, me deixando na pior, só podia acabar mesmo contínuo, ignorante, pé-rapado. Que que ela queria que eu fosse? Minha tristeza só passou quando me lembrei que o Clodoaldo também era órfão e deve ter passado pelas coisas que eu passei.
Fiquei um tempo enorme acordado, sem poder imaginar coisas boas, pensando na chance, mas sem conseguir imaginar a coisa acontecendo, as jogadas sensacionais, o povo gritando gol. Se me chamassem eu treinava em qualquer time, do Rio, Belo Horizonte, topava o interior de São Paulo, Bahia, qualquer lugar; eu queria uma chance. A única vez que treinei num time profissional foi no São Cristóvão, num dia de chuva, o campo estava um lamaçal. Quem já viu apoiador render na lama? Joguei dez minutos, dez minutos, tinha um monte de sujeitos esperando a vez na fila, só pro meio-campo, todos na mesma aflição que eu. Depois do treino eu falei com o homem se ele queria que eu voltasse e ele disse calmamente, não, obrigado, sem se incomodar com o meu sofrimento, cagando pra mim.
Passei a manhã de domingo na cama. Almocei às onze horas, bife, arroz, salada de alface e tomate, igual a seleção em dia de jogo. Só não tinha champignon. Botei o uniforme numa maleta de plástico, chuteira, calção branco, camisa azul, meias brancas, peguei o ônibus, saltei na Central, peguei o trem.
Seu Tião, o nosso técnico, já estava no campo. Tinha também uma porção de pessoas esperando o jogo começar. Fui pro vestiário mudar de roupa. Seu Tião reuniu a gente para dizer como é que ele queria que o time jogasse. Perguntei, o Jair da Rosa Pinto, do Madureira, já chegou? Seu Tião respondeu, o Jajá da Barra Mansa? Não sei, não vi. Olha, quando você for, o Tiago fica, Gabiru vem buscar jogo, ajudar o meio-campo. Outra coisa, cuidado com o ponta-de-lança deles, o tal de Jeová. Se for preciso, cacete nele.
Quando saímos do vestiário o campo já estava todo cercado de gente, em pé, pois arquibancada não tinha. Tentei ver o Jair da Rosa Pinto, não consegui, ele devia estar por ali, de olho em mim. Senti um frio no estômago. Comecei a pular, esquentando o corpo, sentindo o corpo, sentindo os músculos debaixo da pele, corri, pulei, o frio no estômago passou, que coisa boa sentir os músculos debaixo da pele.
Eles ganharam o cara ou coroa, escolheram o campo. Pirulito deu a saída, atrasando para mim, enfiei de curva para o Gabiru na ponta, mas a bola foi no pé do adversário. Corri pra ver se recuperava a jogada. Enquanto eles triangulavam em cima de mim eu pensava, porra, comecei enfeitando, agora estou igual a bobo na roda, nem sei o que estou fazendo.
O primeiro tempo foi de amargar. Eu dava o primeiro combate no Jeová. Depois que ele passou duas vezes por mim eu resolvi apelar, ia direto no pé de apoio dele. Comecei a ficar nervoso, gritei pro Tião, vê se recua também, porra. O cara só queria ficar no meio do campo, jogando de armandinho, enquanto a gente se fodia ali atrás. Um minuto antes do intervalo, eu dei outro cacete no Jeová. Ele se levantou, olhou pra mim e disse, quê que há, meu chapa? Nós dois cuspimos ao mesmo tempo, meu cuspe saiu fino, mas o dele, filho-da-puta, saiu ainda mais fino. Eu cuspi raspando a boca e soprando o cuspe com força pra fora, enquanto ele, moleque safado, nem abriu a boca, com um barulhinho de traque o cuspe esguichou dos sues lábios fechados.
No vestiário seu Tião disse para mim, Zé, você precisa caprichar mais nos passes. Eu disse, pode deixar. De repente, dei um suspiro, estava sentindo uma coisa esquisita. Disse, desanimado, não era bom eu trocar de vez em quando com o Tiago? Seu Tião coçou a cabeça, não sei, acho melhor você continuar plantando na entrada da área, tática que está dando certo a gente não muda.
Botei uma toalha em cima do estrado e deitei. Não quis pensar em nada, não tinha vontade de imaginar as coisas boas que ainda iam acontecer, um dia. Fiquei calado. Só abri a boca para perguntar, alguém viu o Jair da Rosa Pinto por aí? Ninguém tinha visto.
O sol continuava forte no segundo tempo. De saída o ponta-esquerda deles foi até a linha de fundo, centrou, o Jeová subiu mais que todo mundo, deu uma cabeçada tão forte que o nosso goleiro nem viu por onde a bola entrou. Jeová saiu dando soco no ar, daquele jeito que o Pelé inventou.
Vamos virar esse placar, pessoal, eu disse para os companheiros, botando a bola debaixo do braço e correndo para o meio do campo, pra dar a saída, igual o Didi na final da Copa de 62.
Não viramos. Eles é que fizeram outros gols, chutaram duas nas traves, dominaram o tempo todo. De tanto correr, fiquei no bagaço, a boca seca, não tinha coragem de cuspir pra não ver a bolota de “marchemelo”.
Quando o jogo acabou, ainda dentro do campo, seu Tião me disse, cabeça erguida Zé, isso acontece com todo mundo, tem dia que dá tudo errado, é assim mesmo. Eu estava tão baratinado que só naquela hora percebi que o meu jogo tinha sido uma merda, eu não tinha feito outra coisa senão correr dentro do campo igual um cabeça-de-bagre. Vi, de costas, Jeová conversando com um sujeito. Não dava para ver quem era. Pensei, vai ver que é o Jair da Rosa Pinto, convidando ele para treinar no Madureira. Me senti tão infeliz que não tive coragem de olhar, saber se era ou não era. Corri para o vestiário.
Fui o último a sair. Começava a escurecer. Na sombra da tarde o campo ficava ainda mais feio. Eu estava sozinho, todos tinham ido embora. Fui andando, passei por um monte de lixo, tive vontade de jogar ali a maleta com o uniforme. Mas não joguei. Apertei a maleta de encontro ao peito, senti as traves da chuteira e fui caminhando assim, lentamente, sem querer voltar, sem saber para onde ir.
Fonseca, Rubem, 1925-2020 Feliz Ano Novo / Rubem Fonseca. – [Ed. especial]. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012.