JOEL, O MELHOR PONTA-DIREITA DA HISTÓRIA DO MENGÃO
por André Felipe de Lima
E pensar que um dia, levado pelo irmão João, Joel quase iniciou a carreira no Vasco. Não o fez por um motivo torpe: ao tentar um gol de letra durante o teste em São Januário, teria humilhado ninguém menos que o goleiro Barbosa. Nunca mais retornou ao clube da Colina. O jovem poderia ter desistido de tudo após o decepcionante desfecho com o Vasco. Mas não. Quis seguir adiante. Sabia que algo bom o destino lhe reservara. Se um dia chove, no outro reluz o sol. Esse clichê, diria Nelson Rodrigues, é “batata”.
Em 1951, ainda juvenil, Joel começou a mostrar o seu valor. O Botafogo, clube onde iniciou a carreira em 1948, e o Flamengo travaram uma belicosa batalha pelo passe do rapaz. O embate era um prato cheio para a imprensa da época, que estampava manchetes sobre os porquês de uma briga pelo passe de um garoto que consistia apenas em uma “promessa de craque”. Questionamento que o cronista Geraldo Romualdo da Silva fazia constantemente: “Por causa de um moço calmo, não ainda um nome feito em sua promissora esportiva, pelejam ardentemente, tenazmente, demagogicamente, furiosamente, dois grandes clubes. Dois clubes. Dois clubes que deveriam constituir poderosos alicerces morais de um regime. Dois clubes que juntos, sinceramente unidos e sinceramente entendidos, muito poderiam fazer pela boa causa e pela causa justa do futebol nacional”.
Na mesma crônica, Geraldo Romualdo da Silva cita o que o primeiro técnico de Joel no Botafogo, Newton Cardoso, dissera sobre a “promessa” de craque: “Pra que negar? É um craque de extraordinário futuro! Tão bom é que já havia ultrapassado a categoria de aspirantes, numa idade em que não é comum o aproveitamento de aspirantes nos quadros efetivos dos chamados grandes clubes. Dos clubes que só gostam de craques feitos. Este ano Joel deveria ser o nosso ponteiro titular, pela alta capacidade demonstrada nos amistosos que disputou no Rio Grande, Porto Alegre, Pelotas e Bagé, quatro ao todo, dois em Pelotas, um em Bagé e um em Porto Alegre — além de mais dois que cumpriu em São Paulo — um contra o Corinthians e um contra o Santos”.
Veja o que o craque Geninho, do Botafogo, achava do então menino Joel ao vê-lo reluzente em campo: “Craque inato, de clara percepção nos lances, talentoso e extremamente valente a despeito da idade e do físico um pouco frágil. Tinha um maravilhoso futuro pela frente [nota: no Botafogo]. Acredito que ainda o tenha e torcerei para que triunfe. Mas se por ventura não chegar ao que promete, culpa não será somente sua, e sim, acima de tudo, de quem o conduziu pelos tortuosos caminhos do escândalo”. Escândalo esse a que se refere Geninho a briga de bastidores pouco, muito pouco, ortodoxa, entre cartolas dos dois clubes para ter o garoto. Ou seja, não é primazia do século 21, a briga de foice entre os clubes por jovens talentos.
Interessante reportagem de Alfredo Curvelo mostrava a preocupação da imprensa com o “Caso Joel” e as consequências que tal disputa poderia provocar na relação entre os clubes de futebol dali em diante. “Joel, na qualidade de amador, menor, vítima inclusive da modalidade com que lhe poderiam ter deformado a condição de amador, tinha e tem o direito de ficar onde está ou transferir-se para onde bem quiser. O tribunal equivocou-se na recusa ao reconhecimento desse direito que lhe conferem as leis desportivas, mesmo conhecida a situação, de fato, do dinheiro recebido, no que não existe exceção, sabendo-se que a própria Federação assim o premiara como premiara os seus outros companheiros de seleção. Contrato não se conhece entre o jogador e o seu clube de origem e o contrato é condição essencial para que se reconheça a condição de profissional.”
O passe do ponta-direita acabou comprado por Alberto Borgerth, então presidente do rubro-negro, que pagou 100 mil cruzeiros, uma quantia elevada e comparada a um carro de luxo. Carlito Rocha, que presidia o Botafogo, enfureceu-se com o assédio e levou o caso às raias da justiça. Em vão, porém.
Em 1951, o Botafogo perdera Joel, que estreara no profissional no dia 2 de outubro de 1950, em uma derrota por 2 a 1 do Botafogo para o São Cristóvão, no campo da rua Figueira de Melo. A certeza de Carlito Rocha de que deveria mantê-lo aconteceu em um torneio realizado em Porto Alegre, do qual o Botafogo saiu campeão e Joel, o grande nome da competição.
Batizado Joel Antônio Martins, o ex-craque nasceu no dia 23 de novembro de 1931, na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente na rua Andrade Pertence, no bairro do Catete. Filho de José Antônio Martins e de Deolinda de Almeida Martins, Joel teve dois irmão mais velhos que também jogavam futebol. O mais velho, José, defendeu os juvenis do Fluminense. Parou logo. O do meio, João, iniciou no Flu e chegou a jogar entre os profissionais do Vasco. O pai não os queria como jogadores. Definia futebol como “um esporte estúpido”. O quiproquó entre Flamengo e Botafogo pelo passe de Joel por pouco não o retirou dos gramados. Seu José não gostava da dimensão que o assunto ganhou na imprensa. O próprio Joel ameaçou desistir da carreira. Pediu 30 mil cruzeiros ao Botafogo, que não o atendeu, mas também não quis liberá-lo. Como ainda era amador, tentou a transferência para o Flamengo via Tamoio de São Gonçalo. Foi o estopim para a crise do Alvinegro com craque.
E que grande craque. Ponta na melhor das definições, Joel sabia driblar e cruzar com perfeição, além de ser bastante veloz. Aliando estas características, ajudou o Mengão a ser tricampeão do Rio de Janeiro, em 1953,54 e 55. Ao lado de Rubens, Índio, Evaristo de Macedo e Zagallo formou um dos melhores ataques da história do time rubro-negro. Logo foi convocado para a seleção brasileira.
Enquanto isso, em General Severiano, um ponta-direita com pernas tortas e apelido de passarinho chegava do interior do Rio para tentar a sorte no futebol. Seu nome? Manoel dos Santos, também conhecido como Garrincha. A sete que seria de Joel foi parar no corpo de Mané.
Joel e Garrincha foram convocados para a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Era o titular até o técnico Vicente Feola barrá-lo e em seu lugar escalar Garrincha. Com a camisa da seleção, Joel atuou em 15 partidas. Foram 10 vitórias, três empates e quatro gols.
Joel também defendeu o Valencia, da Espanha, entre 1958 e 1961, ano em que voltou para o Flamengo. Pelo clube da Gávea, disputou 404 jogos, venceu 244, empatou 74 e marcou 115 gols. A estreia do craque foi na derrota de 1 a 0 em um Fla-Flu, no dia 14 de outubro de 1963. A despedida, em um empate cujo placar foi 0 a 0, com CCA Rostov, da Rússia, no dia 28 de maio de 1963. Joel jogou ainda pelo Vitória, de 1963 a 1964, ano em que foi campeão baiano.
O ex-ponta Joel, já em fim de carreira, sofreu uma humilhação do então treinador Flávio Costa, exatamente no dia 15 de dezembro de 1962, a poucas horas do jogo decisivo entre Flamengo e Botafogo. A caminho do estádio do Maracanã, Costa, segundo o cronista Roberto Porto, teria mandando parar o ônibus da delegação rubro-negra na Praia do Flamengo, na rua Silveira Martins, e supostamente disse a Joel: “Pode descer aqui que você não vai jogar”. O jovem ponta Espanhol foi escalado no lugar de Joel. Gérson, de forma equivocada, foi deslocado para a ponta-esquerda para marcar Garrincha e o Botafogo deu um passeio e saiu de campo campeão.
Joel chegou ao Botafogo por intermédio do irmão João, que o apresentou a Newton Cardoso, que dirigiu João no Fluminense e estava, naquele momento, em 1948, no Botafogo. O início nos juvenis não foi tão fácil devido às brincadeiras de Dino da Costa, que depois tornou-se seu grande amigo. Joel apresentava um corte no lábio que provocava afonia. Dino o apelidou de “Choeim” e de “Cobrinha”. Durante uma partida inteira o chamava pelo apelido. “Felizmente nunca soube [referindo-se a Dino] o verdadeiro sentido da palavra complexo”. Mas Joel e Dino eram grandes amigos. Subiram juntos para os profissionais.
Após pendurar as chuteiras, foi treinador, principalmente das divisões de base do Flamengo. Morreu no dia 1º de janeiro de 2003, uma quarta-feira. Embora sofresse de problemas gastrointestinais, Joel faleceu após uma parada cardíaca. O corpo do ex-jogador foi enterrado no cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, na zona sul do Rio.
VÍDEO/ JOEL, O MELHOR PONTA-DIREITA DA HISTÓRIA DO FLAMENGO
Pedrinho Vicençote
LATERAL EM BUSCA DE DIAMANTES
por André Luiz Pereira Nunes
Pedro Luís Vicençote, nascido em Santo André, em 22 de outubro de 1957, é lembrado como craque solitário de um Palmeiras desesperado pela ausência de títulos. Um menino louro que desfilava seu talento e elegância pelo flanco esquerdo do campo, entre 1979 e 1981, alcançando curiosamente a artilharia de seu time no Campeonato Paulista. Sua escalada rumo ao sucesso foi meteórica. Em 1982, vendido ao Vasco, disputou a Copa do Mundo da Espanha como reserva de Júnior. Sobre a magnífica campanha do Brasil, Pedrinho acredita que a equipe simplesmente deu azar contra a Itália, pois merecia a vitória.
– Não acredito que os italianos fossem superiores. Tanto é verdade que se classificaram na primeira fase com muitas dificuldades e de acordo com os critérios de desempate. É certo que depois o time engrenou, prevalecendo a estrela do treinador e de Paolo Rossi, mas o Brasil era muito mais técnico. Se jogássemos mais dez vezes contra a Itália, tenho certeza de que ganharíamos as dez vezes.
Em São Januário, sagraria-se campeão carioca, em 1982, uma conquista das mais surpreendentes, pois o Flamengo, de Zico, Júnior, Nunes, Tita e Adílio era favorito. Em que pese a superioridade do adversário, revela que jamais deixou de acreditar no título.
– Para nós nunca houve favoritismo do rival. Entrávamos sempre para ganhar. O Antônio Lopes fez as modificações que julgou necessárias e o time subiu de produção na reta final do campeonato. O Flamengo podia ter um grande elenco, é verdade, mas nós também tínhamos, tanto que ganhamos com méritos.
O habilidoso lateral só deixaria o Gigante da Colina ao acertar a sua transferência para o modesto Catania, da Itália, por cerca de um milhão e duzentos mil dólares no ano seguinte. Na ocasião, contaria com a companhia de outro brasileiro no elenco, o meia ofensivo Luvanor, revelação do Goiás no Campeonato Brasileiro. A transferência, contudo, pode ter lhe custado o fim de um ciclo vitorioso na Seleção Brasileira iniciado, em 1979, com Cláudio Coutinho. Sobre isso o ex-lateral revela:
– De fato, naquele tempo, não tínhamos a mesma visibilidade no exterior por parte da mídia. Os jogos não eram televisionados como agora. Ressalta-se o fato de ter ido atuar em um time pequeno, oriundo da segunda divisão. Porém, era ídolo na cidade e ainda contava com a admiração do presidente. “Garoto-propaganda” de uma fábrica de colchões, era sempre lembrado a participar de programas esportivos no rádio e na televisão italiana. Certa vez estive com Telê Santana, no Rio, e ele me revelou que me convocaria novamente à Seleção Brasileira se eu retornasse ao Brasil, mas não houve possibilidade. O presidente adorava o meu futebol e me disse que não me liberaria de maneira alguma. Provavelmente foi por isso que fiquei fora dos planos do treinador para a Copa de 1986.
Retornaria, porém sem o mesmo brilho, ao Vasco na temporada de 1986. As contusões atrapalharam e a briga pela titularidade tinha vários pretendentes. Lira e Mazinho eram alguns deles.
No ano seguinte, assinaria com o Bangu, permanecendo no alvirrubro da Zona Oeste até o ano seguinte, quando decidiu encerrar a carreira. Pedrinho se recorda da bela campanha de 1987, quando o time de Guilherme da Silveira capitulou diante do Sport pelas semifinais do Campeonato Brasileiro, do Módulo Amarelo.
– Tínhamos uma grande equipe que era mantida pelo Castor de Andrade. O Bangu contava com nomes conhecidos em seu elenco. O lateral-direito Edevaldo, o zagueiro Mauro Galvão, o meia Arthurzinho e o atacante Marinho já haviam vestido a camisa da Seleção Brasileira.
Conforme publicado pelo site “bangu.net”, Pedrinho disputou 26 jogos com a camisa do alvirrubro de “Moça Bonita”. Foram 11 vitórias, 9 empates e 6 derrotas.
Fora das quatro linhas, Pedrinho continuou ligado ao futebol como empresário. Em matéria publicada pela revista Placar, em 23 de dezembro de 1988, o ex-lateral firmava uma parceria comercial com o cartola italiano Geovani Branchini. Após empresariar a carreira de atletas de sucesso como Edmundo, adquiriu um centro de treinamentos (CT), em Itaguaí, o qual chegou a ser utilizado durante um tempo pelas categorias de base do Vasco da Gama. O agora empresário resolveu fundar um time de futebol, o Vêneto, e a exemplo de outros ex-companheiros de bola, como Zico e Arturzinho, pretende inserí-lo no futebol profissional.
– Minha principal meta para 2021 ou 2022 é filiar o Vêneto à Federação. A intenção não é a de ganhar títulos ou subir obrigatoriamente de divisão. Se revelarmos um atleta por ano, nosso objetivo já terá sido alcançado.
Sobre o futebol brasileiro dos dias atuais, Pedrinho é enfático. Ele acredita que o Brasil ainda retomará o posto de melhor do mundo, mas os time precisam trabalhar melhor os fundamentos dos atletas nas categorias de base.
– Os europeus, nesse ponto, estão muito acima de nós. Ficamos estagnados. Nosso futebol está pobre, sem alegria. Falta fundamentos ao jogador. É necessário trabalhá-los enquanto o jogador ainda está na base. A enorme quantidade de passes errados é um sintoma disso, ratifica.
99 ANOS DA PRIMEIRA MALDIÇÃO DO FUTEBOL
por Pedro Barcelos
Sempre ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Ou melhor, nunca ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Pior ainda se forem palavras de um jornalista do naipe de Euclides da Cunha.
O cenário não poderia ter nome mais irônico: Piedade. Era apenas mais um dia no Rio de Janeiro, já acostumado com as puladas de muro da esposa de Euclides. Ele era mais velho do que ela, viajava constantemente a trabalho e não tinha muito tempo para ela. Fora isso, ele nunca foi reconhecido por sua simpatia e cordialidade. “Os Sertões” vendeu muito bem e o jornal O Estado de São Paulo seguiu delegando coberturas distantes e complicadas ao célebre autor. A notoriedade foi tamanha, que Euclides chegou a ajudar na negociação do Acre, junto à Bolívia. Sem dúvidas, uma das grandes personalidades daqueles tempos. No entanto, a situação familiar seguia de mal a pior.
Ana Emília, que apenas queria ser amada, encontrou em Dilermando (um aspirante do exército) os carinhos que procurava. Os dois se amavam e tentavam viver escondidos, o que, de fato, não acontecia. Toda a capital federal sabia da relação, que inclusive chegou a acarretar em um filho, assumido por Euclides.
Essa relação extraconjugal de anos poderia ter tido um fim naquele domingo, 15 de agosto de 1909, porém o resultado foi bastante diferente.
Decidido a acabar com a vida do amante de sua esposa, Euclides saiu em direção ao bairro que, naquele dia, não vivenciou momentos piedosos. Dilermando estava descontraído na sacada de sua casa, acompanhando o movimento da rua, quando foi surpreendido pelo corno. O silêncio que precede o esporro foi interrompido pela profecia: “Vim para matar ou morrer”. Euclides conhecia bem o poder das palavras e sabia exatamente o que estava falando. Na campanha brasileira pelo Acre, provavelmente aprendeu com algum curandeiro que certas afirmações são incuráveis.
Dilermando correu para dentro da própria casa, em procura de defesa. Euclides entrou sem permissão na residência e encontrou Dinorah, o irmão mais novo de Dilermando e zagueiro do Botafogo. Vendo a arma nos punhos do jornalista, Dinorah tentou correr, mas acabou tomando três tiros. Um deles, o mais degradante, na coluna, logo abaixo da nuca.
Desacordado, não conseguiu ver o triunfo do próprio irmão sobre Euclides da Cunha, tampouco seu semblante de alívio por não precisar mais esconder uma relação amorosa de tanto tempo que de escondida não tinha mais nada. As vitórias enobrecem os homens, mas também os cegam. A euforia fez Dilermando não ter noção do estrago causado. Estes acontecimentos ficaram conhecidos nos jornais da época como a “Tragédia da Piedade”.
Alguns jornais da época enalteceram Dilermando, entendendo que o assassinato do escritor representava uma revanche contra os relatos de Euclides na Guerra de Canudos. Dilermando, um militar, traindo e matando um jornalista que, apesar de republicano assumido, havia denunciado os horrores de um massacre promovido pelo Governo. Era tudo que a imprensa pelega queria.
Euclides faleceu, mas deixou obras de valor histórico permanentes. Os feitos de Antônio Conselheiro e os estragos que o Governo causou contra seus seguidores jamais teriam tamanha notoriedade caso Euclides não escrevesse seu relato jornalístico. Suas obras continuam sendo lidas nas escolas até hoje, 111 anos após a Tragédia da Piedade. No final de contas, Euclides ainda vive. Então alguém precisava morrer.
O Futebol de Dinorah
Dinorah e seu irmão mais velho começaram carreira militar cedo. Dilermando tinha mais aptidão pelas serviços demandados, enquanto Dinorah preferia os esportes. Em 1906, o irmão mais novo começou sua carreira no Internacional (SP). Em 1907, foi campeão paulista e chamou atenção do América carioca. Em 1908, após duas vitórias sobre o Botafogo, Dinorah foi árbitro de uma partida amistosa entre Botafogo e Germânia (SP). Os laços entre o zagueiro e o clube já estavam firmados e Dinorah vestiu a camisa alvinegra pela primeira vez apenas um mês depois, em 12 de outubro de 1908.
No começou do ano de 1909 o vínculo só aumentou. Dinorah jogou e fez gol no jogo histórico contra o Mangueira: 24X 0, a maior goleada do futebol brasileiro até hoje. Contra o Haddock Lobo, jogou no ataque e marcou SEIS gols. Um craque. Exatamente uma semana após a Tragédia da Piedade e ainda com uma bala alojada na coluna, lá estava ele em campo contra o Fluminense, maior rival do Botafogo.
Apesar destes feitos, o ano de 1909 acabou favorável aos tricolores, mas em 1910 seria diferente. O Botafogo foi campeão carioca e recebeu o apelido de “O Glorioso”. Dinorah jogou 9 das 10 partidas naquele torneio imortalizado no hino de Lamartine Babo (hino corrigido apenas em 1996).
O ano de 1911 foi o mais importante de todos para o futebol carioca. Ali se definiram os alicerces e características marcantes de seus protagonistas. Porém, as complicações por conta da bala ainda alojada pioraram e Dinorah começou a atuar menos, participando de apenas três jogos pelo 1º time botafoguense. Em dois anos de clube, foram 29 jogos (21 vitórias; 4 empates; 4 derrotas), sendo 22 jogos com a bala alojada. Esses são números do primeiro time alvinegro, pois era comum na época jogos preliminares ou amistosos serem marcados com times alternativos. Sobre esses dados, infelizmente, não se tem conhecimento.
A Maldita Profecia
Fato era que Euclides da Cunha passará dessa pra melhor, sem dúvidas, porém a maldição continuaria e alguém precisaria sofrer. Dinorah começou a sofrer problemas motores por conta do projétil e precisou parar de jogar bola em 1911. Dois anos depois, foi retirar a bala, mas por conta de um problema médico ficou hemiplégico (perdeu o movimento em metade do corpo).
Transtornado com a situação e sem poder voltar aos serviços militares, vagou pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em procura de esmola. Da glória de campeão carioca à mendigo, bastaram três anos. O esquecimento do primeiro guerreiro do futebol mundial foi mais rápido do que um mandato presidencial. A tortura psicologica causada por um incidente do qual ele não tinha a menor culpa foi enorme. Tentou se suicidar na Praia de Botafogo, mas nem para isso ele teve sucesso. Foi resgatado à contra-gosto.
Em busca de sua última missão, partiu para Porto Alegre, na esperança de encontrar o sossego final. No dia 20 de setembro de 1921, um domingo, se jogou no Rio Guaíba e morreu afogado. Levou consigo uma versatilidade e garra incomparáveis em campo, o título carioca de 1910, a sífilis, o alcoolismo e o esquecimento. Se Dinorah não acatou as próprias dores, creio que poucos, ou ninguém, também conseguiria.
A Decisão Purgatorial
Em 1916, Dinorah ainda soube de outra tentativa de assassinato contra seu irmão: desta vez feita por Euclides da Cunha Filho. Porém, Dilermando sobressairia outra vez e mataria o filho do jornalista.
Euclides deixou filhos, mas Dinorah deixou herdeiros. Em um esporte praticado basicamente por elitistas da época, este é o primeiro caso relatado de um campeão glorioso que cai no esquecimento popular e mendiga farrelhos pelos cantos da cidade. Euclides anunciou: “Vim para matar ou morrer”! Esta frase ecoa até hoje nos ouvidos de todos os jogadores que iniciam carreira no futebol: “é vencer ou morrer”. Muitos morrem e são esquecidos, assim como Dinorah, infelizmente.
O que era, até então, um esporte humano, passou a ter preposições sobrenaturais com aquele tiro sem piedade na coluna de Dinorah. Um campeão jamais poderia ser esquecido. Isso é irracional, é sobrehumano. É uma maldição! A maldição da qual não se basta ganhar, é necessário algo a mais. E é exatamente esta a crueldade posta a partir daquele fatídico domingo: a incógnita do que significa o “algo a mais”.
Seu falecimento completa 99 anos no dia de hoje. Aposto que daqui a uma ano, no centenário de sua morte, a data passará despercebida por grande parte dos torcedores de futebol, incluindo os do Botafogo. Uma pena para Dinorah, seus familiares e a história do futebol brasileiro. E o pior: tudo isso por culpa de um chifre!
ANAPOLINA, 40 ANOS DEPOIS
por Paulo-Roberto Andel
(Foto: Chandy Teixeira)
O futebol, essa paixão arrebatadora, possui um tempo próprio. Para qualquer um de nós, dez, vinte ou quarenta anos são uma longa trajetória. No apaixonante jogo de bola, não: parece ter sido outro dia. Os grandes lances, gols e acontecimentos ficam marcados com tinturas de eternidade.
E como quarenta anos passam rápido, foi outro dia mesmo que uma linda zebra marcou a história do futebol carioca – que na verdade é fluminense mas nós, cariocas, chamamos assim por orgulho da nossa cidade. Tempos de um futebol poderoso no Rio de Janeiro, com craques nas seis grandes agremiações e ótimos jogadores nas equipes de menor investimento, proporcionando partidas disputadas e emocionantes. O Cariocão era tão bom que era a principal competição de futebol do Brasil, muito mais falada do que o Campeonato Brasileiro. Libertadores? Pfffffff.
Numa quarta-feira chuvosa de 1980, no bravio Estádio Atílio Mariotti, Serrano e Flamengo jogaram pelo segundo turno do Estadual daquele ano. E este é um jogo que nunca mais foi esquecido. A vitória do querido clube petropolitano por 1 a 0 ainda é cantada e decantada por muitos que adoram o futebol daquele tempo. Todo mundo que hoje tem mais de cinquenta anos e gosta de futebol já ouviu falar de “Tetranapolina”, expressão jocosa que mistura o fim do sonho do tetra campeonato carioca do Flamengo com seu algoz, o ponta-esquerda Anapolina.
Foi uma noite marcante por muitos motivos. Primeiro, porque a derrota do timaço rubro-negro, com nomes como os de Zico, Tita, Adílio, Luis Pereira, Júnior e Leandro, foi completamente inesperada, porém justa. Segundo, porque naquele jogo um grande nome do futebol brasileiro despontou nacionalmente: o do goleiro Acácio, que defendeu o possível e o impossível, abrindo o caminho para se tornar um dos grandes nomes do Vasco.
E terceiro, pela trajetória chapliniana do herói da partida: Anapolina só voltaria a campo mais uma vez pelo Serrano e encerraria a carreira, não por vontade própria mas pela necessidade de um trabalho mais estável. Deixou o futebol, virou garçom, depois mecânico e, por fim, motorista de caminhão. Teve uma vida simples e batalhadora, mas nunca mais foi esquecido, ainda que tenha trocado seu apelido nacionalmente famoso pelo de Cerqueirinha, diminutivo de seu sobrenome. Elimar Cerqueira, o herói de um jogo só. Ah, e a cereja final do bolo: Anapolina era torcedor do Flamengo. Mas por que Anapolina? Elimar era egresso do time goiano e, nos treinos do Serrano, quem não sabia seu nome dizia “Chama lá o Anapolina”.
Naquele Serrano e Flamengo teve de tudo: chuva, frio, neblina, muita luta, pouco futebol e um gol inesquecível. O resultado eliminou o fortíssimo time da Gávea da disputa do título estadual: o Vasco acabaria sendo campeão do segundo turno, fazendo a final do campeonato com o Fluminense, decidida por um gol de falta de Edinho a favor dos tricolores. E é o recorde de público da história do Estádio Atílio Mariotti, com 14.998 torcedores presentes, em sua maioria avassaladora de flamenguistas. No fim do jogo, uma cena se tornou inesquecível: emocionado, um torcedor do Serrano atravessou o gramado enlameado de joelhos, comemorando como se fosse um título – e, pensando bem, foi.
Apesar de todo o sucesso que obteve nas últimas quatro décadas, o Flamengo não conquistou um tetracampeonato no Rio, comprovando a força do resultado daquele dia. Já o modesto Serrano luta para voltar aos seus dias de glória na primeira divisão.
Anapolina morreu em 2013, ainda jovem, mas quem disse que ele não vive na imortalidade? Quarenta anos depois, seu feito é respeitado e lembrado. O destino o escolheu: ele nem era titular e acabou escalado mais para ajudar na marcação. Acabou escrevendo uma linda página do nosso futebol, que permanece muito viva. Tetranapolina!
@pauloandel
RESGATE À ESSÊNCIA
por Felipe Corvino
O futebol não é só um jogo. É uma forma de vida. É uma cultura. Se você não respeita e não compreende sua cultura, você perde sua identidade. Sem identidade você não cria, não imagina, não supera os obstáculos do jogo e da vida. A sanha em reproduzir o estilo de jogo europeu evidencia que estamos cada vez mais nos afastando de nós mesmos. Quase todos, para não dizer todos, os analistas de futebol sugerem a reprodução do que “dá certo” na Europa com relação ao estilo de jogo. Mas não entendem que “domar os corpos” do jogador brasileiro é amputar sua liberdade criativa. É limitar a sua possibilidade imaginativa. E aqui recorro ao historiador francês Serge Gruzinski para utilizar o conceito “colonização do imaginário”.
O que quero dizer com isso? Que no campo de jogo tal qual no jogo da vida estamos reproduzindo comportamentos mirando num modelo de “civilização” que não nos representa, que tira nossa potência. Num modelo de sociedade que sempre precisou da força e da violência pra impor seus conceitos, suas vontades e que nos castra. E nós introjetamos, enquanto país que por muito tempo sofreu com a catástrofe da colonização, da escravidão e do controle do corpo, essa ideia.
Não. Não é necessário ignorar o que se faz pelas bandas de lá. Mas é preciso, urgentemente, resgatar os signos que nos fazem únicos. E o futebol é uma ferramenta que traduz de maneira evidente essa perda cada vez maior da nossa identidade devido a imposição de uma métrica, um modelo, uma tática e um jeito específico de jogar.
Precisamos nos “deseducar” pra desapegar desse método para que possamos voltar a nos entendermos e nos reaproximarmos novamente daquilo que nos define. Não é na força, na velocidade ou na tática que vamos virar o jogo. É no samba, no preenchimento dos espaços vazios entre uma marcação e outra, é na finta, no drible, assimilando que há caminhos variados e que nem sempre o menor trajeto entre 2 pontos é uma reta.
Os lançamentos parabólicos do Gerson me conferem razão. O futebol pobre, hermenêutico e sem criatividade é um sintoma de uma sociedade que cada vez mais se permite “ser o que não é” e se nega a assumir sua identidade. E quando lhe é negado tudo “o que é” para ser o que não é perde – se o encanto. O propósito. A paixão. Perde-se a si próprio. É flagrante que nós necessitamos nos achar, pois estamos completamente perdidos. Só assim é possível buscar o placar e virar o jogo.
E aí meu camisa 10, vai tocar de lado ou vai desafiar as leis da física e reinventar o tempo/espaço pra fazer a jogada mágica e inesperada rumo ao triunfo e buscar teu reencontro contigo mesmo?
Felipe Corvino, vascaíno, historiador e metido a besta a escritor.