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VERÃO CARIOCA

por Marcos Fábio Katudjian


Verão no Rio de Janeiro. No maior estádio de futebol do mundo, uma multidão se acotovela para assistir ao chamado “jogo do século”. No gramado, os esquadrões de Flamengo e Palmeiras opõe a maior rivalidade do país, Rio de Janeiro contra São Paulo. Cariocas contra paulistas. Aos olhos do menino, o Maracanã, colossal, fazia todos os sonhos e desejos parecerem o que realmente são. Pequenos.

O dia épico iniciara-se na noite anterior. O garoto e seu pai partiram de São Paulo na viagem que durara toda a noite de sábado. Já no estádio, a caminho das cadeiras, entram num elevador enorme que sobe até o último nível da arquibancada. Ouvem-se as respirações das pessoas, num crescendo de ansiedade. O menino, último a entrar, fica mais perto da porta. O elevador sobe lento e ininterrupto. A tensão cresce entre as mais de vinte pessoas, na expectativa do palco que está para surgir. Um silêncio quente e uma sensação de iminência pairam no ar. O elevador para. A porta enfim se abre. E a paisagem maravilhosa apresenta-se como a própria verdade aos olhos do garoto. Grandiosa! … O Maracanã lotado!  Um bafo de som e calor invade o elevador. O canto da torcida do Flamengo em tarde de verão carioca é grave e lento e rubro e negro. Sob o sol, imensas e muitas bandeiras marcam o compasso surdo da batucada que rima com o pulso das cento e cinquenta mil pessoas. 

O menino paralisa. Não se sabe quanto tempo ficou ali bloqueando, à porta do elevador, a saída dos demais. Seu pai o resgata do estado cataléptico e ambos vão sentar-se que o jogo já está para começar.

Oprimidos atrás de um dos gols, a brancaleone torcida paulista é como um ponto verde no estádio vermelho e preto. Entre cantos e danças, a fanática torcida flamenguista entoa a previsível vitória do seu time. Canta especialmente o seu amor maior, Zico, o “Galinho de Quintino” ladeado por uma entourage invejável, Júnior, Adílio, Andrade e Tita. A escalação do time e todo o palco como fora armado faz ver que a derrota desse time beira a impossibilidade.

O Palmeiras, por outro lado, conhecido em São Paulo como a “Academia do Futebol”, confia no seu maestro, o meio-campista Jorge Mendonça, para quem a bola é uma parceira de dança. Além dele, Jorginho, o ponta direita vindo de Marília e os laterais Pedrinho e Rosemiro, com passagens pela seleção brasileira, são as principais atrações. A grande estrela dessa equipe, porém, não estava em campo, mas sentado no banco, o técnico Telê Santana, que duelaria com o treinador da própria seleção brasileira, Cláudio Coutinho. 

O apaixonado garoto aguarda o inicio do jogo espremido entre os adultos. Suas pernas tremem em delírios de ansiedade. A grande verdade rodrigueana finalmente revelada: o Maracanã era o mundo, nascido cinco minutos antes do nada.

Começa o jogo, o Flamengo vem para cima. A defesa tira. A pressão continua. O jogo é maravilhoso, ferve. De ataques e contra ataques. A cada descida do Flamengo o coração do menino parecia parar. E passava a bater novamente quando o Palmeiras tinha a bola. Afinal, era certo que a sorte e o azar eram responsabilidades suas. O menino de 13 anos acredita de verdade que um movimento em falso de sua parte poderia alterar todo o devir dos acontecimentos.

Assim, entre a vida e a morte, desenrolava a peleja. Enquanto o Flamengo se fazia todo entusiasmo e pressão, o Palmeiras, absolutamente frio, gelado, não deixava o calor das arquibancadas entrar no gramado. No contra ataque, gol! Gol do Palmeiras! Jorge Mendonça! O menino explode, soca o ar. Afinal os sonhos são possíveis! 

Logo a seguir, gol do Flamengo! Zico de pênalti. Tudo ruiu. Toda a esperança vira pó. A torcida do Flamengo, em fúria e paixão, vaticina o que dizia saber: a vitória seria certa no segundo tempo. Todo intervalo para roer as unhas. Para o segundo tempo, Telê Santana faz duas alterações. Uma delas é Jorge Mendonça, que sai contundido pela violência da defesa adversária. Com a perda do supercraque tudo ficara mais difícil. Quase impossível. 

E justamente nesse momento, quando as esperanças parecem todas perdidas é que surge espaço para o sublime, para o verdadeiramente magnífico e belo. Num instante de extrema superação, em menos de cinco minutos, o Palmeiras faz dois gols e a vitória se define brotando do improvável. Carlos Alberto e Pedrinho marcam, o menino explode, delirando de alegria. No estádio só se ouve a pequena torcida verde e branca. Quase cento e cinquenta mil adversários se calam, batidos. O Maracanã se transformava  afinal no “Recreio dos Bandeirantes”.

No último minuto ainda o quarto gol! O menino explode! Canta, vibra, grita e se joga ao chão, molhando de lágrimas o cimento da arquibancada, pois tanta alegria só pode ser expressa com lágrimas!

 

*

 

Naquele dia, como em nenhum outro momento, acreditei em todas as ilusões. As tive todas em minhas mãos. Realizáveis, mais que possíveis. A certeza que o mundo nasceu com uma função principal. O de ser conquistado. Por mim.

Não me passaria jamais pela cabeça que depois de cinco dias meu supertime fosse eliminado do campeonato por outra equipe de nem tanta categoria. Tampouco acreditaria se alguém me dissesse que depois de um ano o grande rival seria campeão do mundo.

Mas essas são outras estórias, que não diminuem, e ficam até pálidas, diante do dia mais feliz da minha vida.

 

FINAL CAIPIRA: A FESTA DO INTERIOR DO FUTEBOL PAULISTA

Por André Luiz Pereira Nunes


Em 1990, tínhamos plena ciência de que estávamos diante de um acontecimento peculiar na história do futebol brasileiro. Bragantino e Novorizontino, dois clubes pequenos do interior, haviam chegado com mérito à decisão do Campeonato Paulista, suplantando de maneira surpreendente os grandes times da capital. 

Até então fora testemunha do merecido e inédito título da Internacional de Limeira, em 1986, que vivenciava uma grande fase, a melhor de sua história, cuja apoteose foi abrilhantada anos depois com a ascensão à elite do Campeonato Brasileiro. Presenciar essa conquista foi de fato memorável, ainda mais contra o favoritismo inquestionável do Palmeiras. 

Dessa vez, porém, duas equipes de fora do tradicional circuito disputariam a taça. Vale frisar que o Leão de Bragança tivera uma rápida passagem pela elite na década de 1960 e retornara ao convívio dos grandes somente em 1989. Já o Tigre de Novo Horizonte era um ilustre desconhecido até 1986, quando estreou na primeira divisão.

A fórmula do Paulistão daquele ano não era das mais simples. 24 participantes estavam divididos em duas chaves de 12. Todos se enfrentavam, sendo que os três melhores de cada chave avançavam, além das outras seis melhores campanhas, independente de grupo. Os dois disputantes da final estavam na mesma chave que Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo. A equipe de Bragança Paulista terminou a primeira fase em terceiro lugar, com 28 pontos, enquanto o Tigre avançou na quarta posição, com 25. Na segunda fase, novamente os times se posicionaram em dois grupos. Os líderes de cada chave se defrontariam em jogos de ida e volta na final. Com 7 vitórias em 12 jogos, o Bragantino terminou na ponta, enquanto o seu adversário venceu 5 partidas, empatou 6 e terminou na dianteira de sua chave.

Conforme dito, apenas a Internacional de Limeira havia sido campeã paulista. Portanto, Novo Horizonte e Bragança Paulista respiravam o clima festivo da memorável final caipira. É bom que se diga que a decisão não ocorreu por mera obra do acaso. Ambos os elencos eram formados por atletas de qualidade. O Leão já até havia demonstrado força, em 1989, ao ser semifinalista do estadual e campeão da Série B nacional. Dirigido por Vanderlei Luxemburgo, contava com o volante Mauro Silva, o qual posteriormente viria a se destacar na Seleção Brasileira na Copa de 1994, nos Estados Unidos, quando o Brasil se tornou tetracampeão mundial. Ele seguiria no Bragantino por mais um ano, chegando à final do Campeonato Brasileiro, em 1991, quando o seu time foi derrotado pelo São Paulo. Na ocasião, o Braga era treinado por Carlos Alberto Parreira, o mesmo que levou Mauro Silva para a Seleção. De Bragança Paulista foi para La Coruña, na Espanha, em 1992, onde permaneceria até 2005. Outro jogador importante era o meia Pintado. Na equipe desde 1989, havia passado pelo São Paulo, sem contudo, agradar à torcida e dirigentes. Continuou no time até 1991, quando a equipe do Morumbi lhe ofereceu um novo contrato a pedido de Telê Santana. A partir daí, foi essencial nas conquistas das Libertadores de 1992 e 1993, além do Mundial de Clubes de 1992.


Curiosamente, em 1991, já sob o comando de Parreira, o Bragantino passou a contar em seu elenco com uma verdadeira legião de degredados tricolores. Eram oito jogadores revelados pelo Fluminense que não estavam sendo aproveitados nas Laranjeiras. Três eram destaques do time. O meia João Santos comandava as ações do meio-campo. Já no ataque, o ponta Franklin costumava entrar no decorrer das partidas para incendiar o jogo. Ambos se empenhavam para as conclusões certeiras do artilheiro Sílvio. O goleiro Gabriel, o lateral Carlos André, o meia Robert e os atacantes Ronaldo Alfredo e Alberto completavam a lista.

O Novorizontino, por sua vez, era muito bem armado por Nelsinho Baptista. Logo após a campanha, foi contratado pelo Corinthians, pelo qual se sagrou campeão brasileiro no mesmo ano. Ainda teria passagens importantes por Palmeiras, São Paulo e muitos outros clubes brasileiros, além de alguns japoneses. O maior destaque do Tigre, sem dúvida, foi o zagueiro Márcio Santos. Revelado em 1987, acabaria contratado pelo Internacional, em 1991. Transitou por Botafogo, São Paulo e clubes do exterior como Bordeaux e Fiorentina. Assumiu com destemor a vaga de Ricardo Rocha, na Copa do Mundo de 1994, sendo titular na campanha do tetracampeonato. Mas não podemos nos esquecer do atacante Paulo Sérgio. Trata-se de outra revelação da equipe que também foi tetracampeão mundial com a Seleção Brasileira. Para a campanha de 1990, veio emprestado pelo Corinthians. Quando Nelsinho foi para o Timão, o atacante o acompanhou. Em 1993, foi negociado com o Bayern Leverkusen. Na ocasião da Copa atuava pelo Bayern de Munique.

Após 1 a 1 em Novo Horizonte, a finalíssima ocorreu diante de um estádio lotado em Bragança Paulista. Ocorreria nova igualdade que concedeu ao Bragantino o seu primeiro e único título estadual. Depois da decisão as equipes tiveram destinos diferentes. O Bragantino ainda se manteve como potência durante certo tempo, alcançando a final do Campeonato Brasileiro de 1991. Adveio posteriormente um longo período de decadência, interrompido com a compra do time pela gigante Red Bull. O Novorizontino, por seu turno, fechou suas portas, completamente falido, seis anos depois, só retornando em 2012, com um novo nome, tendo uma meteórica subida até voltar à elite estadual.

UMA MÁQUINA DE SONHOS

por Zé Roberto Padilha


O relógio do Mineirão, em uma época em que ainda se permitiam ostentá-lo nos estádios como no Basquete, a ajudar a torcida vitoriosa pedir o fim do jogo, e a adversária ir mais cedo para casa, marcava 44 minutos do segundo tempo. O placar apontava Cruzeiro 1 x Fluminense 1 pelo Campeonato Brasileiro de 1975. PC Caju, nosso camisa oito, foi batê-lo.

Mas ao notar mais homens de azul do que tricolores no interior da grande área, gritou para eu encostar e trocar passes na linha de fundo, junto a bandeirinha, até o tempo se esgotar. O empate fora de casa, a duas rodadas do fim do campeonato, já nos classificava para as semifinais. Esgotado por correr 89 minutos naquele gramado fofo, recusei o convite e me plantei na intermediária. Félix havia se machucado e meu compadre, o goleiro Roberto, que tinha a chance da sua vida, me pedira aos soluços no vestiário para não deixar o Nelinho desferir nenhuma daquelas bombas em sua direção. Para evitar seus chutes em meio às minhas funções, cheguei à exaustão.

A pressão do Cruzeiro era insuportável e certamente viria um contra ataque após a cobrança daquele corner. Não tínhamos um centroavante alto, Manfrine tinha apenas 1,76 e o Edinho, nosso melhor cabeceador, nem no ataque se aventurou. Mas PC, igualmente cansado, que parecia não ter forças sequer para alçar a bola na grande área, continuou a berrar:

– Encosta aqui ô Juvenil!

Mesmo começando a minha carreira e diante das ordens de uma velha raposa tricampeã mundial, resisti. E devolvi a dura lá de longe, quase na linha do meio-campo:

– Joga esta p…pro abafa!

Contrariado, PC bateu o córner direto. A bola fez uma curva incrível e enganou o goleiro Raúl, que caiu dentro do gol enroscado com ela. E um gol inesquecível, olímpico, garantiu de vez nossa presença nas semifinais ao lado do Internacional, do Corinthians e do próprio Cruzeiro.

Apenas dia seguinte, lendo a coluna de Nelson Rodrigues em O Globo, fui saber que um personagem da história tricolor fora o principal responsável pela minha precoce desobediência: o Sobrenatural de Almeida. Segundo o cronista-mestre, tratava-se da mesma criatura que na decisão de 1971, contra o Botafogo, ajudara o Marco Antonio dar um chega para lá no Ubirajara para que Lula empurrasse a bola para dentro do gol.

Como sonha todo indivíduo do sexo masculino no país do futebol, eu era jogador de um grande time, quase imbatível, cujo goleiro, Félix, era uma lenda tricampeã mundial. Nas laterais, dois modernos apoiadores: um mais forte, que chegava rapidamente à linha de fundo, chamado Toninho Baiano, e outro mais técnico, também tricampeão mundial, conhecido como Marco Antonio. Na zaga, um jogador experiente que chutava como poucos, o Silveira, ao lado de um fenômeno que surgia, aos 19 anos, para dar muitas alegrias ao futebol brasileiro: Edinho.

Zé Mário, um incansável cabeça de área, os protegia, deixando livres para a criação dois monstros sagrados: PC e Rivelino. No ataque, a explosão e o oportunismo do Búfalo Gil e, centralizado, como pivô, um habilidoso craque chamado Manfrini. Não havia banco, era um poltrona de couro que injetava durante as partidas, nesta máquina de jogar futebol e para desespero dos adversários, a vitalidade de Cléber e Carlos Alberto Pintinho, a velocidade de Cafuringa, a juventude de Erivelton e a magia e habilidade do ponta esquerda Mário Sérgio.

Neste paraíso da bola rolando, eu, tricolor apaixonado desde criança, ganhara de presente a camisa 11 e percorria, com ou sem bola, os quatro cantos do Maracanã, do Mineirão, do Serra Dourada ou onde quer que o Fluminense se apresentasse feliz toda vida. Vestia a camisa que era minha bandeira nas arquibancadas, trocava passes com meus ídolos e, ainda por cima, era pago para isto. Quando nos aproximávamos de mais um título, depois de levantarmos invictos a Taça Guanabara, o estadual de 75 e o Torneio de Paris, o relógio tratou de me despertar.

Decepcionado e contrariado, me levantei naquele dia pra lá de mau humorado, tomei meu café da manhã sem dar bom dia a patroa, que não tinha nada com isso, e saí para meu trabalho na Secretaria de Esportes de Três Rios. Ao passar pela sala me deparei com um pôster da Revista Placar pendurado na parede. Para minha alegria, ele mantinha a minha foto em meio a todas aquelas feras.

Que bom saber que o sonhado era recordado apesar de vir evitando, ao longo dos anos, maiores decepções ao não me debruçar sobre o passado. Que levou a maioria dos meus companheiros, desamparados e esquecidos, a viver contando suas histórias nos botequins de suas cidades de origem, retratinhos no bolso para provar cada passe ou gol marcado, onde acabaram embaçando o brilho de suas conquistas no lugar de procurar construir uma nova realidade. Sobreviver, sem aposentadoria, numa sociedade que ninguém nos preparou para buscar mais 20 anos de carteira assinada e pior: sem a cumplicidade de uma bola que carregamos 18 anos nos pés.

Afinal, mesmo no país do futebol, não passo de um sobrevivente comum, de carne e ossos fraturados, meniscos ausentes, tornozelos condenados, mas com direito a sonhos e recordações. Máquina, em nossas vidas, foi um apelido carinhoso de um inesquecível time de futebol que tive a honra de defender e posar pra fotografia quatro décadas atrás.

* Crônica do livro: Futebol: a dor de uma paixão. 3* Edição

DEFENSOR DE UMA ESTIRPE LEGENDÁRIA

por Claudio Lovato Filho


Ele formou com Airton Ferreira da Silva, o Pavilhão, uma histórica dupla de zaga do Grêmio entre 1955 e 1960. Defensor de estilo clássico, foi um dos principais líderes do time montado por Oswaldo Rolla, o Foguinho, que conquistou o pentacampeonato gaúcho entre 1956 e 1960, a série de cinco títulos que, com um intervalo de um ano, foi procedida pelo heptacampeonato de 1962 a 1968, totalizando 12 campeonatos em 13 disputados.

Ênio Antônio Rodrigues da Silva nasceu em 10 de novembro de 1930, em uma família de apaixonados gremistas, na Baixada, atual bairro Moinhos de Vento, onde o Grêmio ergueu seu primeiro estádio, o Fortim da Baixada. Por obra do destino, 24 anos depois ele viria a participar da partida inaugural do Estádio Olímpico, em 19 de setembro de 1954, quando o Tricolor venceu o Nacional, do Uruguai por 2 x 0.

Em 1956, ele foi o capitão da Seleção Brasileira formada por um combinado de jogadores gaúchos que trouxe para o país a taça do Torneio Pan-Americano no México.

Herói como jogador , herói como técnico. Em 1961, depois de sofrer grave lesão, tornou-se treinador do Tricolor, e, no ano seguinte, conduziu o time na vitoriosa campanha do Campeonato Sul-Brasileiro de Clubes, a Taça da Legalidade, superando na final o arquirrival que ele tantas vezes havia enfrentado e vencido como jogador. Foi ele também quem encaminhou a conquista do Campeonato Gaúcho de 1962, campanha concluída com Sérgio Moacyr Torres Nunes no comando técnico da equipe.


Homenageado em 1999 na Calçada da Fama do Grêmiojunto com outro monstro sagrado da história do clube, Milton Kuelle, Ênio Rodrigues morreu em 2 de fevereiro de 2001, aos 70 anos, na Porto Alegre onde nasceu e que amou incondicionalmente, da mesma forma como foi com o clube do qual se tornou um dos maiores ídolos. 

As grandes duplas de zaga que o clube formou ao longo de sua história são um dos maiores motivos de orgulho do torcedor gremista.

Os lendários Airton e Ênio Rodrigues, nos anos 50 e 60, tiveram antecessores que para sempre serão lembrados pela nação tricolor, como os pioneiros Martau e Deppermann, na década de 1900, Schuback e Mohrdieck, a “Dupla Hamburguesa”, nos anos 1910, e depois Dario e Luiz Luz, nos anos 30, para citar exemplos especialmente simbólicos numa história repleta de personagens legendários.

Pavilhão e Ênio fizeram sua parte e deram sequência com brilho a uma estirpe de duplas de zagueiros que teve sequência com Ancheta e Oberdan, Baidek e De León, Rivarola e Adilson (parceria que mais adiante recebeu o luxuoso reforço de Mauro Galvão) e que hoje prossegue com Pedro Geromel e Walter Kannemann. São patrimônios cultuados por todos que levam as cores azul, preta e branca no coração.

Salve Ênio Rodrigues e todos os grandes zagueiros gremistas que, mais que uma cidadela, defenderam uma História do qual se tornaram protagonistas.

GERAL

por Paulo Roberto Melo


A primeira vez em que fui ao novo Maracanã, foi no dia 24 de outubro de 2013 – novo Maracanã, novo normal, acho que eu é que estou ficando velho. O estádio havia ficado pronto para a Copa do Mundo de 2014, de triste lembrança para todos nós, e, os jogos estavam servindo de teste para o evento. Vasco x Goiás se enfrentavam naquela noite no jogo de volta pelas quartas de final da Copa do Brasil. O Vasco havia perdido o jogo de ida no Serra Dourada, por 2×1, portanto precisava ganhar por uma diferença de dois gols.

Meu irmão, Carlos Eduardo e eu, chegamos e nos colocamos nas arquibancadas superiores, e só esse nome já dá uma pista do que aconteceu com o bom e velho Maracanã. Tudo era muito diferente. Um estádio bonito, confortável, padrão FIFA, com o mesmo nome, estádio Mário Filho, mas não, não era mais o nosso Maracanã! 


Não tinha mais a dimensão gigantesca do antigo templo sagrado do futebol, onde, num silêncio mortal, o grande Barbosa buscou aquela bola no fundo da rede na Copa de 1950; onde o Ademir Queixada dava aquelas suas arrancadas que enloqueciam o meu pai; onde o Garrincha corria e driblava e parava e corria e driblava de novo e cruzava e fazia gols que o levaram a ser eleito pela torcida como melhor do que Pelé; onde o Pelé fez fila, driblando meio time do Fluminense e cunhou a expressão gol de placa; onde, no mesmo ano, carimbou o passaporte para a Copa de 1970, com uma bomba, aproveitando uma rebatida do goleiro do Paraguai, fazendo estremecer as arquibancadas apinhadas de gente e ainda fez o milésimo gol, contra o Vasco, numa data que antes era conhecida como Dia da Bandeira (19 de novembro), mas acabou virando Dia do Milésimo Gol do Rei Pelé; onde o PC Caju fez embaixadinha na frente do Moisés e foi premiado com um pontapé, que zagueiro que se preza não recebe Belfort Duarte; onde o Gérson calibrou a canhotinha para depois encantar o mundo no México; onde o Rivelino inventou o elástico; onde o rei Zico nasceu, cresceu e se imortalizou, batendo faltas como se jogasse a bola com as mãos, deslocando os goleiros nas cobranças de pênalti e invadindo a área adversária com a bola dominada para fazer gols lindos e alguns… dolorosos; onde o Roberto Dinamite deu aquele chapéu no zagueiro Osmar e fuzilou o Wendel com um tiro de voleio; onde o Maradona, na Copa América de 1989, quase fez do meio de campo aquele gol que o Pelé não fez, mas a bola, prudente, se lembrou da placa, da rivalidade e de tudo mais e preferiu quicar no travessão e ir para fora; onde também nasceram para o futebol o Romário, o Bebeto, o Edmundo, o Felipe e o Pedrinho; onde tantas vezes eu, meu pai e meus irmãos rimos e choramos as alegrias e as dores de tantas vitórias e derrotas. Não, não era mais o Maracanã.

Sei que muitos vão ler estas linhas e me achar um saudosista chato e certamente vão dizer que – “o estádio precisava se modernizar.”; “os tempos são outros.”; “está tudo mais limpo e mais seguro.” Sou obrigado a concordar. Afinal, confesso que uma impressão que eu tinha quando ia aos jogos no antigo Maracanã, era que o estádio nunca tinha ficado pronto de verdade, tantos eram os entulhos pelos corredores internos, as colunas com ferragens à mostra, sem falar dos banheiros, queinvariavelmente estavam alagados, não extamente de água.

É verdade. Tudo isso fazia parte do antigo Maracanã. Mesmo assim, antes de começar aquele jogo, no novo Maracanã, eu e meu irmão sentíamos uma saudade imensa pulsando dentro do nosso peito. Parecia que faltava alguma coisa, e não era o cimento incômodo dos degraus que antes sujavam os fundilhos das calças, nem o torcedor mais humilde, impedido de frequentar o novo estádio por causa dos novos preços e nem o vendedor de amendoim torrado. Nós olhamos em volta com atenção, como se estivéssemos conferindo um jogo de sete erros. Não demorou para que chegássemos à resposta. Aquele estádio novo não tinha a geral!

Mandatária suprema dos que ganham dinheiro com jogos de futebol, Dona Fifa não queria mais que seus súditos cariocas assistissem aos jogos em pé. Ela queria todo mundo sentado em lugares marcados, com todo o conforto que um bom punhado a mais de reais certamente podia comprar. Talvez ela quisesse também, que, assim como europeus, nós, selvagens pela própria natureza, comemorássemos os gols apenas com aplausos, mas acho que isso ela nunca vai conseguir.

 Dona Fifa nos impôs um estádio novo, e alguns governantes ávidos por obras e comissões rapidamente disseram que sim. Mas a minha memória de torcedor, por enquanto, ainda é livre. É uma memória afetiva que envolve sentimentos, aromas, pessoas e acontecimentos. Hoje, quero falar da saudade que eu sinto da geral do Maracanã.

 Saudade da entrada

O corredor que dava acesso à geral, era escuro, iluminado apenas por lâmpadas fracas que pendiam do teto, que era bem alto. Confesso que percorrer esse trajeto nunca foi muito agradável. Uma das paredes do corredor tinha tijolos vazados, e, por eles, víamos uma outra parte das entranhas do estádio, onde havia carros estacionados no meio do nada. Um ambiente bem sombrio. Uma vez eu estava chegando à geral por esse caminho com meu pai e meus irmãos quando surgiu alguém e se agarrou ao meu pescoço. Meu irmão José Gulherme partiu logo para encaçapar o agressor, mas, antes que ele desferisse o primeiro sopapo eu descobri que o ataque era uma brincadeira sem graça de um colega de escola.

Ao chegar à geral, a imensidão do estádio que se apresentava diante dos olhos, proporcionava uma sensação fantástica. Estar em um nível abaixo da arquibancada, ouvindo o barulho das torcidas, a música tocada pelas charangas e vendo a nossa volta, acima de nossas cabeças, o colorido das bandeiras e faixas, depois de ter deixado para trás aquele corredor sombrio, sempre mexia comigo.


 Saudade dos aromas

Na geral e, só na geral, conseguíamos sentir o aroma fresco do gramado. Era um aroma que me levava à infância, quando descia rolando a ladeira de grama da Quinta da Boa Vista. Ali, na geral do Maracanã, experimentávamos uma ilha de natureza, cercada de concreto por todos os lados.

Havia outros aromas. Mais de uma vez, fui alvejado por saquinhos ou respingos de um certo líquido cuja a cor e a origem eram pra lá de duvidosas. A tarefa de cheirar a roupa ou a parte do corpo atingida, para tentar identificar a procedência do líquido às vezes confirmava terríveis suspeitas. Algumas vezes, senti alívio ao constatar que era apenas água, outras, o melhor era ter a certeza de um bom banho assim que chegasse em casa.

Não posso deixar de falar do aroma delicioso do cachorro quente da Geneal, que invadia minhas narinasassim que o vendedor abria a caixa. Havia o aroma dos leitinhos da CCPL, vendidos em uma embalagem triangular, com vários sabores: chocolate, caramelo, morango. E havia também o cheiro inconfundível de cerveja que pairava no ar, vindo dos copos de papelão, dos hálitos e das roupas das pessoas que estavam em volta. Sim, porque muitas vezes o líquido amarelo e espumante que vinha do céu era apenas… Brahma na jogada.

Pode parecer piegas dizer isso, mas a geral do Maracanã tinha aroma de povo. Nada a ver com o que disse, há muito tempo, um ex-presidente da República em relação a odores humanos e equinos. Era um cheiro de gente, de igualdade social, de transpiração, desodorante barato e sabonete; cheiro de corpos, de pessoas jovens, adultas e idosas, movidas pela paixão pela bola, convivendo a céu aberto em um mesmo espaço e isso só acontecia porque o ingresso era barato, menos da metade do da arquibancada.

 Saudade do contato


Aqui, a saudade se me apresenta de duas formas:

A primeira, no contato com o povo. Em tempos de poucos jogos televisionados, o acesso ao Maracanã era bem mais fácil. Desse modo, os torcedores folclóricos, muitas vezes fantasiados, faziam da geral o seu palco.

Tinha o torcedor do Flamengo que dava instruções, orientando a defesa do seu time, grudado na grade, próxima ao campo. Tinha o torcedor que também era vendedor de amendoim e que, com um fôlego absurdo, dava sequências de assobios tão fortes, durante o jogo todo, que se podia escutar sua série de apitos mesmo que ele estivesse do outro lado da geral e, às vezes, até nas transmissões pela TV. Torcedores dos dois times que estavam em campo, assistiam ao jogo juntos, muitas vezes lado a lado um suportando a alegria do outro. Essa convivência, lógico, nem sempre era tão romântica epacífica. Também era comum quando alguns clarões se abriam no meio da massa, como indício de que estava acontecendo aquilo que cantaram Aldir Blanc e João Bosco: um pega na geral.

A segunda forma de saudade diz respeito, como dizia Jorge Cury, aos “artistas do espetáculo”. Na geral, a proximidade com o campo era tanta, que era como se o geraldino estivesse na beira do gramado. Assim, eu pude testemunhar alguns fatos bem bacanas.

Uma vez, um amigo tricolor, em um jogo do Fluminense, gritou quando o ponta esquerda Tato ia bater um escanteio: “Tato, bota na cabeça do Washington!” O ponta virou para a geral e fez um sinal de positivo com o polegar. O escanteio foi cobrado na cabeça do Washington e… gol!

Teve o dia em que o meu velho pai se esqueceu da discrição que o caracterizava e saiu do sério com o polêmico árbitro José Roberto Wright, Depois de um primeiro tempo com muitas marcações duvidosas contra o Vasco, o juizão vinha saindo do campo e começava a descer as escadas do túnel do vestiário dos árbitros. A gritaria e os xingamentos na sua direção eram a prova clara de que a sua habitual necessidade de querer aparecer mais do que os jogadores tinha sido cumprida. No primeiro degrau, atraído pelos apupos que vinham da geral, o árbitro, todo orgulhoso, olhou para o povo enfurecido. Meu pai e eu estávamos bem em frente ao túnel. Dessa vez o seu Zé não se controlou, esqueceu os bons modos e gritou a plenos pulmões na cara do homem de preto: “Filho da p*#*!” Até o fim de sua vida, meu pai dizia com imensa satisfação que o Wright tinha visto ele o xingar.

Aliás, nada mais gostoso do que, ao final de uma partida, ficar em frente ao túnel que dava acesso aos vestiários dos jogadores, para aplaudir os heróis e xingar os vilões do jogo. Os aplausos eram retribuídos com acenos agradecidos e os xingamentos eram a trilha sonora fúnebre da saída de alguns jogadores.

 Claro, era maravilhoso também quando os jogadores vinham comemorar os seus gols perto dos torcedores da geral. O Luisinho Tombo gostava de subir no murinho, ainda quando jogava pelo América e depois no Flamengo, acompanhado do Zico e do Doval. Todos os artilheiros sempre corriam em direção à torcida, ao marcarem seus gols. Parecia que recarregavam suas forças com a energia que vinha dos geraldinos.

 Saudade da liberdade

Na geral, por estar de pé, o torcedor tinha mais liberdade. Quando alguma bola vinha do campo, alguns até arriscavam umas embaixadinhas, mas tinha que ser rápido, pois a PM chegava logo.

Muitos geraldinos gostavam de ficar no trecho embaixo das cabines de rádio, bem no meio do campo. A localização era triplamente estratégica: permitia uma visão mais ampla do gramado; protegia dos arremessos de saquinhos contendo líquidos suspeitos, e, permitia e ver os craques da informação nas cabines de rádio: Jorge Cury, Waldir Amaral, José Carlos Araújo, Washington Rodrigues, João Saldanha, Luiz Mendes, Sérgio Noronha, Gérson e outros.

Uma outra parte de torcedores, preferia acompanhar o ataque do seu time. Era muito bom também, em cobranças de pênaltis, correr para se colocar atrás das balizas e ver abola entrando. Numa época, o Roberto Dinamite cobrava faltas com uma precisão tão grande, que a torcida fazia a mesma coisa, corria para trás do gol, como se fosse um pênalti. Ah, que saudade do Dinamite. Que saudade de ver da geral um gol do Dinamite..

Saudade… Palavra estranha essa, que, dizem, só existe na língua portuguesa. Sentimento arrebatador, ora de alegria, ora de tristeza.

Sentados em nossos lugares marcados da arquibancada superior, meu irmão e eu olhávamos o novo Maracanã, tentando resgatar o antigo. O velho campo só está vivo agora nas lembranças, de jogos memoráveis vistos da arquibancada ou da geral. Sensações, aromas, vitórias, derrotas, pessoas amadas que se foram, gente desconhecida que já conhecíamos tão bem, povão, família, radialistas, craques…

A propósito, naquela noite o Vasco ganhou do Goiás por 3×2, e acabou eliminado da Copa do Brasil