STAY WITH US
Por Israel Cayo Campos
Na terça perdemos o nosso querido amigo que não conhecíamos Rodrigo Rodrigues vítima dessa pandemia que assola o planeta. Um moleque ainda no auge dos seus 45 anos! Com o futuro inteiro pela frente! Um cara alegre, inteligente, versátil, talentoso… São inúmeros os adjetivos positivos em que o poderia o classificar.
É estranho, e ao mesmo tempo normal, nessa era da comunicação, sentir o luto que me atravessa mesmo sem sequer o ter conhecido. Ou ele sequer saber ter tido ideia de minha existência. Contudo, o sentimento de tristeza em nada muda dentro daqueles que já estavam acostumados ao Rodrigo na TV, redes sociais e nos seus shows.
Em um de seus últimos vídeos tocando com sua banda, os Soudtrackers, – Um projeto que reunia além da música, trilhas famosas de cinema e cultura pop – RR, como era mais conhecido, gravou a famosa música Stand by me, de Ben E. King, que diz como título e refrão, “Fique comigo”. A gravação toda feita em casa, era uma forma de incentivar o público a não sair de seus lares diante do problema mundial o qual estamos passando. Como gostaria que você continuasse conosco RR, stay with us…
Mas como a vida prega peças, o ótimo apresentador, repórter, músico e também escritor (quem não leu o livro dele, “London London”, não sabe o que tá perdendo!), teve na mesma famigerada doença que Rodrigo se disponibilizou por meio de seu talento musical tentar combater conscientizando as pessoas, o motivo pelo qual ele não está mais aqui…
RR começou sua carreira na Rede Vida, e logo seguiu para a TV cultura, onde fez vários programas de jornalismo a cultura pop, também acumulando nesse ínterim de 2001 a 2010, passagens por Band e SBT. Uma das brincadeiras que ele levava na boa era quando seus amigos, em especial o Alê Oliveira, dizia que ele já havia passado por todos os veículos de comunicação do Brasil, de escrita, rádio e televisão aberta e fechada. Pode até ser, mas não era pela falta de talento que ele não permanecia por muito tempo nesses meios de informação, disso não tenho dúvidas!
Em 2011, chegou a ESPN, onde segundo o próprio, foi transformado num jornalista esportivo! Mesmo o futebol sendo algo recorrente desde sua infância. Flamenguista apaixonado, era “Deus no céu e Zico na Terra” para o RR. Fico feliz de em seu último ano de vida, o Rodrigo ter tido tantas alegrias com seu clube do coração!
Mesmo nunca deixando a música e a cultura em geral de lado, Rodrigo apresentou diversos programas da emissora e foi o primeiro apresentador do ótimo programa “Resenha”, o qual seu bom humor dava um toque de qualidade que após a sua saída faltou e falta até hoje ao programa!
Sabe-se lá, e nem interessa o motivo, Rodrigo saiu da ESPN, foi fazer programas sobre música na TV Gazeta, mas logo retornaria ao futebol, ao ser contratado pelo Esporte Interativo. Passou a apresentar o programa “De Placa” do canal, com um bom humor e carisma ainda mais apurados que em trabalhos anteriores. Mesmo com o fim do canal, ele ainda continuou a apresentar o programa pela internet.
Há um pouco mais de um ano, ele fora contratado pela TV Globo para apresentar diversos programas esportivos, entre eles o “Globo Esporte” e “Troca de Passes”. Quem não gostaria de trabalhar no maior veículo de comunicação do país? Em teoria estar no auge de sua carreira? Para o Rodrigo parecia a mesma coisa de quando fazia seus programas de início de carreira.
A capacidade de agregar os colegas, e de se relacionar com eles como se os conhecesse a décadas era uma das marcas do RR. Não tem uma empresa pela qual passou por onde deixara desafetos. De onde não seja querido mesmo por quem decidiu por sua saída! Em suas lives na pandemia, ele sabia como levar uma entrevista com alguém bem humorado a pessoas que levam o conteúdo futebol mais a sério. Incrível a sua capacidade de se adaptar! Não à toa em tão pouco tempo o RR já se demonstrou um cara diferenciado no meio da imprensa esportiva. Talvez as melhores palavras para defini-lo tenham sido do seu colega de emissora André Rizek: “Tente não gostar do Rodrigo Rodrigues e falhe miseravelmente”.
Agora não teremos mais as tiradas engraçadas, o bom humor inofensivo, a leveza de alguém que sabia meio que por osmose, como deveria fazer o seu trabalho, e como se adaptar as diferentes linhas e pensamentos existentes nas mesas redondas do futebol brasileiro! A família e amigos presenciais do Rodrigo, minhas sinceras condolências de um amigo que ele nunca conheceu, mas que também sente o luto de uma perda tão irreparável para o mundo. Pois precisamos nesse planeta de mais pessoas com a capacidade de ser humano igual ao Rodrigo!
Vá em paz RR, vamos sentir saudades!
DE QUE SÃO FEITOS OS ÍDOLOS?
por Paulo Roberto Melo
Créditos: Ronaldo Theobald
Segundo o Houaiss, ídolo é pessoa ou coisa intensamente admirada, que é objeto de veneração. O mesmo autor, em seu dicionário, diz ainda que, na tradição judaico-cristã, ídolo é um indivíduo real, uma imagem representativa de uma entidade fantástica, ou a própria entidade, considerados, de maneira equivocada e herética, portadores de atributos divinos – a quem, Dona Cotinha ensinava no catecismo da Paróquia Santo Afonso, na Tijuca, não se deve cultuar, pois divino e perfeito só Deus. Sendo assim, eu, pecador, me confesso: sim, em garoto, eu clamava pelo socorro do meu ídolo, Roberto Dinamite, nas terríveis batalhas travadas na grande área, pela sua bomba milagrosa e indefensável que, a qualquer instante, viria nos redimir.
Bem, é isso. Como acredito que ficou bem claro, no futebol, o meu ídolo sempre foi o Roberto Dinamite. Admirava nele a enorme capacidade que tinha para fazer gols de todas as formas: de cabeça, com ambos os pés, de falta, de pênalti. Seus mais de setecentos gols na carreira falam mais do que minhas pobres palavras.
Considerava admirável nele o fato de muitas vezes fazer, dois, três gols em uma partida. Quando fez cinco gols no Corínthians de Sócrates, Caçapava, Jairo e outros, foi memorável! Mesmo quando o time do Vasco não era bom, era só lançar ou cruzar uma bola para o Roberto, que nascia uma real chance de gol. Em uma época, suas cobranças de faltas eram tão mortais, que me lembro de estar na geral do Maracanã e correr para trás do gol, como nos pênaltis, tal era a certeza de que a bola iria na rede.
Além de tudo isso, admirava no Roberto a sua humildade. Seu constrangimento diante de um microfone ou de uma câmera, dava uma sensação de estar vendo uma boa pessoa, de origem humilde, que havia lutado para estar naquela condição em que se encontrava. Enfim, tudo isso fazia parte da minha admiração.
No dia 8 de maio de 1983, um domingo, eu e a nossa imensa torcida bem feliz, precisávamos mais do que nunca do nosso ídolo. Pelas quartas de final do campeonato brasileiro daquele ano, Vasco e Flamengo disputavam a passagem para a semifinal em dois jogos. O Fla havia vencido o primeiro jogo por 2×1 e naquele dia, jogava o segundo jogo, por um empate ou uma derrota por um gol para se classificar, graças a melhor campanha que possuía. O Vasco para se classificar, precisava ganhar por uma diferença de dois gols.
Meu pai e eu estávamos no Maracanã. O Flamengo ainda contava com a geração mais vencedora de sua história, que, em três anos conquistou três campeonatos brasileiros, uma Taça Libertadores da América e um Mundial de clubes, além de um punhado de estaduais. O Vasco havia se reforçado para esse campeonato. Trouxera Edevaldo (cria do Fluminense, que estava no Internacional), Daniel Gonzalez (do Corínthians), Elói (do América) e contava, claro, com ele, Roberto Dinamite, a explosão do gol.
Jogo disputado, 121 mil pagantes no estádio, um clima de tensão percorria todo o anel da arquibancada, avançava pelas cadeiras azuis e transbordava da geral. No final do primeiro tempo, o Vasco fez 1×0, com Elói. O segundo tempo foi terrível! O Vasco precisava se lançar ao ataque, para fazer o segundo gol, que nos daria a classificação, mas não podia se descuidar. Afinal, era necessária atenção redobrada com Zico, Adílio, Júnior e Baltazar.
Quando tudo parecia se encaminhar para a magra e insuficiente vitória do Vasco, Adílio escapou pela direita e cruzou para Zico tocar para o gol vazio, aos 44 minutos e 40 segundos. Festa na arquibancada do lado do Flamengo e tristeza do lado do Vasco. Enquanto alguns jogadores do Flamengo festejavam o gol do Zico, Andrade prendeu a bola entre os pés, no intuito de retardar o reinício do jogo. Roberto Dinamite, nervoso e esgotado por causa da difícil partida, chutou a bola e os pés do craque rubro negro, sendo imediatamente expulso pelo árbitro Valquir Pimentel.
Foi difícil tirar o Dinamite de campo. Repórteres, policiais, jogadores reservas, comissões técnicas e os intrometidos de plantão invadiram o campo, e a confusão foi geral. Quando enfim retiraram a multidão e o prórpio Roberto saiu de campo, o jogo foi reiniciado. Muitos torcedores do Vasco já haviam deixado o estádio após o gol do Flamengo, mas meu pai e eu havíamos permanecido. Um dos ensinamentos que aprendi com ele foi o de não sair de um estádio antes do apito final de um jogo. Esse ensinamento me proporcionou ver empates e vitórias que pareciam impossíveis.
Naquele dia, não sair antes do apito final, me proporcionou outro ensinamento. Nos acréscimos do jogo, sai do túnel do Vasco um Roberto Dinamite diferente: furioso, sem camisa e sem as chuteiras, só de calção e meiões, invadindo o gramado para agredir o árbitro. Meu pai, eu e a torcida que estava no Maracanã, ficamos de pé, atônitos com aquela cena.
Alguns jogadores do Vasco tentaram segurar o Roberto, sem sucesso. Foi então que, como se estivéssemos num imenso teatro, outra cena aconteceu diante dos nossos olhos: Zico agarrado na cintura e Júnior nas pernas do Dinamite impedindo-o de uma agressão que prejudicaria sua carreira. Não era mais Vasco x Flamengo. Eram companheiros de profissão, eram amigos que a rivalidade não separou.
Enfim conseguiram levar o Roberto de volta para o vestiário, e a partida chegou ao fim. Meu pai e eu voltamos para casa, e a vida seguiu. O Flamengo conquistou seu terceiro título brasileiro, batendo o Santos por 3×0 em um Maracanã abarrotado. Mais tarde, li na revista Placar que, na semana do jogo decisivo contra o Flamengo, Roberto Dinamite tinha recebido o diagnóstico da doença que, um ano depois mataria sua então esposa, Jurema.
Meu ídolo no futebol foi e ainda é o Roberto Dinamite. Um versículo da Bíblia diz que “os ídolos são feitos de ouro, prata, bronze, pedra e madeira.” (Ap 9,20) Naquele domingo de maio de 1983, em um Vasco x Flamengo, com o Maracanã cheio, meu ídolo era de carne, osso, sentimentos e emoções, assim como eu.
OBRIGADO, RR!
por Marcos Eduardo Neves
Morreu meu amigo Rodrigo Rodrigues. Só nessa hora alguns cegos conseguem ver. Só nessa hora o barulho silencia. Só nessa hora o calor congela por dentro.
Há meses que nos trancamos, mudamos a rotina, falamos sem parar palavras que mal faziam parte do nosso vocabulário. Isolamento, por exemplo. Isolar era chutar longe do gol, jargão de futebol. Quarentena me remetia à política ou retiro obrigatório após deixar certos cargos públicos. Corona, marca de cerveja ou sobrenome de ex-galã dos anos 80. Até mesmo vírus só me atemorava caso estivesse no computador.
Vivíamos algo etéreo, que parecia existir mas não tínhamos prova cabal. Tipo a hora que soube que ia ser pai. A mãe sentindo na barriga, no mínimo estado líquido para ela, mas apenas gasoso para mim. Só se torna sólido quando nasce.
Ou morre. Rodrigo pegou o covid, mas quantos não contraíram essa peste ao longo dos últimos 100 ou 120 dias? Girávamos em torno de números: morreram 800, mil ou quase 2000 no dia tal. Números, nada mais do que números. Poucos tinham nome. Poucos tinham vida. Até bater na porta de casa, como agora.
Morreu Rodrigo Rodrigues. De todas as perdas, a mais próxima que tive. Meu filho e minha mulher são testemunhas do quanto me excitei quando ele confirmou participação na minha live, em maio. Menos por falarmos de jornalismo, futebol e música, paixões em comum, mais por, no meio de uma pandemia, me embebedar por uma horinha da sua alegria, seu bom humor, seu alto astral.
Morre Rodrigo Rodrigues e agora, sim, devido à proximidade, o que eram frios números ganham carne, osso e alma. Agora os ímpios vão crer. Ainda que nem todos.
Parece que alguém o visitou em casa, visto que decidimos por conta própria afrouxar as medidas de isolamento. Nisso deu-se a fatalidade da transmissão. O que me prova, por exemplo, o erro de se voltar partidas de futebol agora, mesmo sem público. Ele foi contaminado em casa? Podia ter sido no estádio, a trabalho. No corredor da sala de imprensa, no estacionamento do Maracanã ou no gramado, como nessa foto de uma das últimas vezes que nos vimos.
Morre alegria em meio à tanta melancolia. Perde sabor o jornalismo cultural e esportivo. O único ganho é de saudades.
Que tenhas tido paz na sua passagem. A mesma paz que nos atingia em cheio a cada encontro e germinava frutos de sorriso na gente. Transformando a aura de qualquer ambiente numa bem-sucedida trilha de clássicos imortais do cinema.
OS NOVOS “MISTERS”
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
Muito se falou da saída do técnico Jorge Jesus, do Flamengo, e fui observar o desempenho de outro português, Jesualdo Ferreira, técnico do Santos, contratado do Al Sadd, do Qatar.
O time começou bem, com Marinho fazendo dois gols, mas o resultado final foi 3×2 para o Novorizontino. Temos que levar em consideração o fato de o Santos já estar classificado, mas fica claro que para os próximos jogos será fundamental Marinho e Soteldo estarem inspirados, muito inspirados.
“Mas, PC, quem você gostaria de ver campeão paulista?”, perguntou o entregador de pizza, nascido em Bauru. Para ser coerente deveria falar Palmeiras, Corinthians ou São Paulo, afinal lá estão Luxemburgo, Tiago Nunes e Fernando Diniz, três treinadores que costumo elogiar, mas respondi Bragantino.
Gostei muito do América-MG que vi sob o comando de Felipe Conceição e lamentei muito quando, na última rodada, o time deixou escapar a chance de seguir na Primeira Divisão do Brasileiro. O Bragantino segue a mesma linha, um time leve, de bom toque de bola e bom de ver jogar.
Na verdade, vou torcer para que algum time do interior seja campeão. Vai ser bom para dar uma renovada. E quem são os técnicos de Mirassol, Santo André e Ponte Preta? O do Mirassol é Ricardo Catalá e, sinceramente, não conhecia.
O da Ponte Preta é João Brigatti, que substitui Gilson Kleina, e o do Santo André é Paulo Roberto Santos, ex-jogador de Botafogo, América, Bonsucesso e vários outros. Chutem quantos clubes ele treinou até chegar ao Santo André? Dez? Quinze? Vinte e cinco? Trinta e cinco? Quarenta e cinco?
Não! Passou por 47 clubes, entre eles Unaí, Fabril, Batatais e Araxá. Não é fácil a vida de treinador. Meu pai foi e viajava sem parar e a vida familiar acaba ficando em segundo plano. Mas isso me fez refletir. O que é preciso para um treinador ter o respeito da opinião pública? Títulos de expressão? Tempo de carreira? Relacionamento? Fazer o curso da CBF?
Qualquer alternativa estará errada se lembrarmos que Dunga foi convidado para assumir a seleção brasileira sem nunca ter treinado nenhum clube, nenhumzinho, zero. Foi convidado pelo seu espírito de liderança como jogador. Será que tinha esse curso da CBF naquela época?
Hoje, Tite comanda nossa seleção. Apesar de sido campeão mundial de clubes pelo Corinthians o que o levou ao cargo de treinador da seleção foi sua boa relação com a mídia, seus ternos e seu estilo palestrante de ser. Futebol que é bom, nada.
Fico observando o futebol e fico imaginando o que poderia acontecer para sairmos dessa mesmice. Se algum time do interior vencer será bom pela novidade, se o Santos vencer será um português mostrar que não estão aqui de passagem, se o São Paulo ganhar ficarei contente demais pelo esforço solitário de Fernando Diniz, que está longe de ser um queridinho da imprensa.
E, ontem, zapeando, parei em Afogados e Retrô, pelo campeonato pernambucano, e me surpreendi com o bom toque de bola do Retrô, um time da Série D, do Brasileiro. O passe de peito que um atacante deu para o outro, que acabou perdendo o gol, já valeu por ter estacionado o controle remoto no sofá.
O futebol brasileiro de hoje tem que ser encontrado nos detalhes, ele ainda sobrevive, mas precisa ser libertado dessas amarras que nos impede de voltarmos a sermos os maiores do mundo.
HIPNOSE
por Rubens Lemos
A imagem que hipnotiza é a redundante perfeição de Pelé, majestade e preparo de guerreiro ao ataque. Pintado, o quadro jamais sairia tão fiel. A multidão de súditos (plateia dobrando os cotovelos pela arquibancada), espera a arrancada de uma pantera humana rumo ao gol adversário.
Pelé estava pleno aos 25 anos. Bicampeão mundial pelo Brasil. Bicampeão pelo Santos. Era 1966, Copa do Mundo que parece ferida sem cicatriz na alma brasileira (eliminação na primeira fase), o Rei sublime na fixação do corpo à grama. Braços equilibrados como asas a permitindo o voar baixo, pé de apoio pronto ao chute ou ao passe, canhota agasalhando a bola como que a protegê-la de inimigos poderosos.
A fotografia de Pelé mostra a face do homem transfigurando-se em fera na tarde inglesa da estreia da seleção contra a Bulgária, vitória de 2×0, dois gols de falta, um Dele e outro do que havia sido Mané Garrincha, àquela altura espectro do passado recente na cronologia, longe da figura derrotada pelo vício e pela crueldade de quem lhe entupiu de remédios para ele jogar e encher os cofres do Botafogo.
O Goddison Park, em Liverpool, recebeu, exatos, 47.308 pagantes. Modesta assistência para cortejar o Rei da Bola e a sua compleição irretocável, seu pique de caçador querendo a rede balançando de amor e fúria. Em Liverpool, terra dos Beatles, Pelé cantou no primeiro jogo.
Tomou uma pancada do meio-campista Jechev, que lhe custaria a ausência no jogo seguinte contra a Hungria (derrota de 1×3) e uma participação decorativa de tanto apanhar contra Portugal de Eusébio, que os patrícios petulantes ousaram compará-lo ao menino de Três Corações (MG). Outro revés de 3×1.
“É de carne e osso! É um fantasma negro! É preciso tocá-lo para saber se existe mesmo! É a perfeição da raça humana!”. Na arquibancada bem pertinho do campo, homens, mulheres, meninos e meninas tentavam decifrar o espetacular em festival de exclamações. A energia de Pelé, só conhece e testemunha quem por ele passou perto.
O drible em curva invadindo a área, a cabeçada acima da altitude boliviana, o petardo quando se esperava o toque sutil, a classe quando o goleiro aguardava, resignado, a bomba atômica em chuteiras. Pelé foi o maior e a fotografia comprova. Sim, nunca, desde as Caravelas, alguém foi tão imponente.
A seriedade valia contra a Bulgária ou o Votaporunguense do interior paulista. Pelé e Pagão, Pelé e Coutinho, Pelé e Toninho, duplas em que o segundo sempre será coadjuvante radioso. Conformados e fascinados. Os três estão no céu.
Certa vez, contra o Bangu, o zagueiro Mário Tito aplicou um beliscão no braço da sumidade. Pelé sorriu como se tivesse recebido um ramalhete de flores. Após levar 6×1 no Maracanã, Mário Tito pôs-se a berrar: “É doutro mundo, esse Crioulo não é da terra”. Certíssimo. Pelé é extraterreno, de carne é Edson Arantes, que lhe empresta o corpo.
Pelé anormal, Pelé profissional, Pelé colossal, Pelé imarcável, Pelé insaciável pelo gol. A aparente cena do jamais-crime aponta para um Pelé sozinho, dominando a gorducha na meia-esquerda até correr em linha reta, costurando zagueiros sem piedade.
É a premonição da sequência misteriosa. Das profundezas de Pelé, imitado, copiado, invejado, igual a ninguém. Superior a si mesmo na arquitetura de jogadas, uma mais bela que a outra. A fotografia expõe traços de estátua, de desenho delicado em contradição ao furor a saltar do papel aos olhos assustados de maravilhosa sensação.
Pelé eterno, Pelé momento. Pelé sentimento. Nos livros, filmes, tratados, dossiês, enciclopédias, coletâneas, saltos, cabeçadas, cobranças de falta e pênalti, fintas seriais, Pelé se multiplica na fantasia de quem não o assistiu ao vivo.
Pelé se fecha no próprio enigma. Pelé se revela mito no instante infinito da fotografia de Liverpool. E que o mundo parasse ali, na performance do dono do futebol. Michelângelo cuidaria da escultura. Os Beatles, da canção: The Beautiful King.