99 ANOS DA PRIMEIRA MALDIÇÃO DO FUTEBOL
por Pedro Barcelos
Sempre ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Ou melhor, nunca ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Pior ainda se forem palavras de um jornalista do naipe de Euclides da Cunha.
O cenário não poderia ter nome mais irônico: Piedade. Era apenas mais um dia no Rio de Janeiro, já acostumado com as puladas de muro da esposa de Euclides. Ele era mais velho do que ela, viajava constantemente a trabalho e não tinha muito tempo para ela. Fora isso, ele nunca foi reconhecido por sua simpatia e cordialidade. “Os Sertões” vendeu muito bem e o jornal O Estado de São Paulo seguiu delegando coberturas distantes e complicadas ao célebre autor. A notoriedade foi tamanha, que Euclides chegou a ajudar na negociação do Acre, junto à Bolívia. Sem dúvidas, uma das grandes personalidades daqueles tempos. No entanto, a situação familiar seguia de mal a pior.
Ana Emília, que apenas queria ser amada, encontrou em Dilermando (um aspirante do exército) os carinhos que procurava. Os dois se amavam e tentavam viver escondidos, o que, de fato, não acontecia. Toda a capital federal sabia da relação, que inclusive chegou a acarretar em um filho, assumido por Euclides.
Essa relação extraconjugal de anos poderia ter tido um fim naquele domingo, 15 de agosto de 1909, porém o resultado foi bastante diferente.
Decidido a acabar com a vida do amante de sua esposa, Euclides saiu em direção ao bairro que, naquele dia, não vivenciou momentos piedosos. Dilermando estava descontraído na sacada de sua casa, acompanhando o movimento da rua, quando foi surpreendido pelo corno. O silêncio que precede o esporro foi interrompido pela profecia: “Vim para matar ou morrer”. Euclides conhecia bem o poder das palavras e sabia exatamente o que estava falando. Na campanha brasileira pelo Acre, provavelmente aprendeu com algum curandeiro que certas afirmações são incuráveis.
Dilermando correu para dentro da própria casa, em procura de defesa. Euclides entrou sem permissão na residência e encontrou Dinorah, o irmão mais novo de Dilermando e zagueiro do Botafogo. Vendo a arma nos punhos do jornalista, Dinorah tentou correr, mas acabou tomando três tiros. Um deles, o mais degradante, na coluna, logo abaixo da nuca.
Desacordado, não conseguiu ver o triunfo do próprio irmão sobre Euclides da Cunha, tampouco seu semblante de alívio por não precisar mais esconder uma relação amorosa de tanto tempo que de escondida não tinha mais nada. As vitórias enobrecem os homens, mas também os cegam. A euforia fez Dilermando não ter noção do estrago causado. Estes acontecimentos ficaram conhecidos nos jornais da época como a “Tragédia da Piedade”.
Alguns jornais da época enalteceram Dilermando, entendendo que o assassinato do escritor representava uma revanche contra os relatos de Euclides na Guerra de Canudos. Dilermando, um militar, traindo e matando um jornalista que, apesar de republicano assumido, havia denunciado os horrores de um massacre promovido pelo Governo. Era tudo que a imprensa pelega queria.
Euclides faleceu, mas deixou obras de valor histórico permanentes. Os feitos de Antônio Conselheiro e os estragos que o Governo causou contra seus seguidores jamais teriam tamanha notoriedade caso Euclides não escrevesse seu relato jornalístico. Suas obras continuam sendo lidas nas escolas até hoje, 111 anos após a Tragédia da Piedade. No final de contas, Euclides ainda vive. Então alguém precisava morrer.
O Futebol de Dinorah
Dinorah e seu irmão mais velho começaram carreira militar cedo. Dilermando tinha mais aptidão pelas serviços demandados, enquanto Dinorah preferia os esportes. Em 1906, o irmão mais novo começou sua carreira no Internacional (SP). Em 1907, foi campeão paulista e chamou atenção do América carioca. Em 1908, após duas vitórias sobre o Botafogo, Dinorah foi árbitro de uma partida amistosa entre Botafogo e Germânia (SP). Os laços entre o zagueiro e o clube já estavam firmados e Dinorah vestiu a camisa alvinegra pela primeira vez apenas um mês depois, em 12 de outubro de 1908.
No começou do ano de 1909 o vínculo só aumentou. Dinorah jogou e fez gol no jogo histórico contra o Mangueira: 24X 0, a maior goleada do futebol brasileiro até hoje. Contra o Haddock Lobo, jogou no ataque e marcou SEIS gols. Um craque. Exatamente uma semana após a Tragédia da Piedade e ainda com uma bala alojada na coluna, lá estava ele em campo contra o Fluminense, maior rival do Botafogo.
Apesar destes feitos, o ano de 1909 acabou favorável aos tricolores, mas em 1910 seria diferente. O Botafogo foi campeão carioca e recebeu o apelido de “O Glorioso”. Dinorah jogou 9 das 10 partidas naquele torneio imortalizado no hino de Lamartine Babo (hino corrigido apenas em 1996).
O ano de 1911 foi o mais importante de todos para o futebol carioca. Ali se definiram os alicerces e características marcantes de seus protagonistas. Porém, as complicações por conta da bala ainda alojada pioraram e Dinorah começou a atuar menos, participando de apenas três jogos pelo 1º time botafoguense. Em dois anos de clube, foram 29 jogos (21 vitórias; 4 empates; 4 derrotas), sendo 22 jogos com a bala alojada. Esses são números do primeiro time alvinegro, pois era comum na época jogos preliminares ou amistosos serem marcados com times alternativos. Sobre esses dados, infelizmente, não se tem conhecimento.
A Maldita Profecia
Fato era que Euclides da Cunha passará dessa pra melhor, sem dúvidas, porém a maldição continuaria e alguém precisaria sofrer. Dinorah começou a sofrer problemas motores por conta do projétil e precisou parar de jogar bola em 1911. Dois anos depois, foi retirar a bala, mas por conta de um problema médico ficou hemiplégico (perdeu o movimento em metade do corpo).
Transtornado com a situação e sem poder voltar aos serviços militares, vagou pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em procura de esmola. Da glória de campeão carioca à mendigo, bastaram três anos. O esquecimento do primeiro guerreiro do futebol mundial foi mais rápido do que um mandato presidencial. A tortura psicologica causada por um incidente do qual ele não tinha a menor culpa foi enorme. Tentou se suicidar na Praia de Botafogo, mas nem para isso ele teve sucesso. Foi resgatado à contra-gosto.
Em busca de sua última missão, partiu para Porto Alegre, na esperança de encontrar o sossego final. No dia 20 de setembro de 1921, um domingo, se jogou no Rio Guaíba e morreu afogado. Levou consigo uma versatilidade e garra incomparáveis em campo, o título carioca de 1910, a sífilis, o alcoolismo e o esquecimento. Se Dinorah não acatou as próprias dores, creio que poucos, ou ninguém, também conseguiria.
A Decisão Purgatorial
Em 1916, Dinorah ainda soube de outra tentativa de assassinato contra seu irmão: desta vez feita por Euclides da Cunha Filho. Porém, Dilermando sobressairia outra vez e mataria o filho do jornalista.
Euclides deixou filhos, mas Dinorah deixou herdeiros. Em um esporte praticado basicamente por elitistas da época, este é o primeiro caso relatado de um campeão glorioso que cai no esquecimento popular e mendiga farrelhos pelos cantos da cidade. Euclides anunciou: “Vim para matar ou morrer”! Esta frase ecoa até hoje nos ouvidos de todos os jogadores que iniciam carreira no futebol: “é vencer ou morrer”. Muitos morrem e são esquecidos, assim como Dinorah, infelizmente.
O que era, até então, um esporte humano, passou a ter preposições sobrenaturais com aquele tiro sem piedade na coluna de Dinorah. Um campeão jamais poderia ser esquecido. Isso é irracional, é sobrehumano. É uma maldição! A maldição da qual não se basta ganhar, é necessário algo a mais. E é exatamente esta a crueldade posta a partir daquele fatídico domingo: a incógnita do que significa o “algo a mais”.
Seu falecimento completa 99 anos no dia de hoje. Aposto que daqui a uma ano, no centenário de sua morte, a data passará despercebida por grande parte dos torcedores de futebol, incluindo os do Botafogo. Uma pena para Dinorah, seus familiares e a história do futebol brasileiro. E o pior: tudo isso por culpa de um chifre!
ANAPOLINA, 40 ANOS DEPOIS
por Paulo-Roberto Andel
(Foto: Chandy Teixeira)
O futebol, essa paixão arrebatadora, possui um tempo próprio. Para qualquer um de nós, dez, vinte ou quarenta anos são uma longa trajetória. No apaixonante jogo de bola, não: parece ter sido outro dia. Os grandes lances, gols e acontecimentos ficam marcados com tinturas de eternidade.
E como quarenta anos passam rápido, foi outro dia mesmo que uma linda zebra marcou a história do futebol carioca – que na verdade é fluminense mas nós, cariocas, chamamos assim por orgulho da nossa cidade. Tempos de um futebol poderoso no Rio de Janeiro, com craques nas seis grandes agremiações e ótimos jogadores nas equipes de menor investimento, proporcionando partidas disputadas e emocionantes. O Cariocão era tão bom que era a principal competição de futebol do Brasil, muito mais falada do que o Campeonato Brasileiro. Libertadores? Pfffffff.
Numa quarta-feira chuvosa de 1980, no bravio Estádio Atílio Mariotti, Serrano e Flamengo jogaram pelo segundo turno do Estadual daquele ano. E este é um jogo que nunca mais foi esquecido. A vitória do querido clube petropolitano por 1 a 0 ainda é cantada e decantada por muitos que adoram o futebol daquele tempo. Todo mundo que hoje tem mais de cinquenta anos e gosta de futebol já ouviu falar de “Tetranapolina”, expressão jocosa que mistura o fim do sonho do tetra campeonato carioca do Flamengo com seu algoz, o ponta-esquerda Anapolina.
Foi uma noite marcante por muitos motivos. Primeiro, porque a derrota do timaço rubro-negro, com nomes como os de Zico, Tita, Adílio, Luis Pereira, Júnior e Leandro, foi completamente inesperada, porém justa. Segundo, porque naquele jogo um grande nome do futebol brasileiro despontou nacionalmente: o do goleiro Acácio, que defendeu o possível e o impossível, abrindo o caminho para se tornar um dos grandes nomes do Vasco.
E terceiro, pela trajetória chapliniana do herói da partida: Anapolina só voltaria a campo mais uma vez pelo Serrano e encerraria a carreira, não por vontade própria mas pela necessidade de um trabalho mais estável. Deixou o futebol, virou garçom, depois mecânico e, por fim, motorista de caminhão. Teve uma vida simples e batalhadora, mas nunca mais foi esquecido, ainda que tenha trocado seu apelido nacionalmente famoso pelo de Cerqueirinha, diminutivo de seu sobrenome. Elimar Cerqueira, o herói de um jogo só. Ah, e a cereja final do bolo: Anapolina era torcedor do Flamengo. Mas por que Anapolina? Elimar era egresso do time goiano e, nos treinos do Serrano, quem não sabia seu nome dizia “Chama lá o Anapolina”.
Naquele Serrano e Flamengo teve de tudo: chuva, frio, neblina, muita luta, pouco futebol e um gol inesquecível. O resultado eliminou o fortíssimo time da Gávea da disputa do título estadual: o Vasco acabaria sendo campeão do segundo turno, fazendo a final do campeonato com o Fluminense, decidida por um gol de falta de Edinho a favor dos tricolores. E é o recorde de público da história do Estádio Atílio Mariotti, com 14.998 torcedores presentes, em sua maioria avassaladora de flamenguistas. No fim do jogo, uma cena se tornou inesquecível: emocionado, um torcedor do Serrano atravessou o gramado enlameado de joelhos, comemorando como se fosse um título – e, pensando bem, foi.
Apesar de todo o sucesso que obteve nas últimas quatro décadas, o Flamengo não conquistou um tetracampeonato no Rio, comprovando a força do resultado daquele dia. Já o modesto Serrano luta para voltar aos seus dias de glória na primeira divisão.
Anapolina morreu em 2013, ainda jovem, mas quem disse que ele não vive na imortalidade? Quarenta anos depois, seu feito é respeitado e lembrado. O destino o escolheu: ele nem era titular e acabou escalado mais para ajudar na marcação. Acabou escrevendo uma linda página do nosso futebol, que permanece muito viva. Tetranapolina!
@pauloandel
RESGATE À ESSÊNCIA
por Felipe Corvino
O futebol não é só um jogo. É uma forma de vida. É uma cultura. Se você não respeita e não compreende sua cultura, você perde sua identidade. Sem identidade você não cria, não imagina, não supera os obstáculos do jogo e da vida. A sanha em reproduzir o estilo de jogo europeu evidencia que estamos cada vez mais nos afastando de nós mesmos. Quase todos, para não dizer todos, os analistas de futebol sugerem a reprodução do que “dá certo” na Europa com relação ao estilo de jogo. Mas não entendem que “domar os corpos” do jogador brasileiro é amputar sua liberdade criativa. É limitar a sua possibilidade imaginativa. E aqui recorro ao historiador francês Serge Gruzinski para utilizar o conceito “colonização do imaginário”.
O que quero dizer com isso? Que no campo de jogo tal qual no jogo da vida estamos reproduzindo comportamentos mirando num modelo de “civilização” que não nos representa, que tira nossa potência. Num modelo de sociedade que sempre precisou da força e da violência pra impor seus conceitos, suas vontades e que nos castra. E nós introjetamos, enquanto país que por muito tempo sofreu com a catástrofe da colonização, da escravidão e do controle do corpo, essa ideia.
Não. Não é necessário ignorar o que se faz pelas bandas de lá. Mas é preciso, urgentemente, resgatar os signos que nos fazem únicos. E o futebol é uma ferramenta que traduz de maneira evidente essa perda cada vez maior da nossa identidade devido a imposição de uma métrica, um modelo, uma tática e um jeito específico de jogar.
Precisamos nos “deseducar” pra desapegar desse método para que possamos voltar a nos entendermos e nos reaproximarmos novamente daquilo que nos define. Não é na força, na velocidade ou na tática que vamos virar o jogo. É no samba, no preenchimento dos espaços vazios entre uma marcação e outra, é na finta, no drible, assimilando que há caminhos variados e que nem sempre o menor trajeto entre 2 pontos é uma reta.
Os lançamentos parabólicos do Gerson me conferem razão. O futebol pobre, hermenêutico e sem criatividade é um sintoma de uma sociedade que cada vez mais se permite “ser o que não é” e se nega a assumir sua identidade. E quando lhe é negado tudo “o que é” para ser o que não é perde – se o encanto. O propósito. A paixão. Perde-se a si próprio. É flagrante que nós necessitamos nos achar, pois estamos completamente perdidos. Só assim é possível buscar o placar e virar o jogo.
E aí meu camisa 10, vai tocar de lado ou vai desafiar as leis da física e reinventar o tempo/espaço pra fazer a jogada mágica e inesperada rumo ao triunfo e buscar teu reencontro contigo mesmo?
Felipe Corvino, vascaíno, historiador e metido a besta a escritor.
O MILÉSIMO GOL
por Valdir Appel
A previsão
O gringo Andrada não aguentava mais as sacanagens do Moacir e do Buglê, e à medida em que se aproximava o jogo contra o Santos pelo Campeonato Brasileiro (na época, Roberto Gomes Pedrosa), o coro que agourava a marcação do milésimo gol do Pelé em cima do Vasco engrossava.
Na concentração, nas viagens e após os jogos do “Peixe”, sempre alguém chegava com um jornal para mostrar a evolução dos gols de Pelé.
Na verdade, esta “previsão” da boleirada não tinha respaldo. O Santos enfrentaria ao longo do campeonato e em confrontos amistosos, equipes teoricamente frágeis, e já chegaria no jogo contra o Vasco com a fatura liquidada.
Era o que imaginávamos.
Mas o tempo foi passando, e com a proximidade de novembro, o goleiro argentino naturalizado brasileiro começou a ficar preocupado.
Pelé chegou à marca dos 999, num amistoso contra o Botafogo de João Pessoa, na Paraíba e jogou parte do segundo tempo substituindo o goleiro Agnaldo, que simulou uma providencial contusão, impedindo assim que novas oportunidades de gol surgissem para o Rei.
Palco pequeno, poucos holofotes…
O gol poderia ter acontecido contra o Bahia, no estádio da Fonte Nova, mas um carrinho milagroso de um zagueiro do tricolor de aço impediu que a marca histórica fosse alcançada na boa terra.
Curiosamente, a providencial intervenção do jogador foi contemplada com uma estrepitosa vaia da sua torcida, que estava a fim de fazer a festa do Rei em Salvador.
No mesmo dia, jogamos em São Paulo.
No retorno, no avião da ponte aérea, Moacir falou pro Andrada:
– Eu não falei que você levaria o milésimo? Tu achas que ele ia perder a oportunidade de fazê-lo no Maracanã? Tá tudo arranjado, Milongueiro!
Curtimos uma folga e nos reapresentamos em São Januário na terça-feira, quando realizamos leves preparativos rotineiros para o embate de quarta-feira.
A contusão.
A colina já estava às escuras quando Andrada, inexplicavelmente, caiu no gramado sentindo dores no tornozelo.
Perplexidade total. Minha e dos demais colegas. Pensei: vai sobrar para mim esta encrenca.
Na concentração da Lagoa, à noite, na ponta de uma longa mesa de jantar, os jogadores iniciaram as provocações pra cima do Andrada.
Toda hora alguém chamava o massagista Chico, pra renovar o gelo colocado no tornozelo do goleiro. Beneti insinuava que ele estava pipocando.
Adilson ia mais longe:
– Hei, gringo! Tá com medo? Não tem problema: o Valdir joga, já entrou pra história mesmo com aquele gol contra. Este não vai fazer diferença!
O jogo.
Quarta-feira à noite, nos vestiários do Maracanã, Andrada submeteu-se a um teste, supervisionado pelo doutor Arnaldo Santiago. Era evidente o seu nervosismo.
Falou mais alto o profissionalismo; ele decidiu jogar.
E como jogou!
O clima no maior estádio do mundo era de festa: quase 70 mil pagantes, devia ter uns 30 mil a mais, entre autoridades e caronas.
Os dois times entraram em campo lado a lado, liderados pelos seus capitães, empunhando a bandeira brasileira.
Perfilados, ouviram o hino nacional.
No banco de reservas, ficamos admirados ao ver o diretor Iraci Brandão disfarçar, embaixo dos braços, uma camisa branca do Vasco com o numero 1.000.
Era mais um que torcia pelo milésimo acontecer naquela noite.
O jogo teve início e desde cedo ficou visível a falta de colaboração dos jogadores vascaínos: primeiro Beneti, abrindo o placar na primeira etapa; e principalmente o goleiro Andrada, que pegou tudo e fez a maior defesa que eu já presenciei no Maracanã.
Pelé limpou a jogada pelo lado direito da grande área do Vasco. Andrada deu dois passos à frente, posicionando-se para defender um possível chute forte. O gênio meteu uma curva de fora para dentro, com o lado externo da chuteira, em direção ao ângulo superior direito da meta do arqueiro. Com um salto fantástico, Andrada saiu do solo para espalmar de mão trocada a bola que parecia inapelável.
No segundo tempo, o zagueiro René, para impedir o gol de Pelé, não teve dúvidas: antecipou-se ao atacante e fez contra (e de cabeça!) o gol de empate do Santos.
Aqui não!
Jogo que segue.
O pênalti.
O Vasco pressionou e o árbitro deixou de marcar um pênalti a nosso favor, gerando protestos de todo o time. Manoel Amaro mandou seguir a jogada e, no contra ataque, não titubeou em marcar uma penalidade máxima aos 32 minutos, extremamente duvidosa, de Fernando em Pelé.
Afinal, o pernambucano Manoel Amaro também estava louquinho para entrar para a historia e se imortalizar, às custas do Rei.
Bola na marca fatal.
O público emudeceu.
Os jogadores do Santos se posicionaram no centro do gramado.
Pelé deu apenas três passos… e fuzilou, com perfeição, o arco do Andrada, que saltou como um felino para o canto esquerdo e passou roçando os dedos da luva na bola, que foi se aninhar no fundo do barbante, da baliza à esquerda da tribuna de honra do Maracanã.
Seus punhos socaram o chão, inconformado por levar o gol que o colocaria para sempre na história do futebol mundial.
Logo ele, cujo maior desejo era entrar para o hall da fama como o melhor goleiro a vestir a camisa número 1 vascaína.
Pelé buscou a bola no fundo do arco e a beijou.
O jogo parou. O gramado foi invadido por uma legião de repórteres. Pelé dedicou seu gol às criancinhas, e foi carregado nos ombros dos companheiros. Chico vestiu a camisa do Vasco em Pelé que, com ela, deu a volta olímpica no gramado do Maracanã.
Após uma longa pausa para as comemorações, o jogo chegou ao final com poucas emoções.
Aliás, tivéramos muitas para apenas uma noite.
Conseqüências
Assim, naquela quarta feira, entraram para a história: o milésimo gol de Pelé; e Andrada, que ganhou o título de O Arqueiro do Rei.
O atacante Acilino, do Vasco, mesmo derrotado, comemorou o seu aniversário.
O Dia da Bandeira passou em branco. E poucos deram importância a Apollo 12, que (dizem!) pousou no Mar das Tempestades, quando dois americanos (Paul e Ringo, quem sabe?) pisaram o solo lunar.
O árbitro Manoel Amaro declarou que já podia encerrar a carreira porque apitara o jogo mais importante do Século XX.
Chico conseguiu uma das três bolas usadas no jogo (a do milésimo gol, Pelé guardou!) e uma camisa 10 do Santos dadas pelo Rei, devidamente autografadas.
Hoje, o próprio Pelé ignora onde foi parar a camisa 10 do Vasco com o numero 1.000.
O filho
Na comemoração dos 30 anos do milésimo gol, Pelé e Andrada reviveram no Maracanã aquele duelo. Pelé teve que repetir a cobrança do pênalti porque, na primeira, Andrada pegou.
Pelé se queixou:
– Pô, gringo! É para repetirmos o lance!
Andrada, muito sacana, emendou:
– Tá difícil, amigo… Agora, eu já sei o canto que você vai chutar!
Naquele mesmo dia, falei pro Andrada, no Rio:
– Gringo, tu devias agradecer todos os dias: não por ter levado o milésimo gol, mas porque tu quase defendeste aquele pênalti!
– Como assim, Valdir?
– Tchê, aquele gol passa toda hora na televisão… Imagina o teu filho, em casa, lamentando:
Carajo, papá! No saliste en la película… Saltaste para el otro lado, mientras la pelota se fué para el lado opuesto”.
Ficha técnica
Santos 2 x 1 Vasco
Data: 19 de novembro de 1969
Local: Estádio do Maracanã
Árbitro: Manoel Amaro de Lima
Gols: Santos – Pelé (pênalti) e Renê (contra); Vasco – Benetti
Santos: Aguinaldo; Carlos Alberto Torres, Ramos Delgado, Djalma Dias (Joel Camargo) e Rildo; Clodoaldo, Lima, Manoel Maria e Edu; Pelé (Jair Bala) e Abel.
Vasco: Andrada; Fidélis, Moacir, Fernando e Eberval; Bougleaux, Renê, Acelino (Raimundinho) e Adílson; Benetti e Danilo Menezes (Silvinho).
PAGAR PARA VER A SELEÇÃO?
:::::::: por Paulo Cézar Caju ::::::::
Quando eu era pequeno me lembro claramente dos mais velhos se mobilizarem para assistir uma partida da seleção, mesmo os amistosos. Desde cedo, as resenhas aconteciam nos bares e ruas. Quem seriam os titulares, quem eram os destaques do time adversário? O clima era contagiante. Qual time teve o maior número de jogadores convocados? Normalmente, Botafogo, Cruzeiro e Santos venciam. Vasco teve uma época que cedeu vários. Quando o jogo era fora do Rio os radinhos de pilha não desgrudavam das orelhas.
Mesmo no trabalho, o torcedor dava seu jeito de ouvir. Na tevê, Bombril da ponta da antena para melhorar a imagem. Os locutores triplicavam a emoção e eram especialistas em palpitar nossos corações. Anos mais tarde, já profissional, acompanhei as ruas sendo pintadas e enfeitadas. Ontem, à noite, me liga um amigo, Guilherme Meireles, perguntando onde estava sendo exibido Brasil x Uruguai, jogo das Eliminatórias. Vou repetir, Brasil x Uruguai, clássico internacional, de lendária rivalidade.
Pouco me importa se eu não dou ibope para essa seleção, mas muitos torcedores gostam e deveriam ser respeitados. Zapeei pelo Sportv, Fox, ESPN, Band Sports, Globo, Record, TNT, SBT, PDT, PSOL, LSD, o escambau. Libertadores passa no SBT e outro dia um jogo da seleção foi transmitido pela TV Brasil. Os jogos do Athletico Paranaense ninguém consegue ver, os do Flamengo depende, uma avacalhação total.
Retornei a ligação para Guilherme perguntando se ele havia desvendado o mistério. Parece que a Globo não se acertou com a empresa dona dos direitos desse jogo, respondeu ele. Até aí, tudo bem. Mas em qual canal está passando? “Sei lá, um setencentos e tal, mas só pagando…”. Peraí, pagar para ver essa seleção, vou continuar vendo Animal Planet, disse e desliguei. É como comentou acertadamente Wilker Bento, um leitor da coluna: Não importa se a seleção é boa ou ruim, mas se é apaixonante. E essa está longe de nos emocionar e encantar.