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BÊNÇÃO

28 / maio / 2025

por Cláudio Lovato Filho

Um velho e um cachorro (também velho) estão atravessando a rua. Eles caminham em direção ao campo. Há um jogo acontecendo lá. É uma partida entre dois times de garotos de 13, 14 anos.

O velho se posiciona numa das laterais, quase na marca do escanteio. O cachorro senta ao lado dele. Os dois olham para o campo, que não tem marcações. A grama, porém, é parelha e bem cortada, e não há muitos buracos. É o campo do bairro.

É uma correria só. Correria e gritaria. Todos tentando ficar o mais próximo possível da bola, ou ao menos do lance em que a bola é a estoica protagonista.

Então, de repente, alguém consegue dar dois toques seguidos na bola. E três. E quatro. E se afasta do bolo que parece ser formado por mais de mil e quinhentos garotos (ainda que sejam menos de vinte).

O garoto de pernas arqueadas conduz a bola bem perto do pé esquerdo, rápido e concentrado. Ele vai deixando o enxame de companheiros e adversários para trás, cada vez mais para trás, e por fim invade a área, aplica uma finta que faz o goleiro se estabacar na grama e depois manda a bola rasteirinha para o fundo do gol.

Ele ergue os abraços no exato momento em que é cercado pelos companheiros de time, que o felicitam e dão tapas na sua cabeça. Uma euforia só.

Depois, quando o alvoroço se desfaz, ele começa a voltar aos trotes para o seu campo, mas no meio do caminho desvia a trajetória e corre em direção ao local onde estão o velho e o cachorro.

Quando chega lá, diz:

“Bênção, vô” – e recebe em troca um afago no alto da cabeça e um sorriso do velho, além de um latido do cachorro, que fica de pé, com as duas patas da frente apoiadas na barriga do menino (logo recolhidas, porque as articulações não estão ajudando). A camiseta, suada, fica com as marcas do cumprimento do cão.

“Deus te abençoe, garoto”, o velho diz, mas o neto já está de volta ao jogo, fazendo aquilo de que mais gosta na vida.

Passa-se algum tempo, e então o velho e o cachorro dão as costas para o campo e começam a caminhar em direção à rua. Vão devagar, e não se sabe ao certo quem conduz quem.

Atravessam a rua. O cachorro late para outro que passa. O velho olha para o campo do outro lado da rua e sorri.

A lembrança do gol do garoto faz valer o dia, ou muito mais que isso. A corrida do garoto com a bola dominada. A finta no goleiro. A bola rolando para dentro do gol. Lance de craque. O garoto fez de novo. Faz quando quer. O velho sorri mais. 

Para o velho, nada é mais importante, neste momento, do que o que acaba de presenciar. Nenhuma preocupação, nenhum medo, nenhum pensamento sobre finitude. Tudo isso transformado em pó, ou ainda menos que isso, diante da soberana lembrança do gol do garoto.

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