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QUANDO UM ÍDOLO VAI EMBORA

por Zé Roberto Padilha

Quando você perde um ídolo, e foi assim, em meio a uma reverência concedida ao Rei Pelé, em seu palco iluminado, o Maracanã, seja em uma dramática despedida pela TV, a Ayrton Senna, em Ímola, em um domingo pela manhã, a gente perde mais que um sentimento de idolatria.

A gente perde o que o esporte reúne de mais fascinante. Nossos ídolos, como Eder Jofre, João do Pulo, Paula e Hortência, foram os Deuses que nos permitiram, mesmo na poltrona, alcançar o Monte Olimpo.

Sem ter quem nos conceda arte, emoção, um elástico, contra o Vasco, uma pole-position em Interlagos, um tricampeonato em Roland Garros, uma vitória no basquete contra os quase imbatíveis americanos, a nossa vida esportiva seria um lugar comum.

O esporte, um porre.

Como ficar a a aguardar, durante toda uma temporada, um gol do Lima? Do Samuel Xavier?

Aquela raridade alcançada pelo Guga, que de tão inesperada foi aquela bomba Rivelino, de fora da área, que fez, com toda justiça, aquele momento ser único em sua carreira.

Foi o último a sair de campo, a dar entrevista, a tomar um banho e chegar em casa. Se chegou.

Fora isso, nossos jogadores tricolores representam um grupo de excelentes profissionais, competentes, disciplinados, mas que são incapazes, pelo previsível conjunto de suas obras, nos levantar da cadeira.

Ficar 90 minutos aguardando que o Ganso encontre um atalho entre um mar de pernas, e que o Keno receba a bola sozinho diante do goleiro. E que o Everaldo reviva, por um voleio sequer, a precisão das conclusões do Flávio. O Minuano.

John Arias era nosso arco, e quando a flecha se encolheu, tratou de ser arco e flecha também. Dono de um domínio absoluto de bola, equilíbrio raro como atleta, só caía quando o cartão amarelo era apresentado a quem “utilizava força desmedida” ao interceptar suas jogadas. Nunca em direção às laterais, todas em direção à meta.

Ele cruzava uma bola como ninguém. Descobriu a arte de sua trajetória que não permitia ao goleiro adversário sair. Ou que sua zaga se antecipasse. Toda a defesa contrária ficava no meio do caminho. E era aí que nossos adversários entravam pelo Cano.

Já que toda a nossa recente idolatria será congelada, e o desejo do nosso ídolo de sair e ser feliz seja respeitado, que pelo menos o Fluminense nos permita encher o Maracanã. E agradecer a ele.

Antes que parta em silêncio, como partiram Nino e André, sem receber a nossa gratidão. O agradecimento pelo que nos permitiram alcançar o paraíso das Américas.

Eles, que deixaram o Galeão nos braços da família, não foram capaz de perceber o quanto nos ajudaram a ser felizes. Que seja, com John Arias, diferente.

Porque ele merece por ter sido, ao lado do Fábio, depois do Fred, os últimos dos nossos ídolos.

A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA

por Letícia Woolf e Sofia Castro

No Brasil, é muito difícil estar alheio ao futebol. No trabalho e na faculdade, comentam o resultado injusto do Fla-Flu; no Uber ou no táxi, o motorista escuta o jogo do Vasco; no bar, a madrugada reprisa o último jogo da Série B. Nem a jornalista e escritora Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, foge dessa realidade. A melhor forma de evitar um silêncio constrangedor, dizem, é perguntar sobre o time. Todo mundo tem um time, até Clarice. A autora de “A Hora da Estrela”, “Água-Viva”, “Laços de Família”, entre outros livros, era torcedora do Botafogo de Futebol e Regatas.

Em março de 1968, ela expõe, pela única vez, sua relação com o esporte. O jornalista Armando Nogueira a desafia a escrever sobre futebol. Diz que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica dela sobre futebol. Clarice rebate: se o time dele for o Botafogo, melhor não fazer isso. Na crônica intitulada Armando Nogueira, futebol e eu, coitada, a escritora revela um aspecto da sua vida até então nunca discutido – a paixão pelo clube:

“Deixe eu lhe contar minhas relações com futebol, que justificam o ‘coitada’ do título. Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo”.

Botafoguenses sempre foram conhecidos pelo pessimismo. O time pode estar ganhando de 10 a 0 e faltar cinco minutos pro fim do jogo, mas o torcedor sofre como se fosse um suado empate em 1 a 1. Como a autora mesmo diz, ela retém sua tendência ao excesso. Na verdade, qualquer torcedor apaixonado tem, de certa forma, essa tendência.

O excesso se manifesta, por exemplo, nas brigas de torcidas, nos debates acalorados, nos dramas do jogo tratados como gota d’água. Em 2008, o torcedor Luiz Fernando Vilaça tentou se jogar da marquise de São Januário após a confirmação do rebaixamento do Vasco – como se a derrota ultrapassasse o gramado e fosse tamanha a ponto de destituir a vida de sentido.

A professora de Cultura Brasileira na PUC-Rio, Luísa Melo, doutora em Literatura, acredita que a intensidade inerente à relação entre o torcedor e o objeto da sua paixão alinhava-se à veia literária e às inquietações da escritora:
“Acho que Clarice, como botafoguense, pôde viver todas as coisas. Viveu a intensidade do sentimento dela”, acredita Luísa. “O teórico Hans Gumbrecht diz que o futebol ganha essa popularidade toda no mundo justamente porque permite um pouco a gente emular a vida. Viver a metáfora da própria vida. Porque na vida as coisas não são justas ou injustas, as coisas acontecem”, acrescenta.

Clarice foi, supostamente, a um único jogo em estádio, acompanhada do filho botafoguense, com quem assistia às partidas na televisão. Ela fazia muitas perguntas. Considerava-se uma ignorante apaixonada:

“Digo ‘ignorância apaixonada’ porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender de futebol”, escreve Clarice. Ela, inocentemente, comparava o jogo ao balé, com movimentos calculados, previsíveis. Neste ponto, o futebol, sabemos, é muito diferente da dança.

O futebol distingue-se também pelas conexões profundas com os torcedores. Muito da magia em torno do esporte está na torcida, nas arquibancadas. “Parte da experiência no futebol é assistir junto, vem dos elos entre os torcedores. Quando acontece um elo de família, isso se fortalece ainda mais”, comenta Luísa.

Em “A Paixão Segundo G.H.”, Clarice eterniza uma de suas frases mais famosas: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. O aforismo, de apelo existencial e filosófico, também pode ser atribuído ao jogo. Talvez seja impossível racionalizar experiências despertadas numa final de Copa do Mundo ou numa vitória sofrida do time do coração. Talvez seja só possível vivê-las, entrelaçadas à abertura do futebol para o improvável, o intangível. 

O Botafogo honra essa inclinação imaterial dos gramados, refletida na mística da Camisa 7 – vestida por Garrincha, Maurício, Túlio Maravilha, Luiz Henrique. Era de Jairzinho em 1968, ano do tal conto de Clarice. Mística atualizada na conquista da Libertadores 2024, com um jogador a menos na decisão desde os quarenta segundos do primeiro tempo, quando é expulso, e o terceiro gol marcado no sétimo minuto de acréscimo do segundo tempo. Clarice provavelmente consideraria essas peculiaridades da final evidências da aura mágica alvinegra.  

Convicta da predestinação, ela explora o místico em figuras como a cartomante, frequente em vários livros. A personagem Macabéa, por exemplo, busca ver o futuro com Madama Carlota, que prevê sua “hora da estrela”: nada mais do que a morte. Macabéa acaba atropelada, ao sair da consulta. Clarice revisita a ideia, central na tragédia grega, de fuga impossível do destino, já traçado.

O Botafogo conheceu, de certa forma, sua “hora da estrela”, ao deixar escapar o Campeonato Brasileiro de 2023, a coroação de uma campanha histórica no torneio. Mas, como o destino é inescapável, ganhou o título de 2024, em cima do grande rival do ano anterior, o Palmeiras.

Clarice Lispector entendia que a vida transcendia o cotidiano e se revelava nos milagres do dia a dia. O Botafogo de Clarice expressa tal perspectiva. Perde do Madureira no Carioca, vence o poderoso PSG (1 a 0), campeão da Champions, vice-campeão mundial. o PSG. Cada botafoguense deve ter sua própria explicação para a façanha na primeira Copa do Mundo dos Clubes. Um pode atribuí-la à promessa de parar de fumar, feita 20 minutos antes da partida. Outro acredita que tenha sido a graça atendida pela reza forte a São Jorge.

A superstição que acompanha a história do clube, e se manifesta nas arquibancadas físicas e digitais, aproximam as vivências do futebol da essência humana que Clarice buscava compreender. No livro “Água viva”, ela navega por sentimentos como religiosidade, solidão e medo da morte – replicados nas relações mediadas pelo esporte. A professora de Literatura da UFF compara: “O futebol é um lindo poema em prosa, no qual se comemora a vida de tudo o que, intensamente, é”.

Para milhões de brasileiros, tamanha intensidade significa, várias vezes, colocar o amor pelo time acima de outros amores. Diante da dimensão sociocultural e emocional do futebol no país, Clarice admitia certa impossibilidade de assimilar a totalidade do esporte. No penúltimo parágrafo da referida crônica, ela abre o coração:

“Então, na minha avidez por participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que representa vida […] É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha de futuro”.

Nesta avidez de participar de tudo, Clarice Lispector se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira e mundial. Aventurou-se por diversos campos. Foi jornalista, romancista e, como lembrado aqui, cronista esportiva. Para acentuar o misticismo botafoguense, Clarice viveu a conquista da Taça Brasil, primeiro título nacional do clube, no mesmo ano de publicação da crônica Armando Nogueira, futebol e eu, coitada. São tantas coincidências que fazem pensar: seria tudo obra do destino?

ANCELOTTI QUER NEYMAR

por Elso Venâncio

A um ano da Copa do Mundo, Carlo Ancelotti aposta na recuperação de Neymar, que renovou o seu contrato com o Santos. Após ter recebido a camisa 10 da Seleção Brasileira, Vinicius Junior não foi bem no Mundial de Clubes. Antes, o próprio treinador do Brasil já alertava: “a camisa 10 pode ter outro dono”.

O compromisso com o Santos assinado por Neymar terá duração de seis meses, podendo ser renovado e com metas que o atacante espera cumprir, de olho na disputa da sua quarta Copa do Mundo. É um modelo que o permite definir o seu futuro a cada janela de transferência, já que não estará preso contratualmente.

Quando tinha 14 anos de idade, Neymar rejeitou o Real Madrid, onde fez um período de testes e foi aprovado. Na época, para manter a jovem promessa, o Santos igualou a proposta dos espanhóis, desembolsando 1 milhão de dólares. Em 2009, Neymar da Silva Santos, pai e empresário de Neymar, vendeu 40% dos direitos federativos do jogador à DIS, fundo de investimento ligado ao Grupo Sonda, por R$ 5 milhões. Foi uma atitude arrojada,, pois caso Neymar não vingasse no futebol, a empresa do pai teria uma dívida de R$ 10 milhões. Mas o que aconteceu foi uma ascensão na carreira do atleta, que se firmou como titular no Santos, conquistando uma Libertadores, uma Copa do Brasil e um bicampeonato paulista.

Não demorou para Neymar ter protagonismo na Seleção Brasileira, o que ocorreu na Copa das Confederações de 2013. Em seguida, foi negociado com o Barcelona, que divulgou o pagamento de 51,7 milhões de euros, sendo 40 milhões para a família do jogador. A transferência, então, passou a ser investigada na Espanha e no Brasil, com possibilidade de ocultação de valores. A DIS, por sua vez, brigou na Justiça, alegando que recebeu menos do que tinha direito.

No Barcelona, Neymar brilhou e fez parte do ataque “MSN”, ao lado de Messi e Suárez. Ficou no clube catalão de 2013 a 2017, tendo comemorado a Tríplice Coroa em 2015, com os títulos da Liga dos Campeões da Europa, de La Liga e da Copa do Rei. Do Barcelona, seguiu para o Paris Saint Germain, que exerceu a cláusula de rescisão e pagou por ele 222 milhões de euros, na mais cara transição da história do futebol.

Atualmente com 35 anos, o craque acumula uma fortuna, que aumentou após a passagem pelo Al-Hilal, superando 1 bilhão de dólares. O valor engloba ganhos com transferências, salários, patrocínios e prêmios ao longo da carreira. As recentes lesões e a irregularidade levantam um questionamento: você acredita que Neymar vai disputar e ter sucesso com a Seleção Brasileira na próxima Copa do Mundo?

DOS CAMPOS E QUADRAS PARA AS TELAS: COMO ANNA AZEVEDO RETRATA A MAGIA DO ESPORTE NO CINEMA

por Victoria Lapenda

A cineasta e jornalista Anna Azevedo é reconhecida internacionalmente por filmes que misturam memória, afeto e crítica social. Ela radiografa o universo esportivo, como espelho humano, em produções como o longa “Geral” (2010), exibido no festival Cinefoot deste ano; e a série “Sem Bloqueio”, que acompanha os bastidores da seleção brasileira feminina de vôlei rumo à Olimpíada de Paris 2024. 

Anna conta que o mergulho cinematográfico na geral, expressão da alma popular do nosso futebol, extravasou o desejo de preservar aquele simbólico espaço do Maracanã. “A histórica geral tinha uma movimentação muito teatral. Cada torcedor ali era um personagem. Como tinham decidido extinguir a geral, quis registrar esse anfiteatro, essa misancene esportiva que só existe aqui”, justifica a diretora, numa conversa durante o 15º, maior festival de cinema sobre futebol da América Latina.

Lançado em 2010, o documentário “Geral” é uma das obras de maior prestígio de Anna Azevedo. Expõe momentos derradeiros do folclórico setor no Maraca. O foco da produção, enfatiza a cineasta, era retratar os “geraldinos” – nome eternizado pelo cronista Washington Rodrigues (1936-2024) aos que ali torciam, de forma tão passional, espontânea, aglutinada.

A narrativa documental se inspirou no Canal 100, cinejornal criado em 1957 por Carlos Niemeyer, cujas imagens conjugavam cenas autênticas do campo e da torcida.  Exibido em festivais brasileiros e internacionais, “Geral” conquistou, por exemplo, o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio em 2010 e o prêmio de Melhor Curta no Festival Internacional de Documentários do Irã.

A produção constrói, curiosamente, um jogo que nunca existiu. Embora a montagem insinue um confronto entre Flamengo e Fluminense, o documentário mescla flagrantes dos últimos cinco jogos disputados antes do fim da geral. O espectador tem a impressão de acompanhar um Fla-Flu – no gramado e na galera.

Ao tabelar o cinema com futebol, Anna abraça a vontade – e a vocação – de iluminar a dimensão sociocultural do esporte no país reconhecido pela afinidade com as chuteiras. Uma dimensão que estampa a identidade cultural brasileira.

“O brasileiro se vê representado na paixão pelo futebol, como um povo capaz de vencer, de participar de grandes disputas, de chegar ao nível das grandes nações e ganhar. Um orgulho nacional. E a gente gosta disso, né? O brasileiro gosta de se mostrar bonito para o mundo. A consolidação da identidade nacional passa pelo esporte, como representação do povo”, opina a documentarista.

Desde a infância o mundo esportivo habita o coração e a cabeça de Anna. Antes de virar cineasta, a graduação em Jornalismo, na PUC-Rio, impulsionava o sonho de participar da cobertura esportiva. Sonho reforçado de novas cores com a ênfase em Cinema do mestrado em Comunicação, também pela PUC; e com a pós em Literatura Brasileira, na UFF. 

“Cursei Jornalismo porque queria trabalhar com esporte. Quando parti para o cinema, fiz filmes sobre esporte. ‘Berlin Ball’ ganhou o prêmio Berlin Today Awards. Depois, eu fiz ‘Geral’ e ‘Três do Tri’. Voltei a trabalhar com esporte, recentemente, com a série do Sportv chamada ‘Sem Bloqueio’, sobre a seleção brasileira de vôlei feminino”, recorda.

As gratificações que a comunicação esportiva lhe rende não dissimulam as dificuldades enfrentadas ao desbravar uma área historicamente dominada por padrões masculinos e machistas. Ela afirma que, “apesar de o jornalismo esportivo ainda ser fortemente marcado por desigualdades de gênero”, o avanço feminino é “inevitável”, e deve ser naturalizado:

“Quem não acha isso é normal vai ter que começar a achar, porque têm muitas mulheres fazendo cinema, fazendo jornalismo e trabalhando com esporte. Nos postos-chaves são outros quinhentos, né? Mas essa realidade está mudando. E é um caminho sem volta”.

Anna também destaca a importância da presença feminina nos estádios e demais ambientes esportivos, onde ainda incidem diversos tipos de preconceito:

“O esporte é um meio machista. Mesmo dentro do esporte feminino, observamos machismo de quem comanda e do torcedor. Só com muita educação, muita campanha (de conscientização) e muita punição, a gente vai conseguir mudar esse jogo e levar cada vez mais mulheres aos estádios”.

O alerta carrega a autoridade de quem acompanha o universo esportivo há 20 anos, como se vê em “Sem Bloqueio”. Dirigida por Anna Azevedo, a coprodução do Sportv com o Canal Azul revela treinos, viagens e jogos da seleção feminina brasileira de vôlei. Uma “experiência muito desafiadora”, orgulha-se. Em vários momentos, relata, foi necessário filmar com o celular: “a prioridade era registrar os bastidores, da forma que fosse possível”. Ela ressalta:

“Foi um aprendizado. Aprender a filmar aqueles corpos, sabe? Como filmar aquela equipe com todas as especificidades de uma equipe feminina. Tem uma delicadeza ali, né? A gente usou muita criatividade e muita cara de pau. Contamos também com a amizade da seleção e do técnico (José Roberto Guimarães), que abriu as portas para a gente. Foi uma mesmo uma escola”.

Filipe LUIS X PEDRO

por Cassyus André

Decidir sobre a elegibilidade de um atleta para o próximo jogo, especialmente após uma lesão grave como a do ligamento cruzado anterior (LCA), exige mais do que analisar uma semana ruim de treinos — principalmente quando esse atleta participou de cerca de 30% dos minutos jogados pelo clube desde seu retorno.

Basear essa decisão em uma semana ruim de treinos ou em impressões superficiais é ignorar o contexto, depreciar um ativo do clube e desrespeitar o processo. É contrariar o que a ciência do esporte e a experiência prática já comprovaram sobre reabilitação e reintegração funcional.

As métricas de GPS são úteis, mas não captam fatores essenciais como prontidão neurocognitiva, confiança, tomada de decisão sob pressão e resiliência emocional. Reduzir esse processo complexo a números e gráficos rasos expõe uma cultura de treino amadora, desprovida de critério, que revela um erro sistêmico.

Esse erro compromete não só a comissão técnica, mas todo o departamento de futebol do Flamengo.

Num clube que busca excelência, decisões desconectadas da realidade do atleta e pautadas por impressões superficiais não são falhas isoladas. São sintomas de um sistema mal conduzido e despreparado para o nível que o Flamengo exige.

Por isso, me dirijo a você, Filipe Luís, que está iniciando sua carreira como técnico: não cometa o erro de esquecer seus 20 anos dentro de campo como jogador profissional.

Sua vivência como atleta deve guiar suas decisões, honrando o vestiário, o processo de reabilitação e o respeito ao jogador.

O vestiário é sagrado. O treino é espaço de construção, escuta, correção e confiança. Transformá-lo em espetáculo público é um erro grave. Liderança não se constrói com manchetes e exposições, mas no silêncio dos bastidores.

Quem rompe esse pacto de lealdade enfraquece a função que escolheu exercer. No futebol de verdade, liderança se prova no silêncio, não no barulho das entrevistas.

Entre expor um jogador e se expor, você, Filipe Luís, preferiu expor o jogador. Mas quem aponta o dedo em vez de assumir a pressão, as críticas e o peso da liderança ainda não entendeu na plenitude a complexidade, a renúncia e a responsabilidade que envolvem liderar no alto rendimento.

Desejo sinceramente que você se torne um dos maiores técnicos do mundo. Mas com apenas seis meses de carreira, ninguém, nem mesmo eu que torço muito por você, tem hoje elementos concretos para garantir que você chegará lá.

Não esqueci os dois meses de 2024 em que, para mim, você não era apenas um técnico começando, mas um deles, um sonhador que compartilhou seus sonhos com alguns jogadores. Naquele momento, a mobilização precisava ser de irmão para irmão, de amigos para amigo. Você não era só um treinador em início de carreira. Era um amigo que precisava deles para começar vitorioso, e eles fizeram por você o que só amigos fazem.

Além disso, o jogo em si é parte do tratamento. A exposição controlada ao ambiente real favorece a readaptação funcional, psicológica e biomecânica. Negar esse processo trava a evolução, gera insegurança e atrasa a confiança pós-lesão.

Sinceramente, não sei se você tem essa consciência, mas sua robusta e competente comissão técnica, composta por psicólogos, médicos, preparadores físicos, fisioterapeutas, fisiologistas e nutricionistas, tem certeza de que o GPS não mede tempo de reação, qualidade da tomada de decisão, nível de atenção sob pressão, coordenação motora fina em situações imprevisíveis, respostas neurocognitivas ao jogo real, conexão entre percepção e ação em contextos caóticos e prontidão emocional.

Reduzir essa complexidade a métricas externas é negligenciar o que realmente constrói um retorno competitivo.

Filipe Luís, quando tiver dúvida sobre para onde direcionar seu olhar, que seja sempre para aquele menino que joga com sonhos — nunca para o “profissional perfeito” que não existe.

Pergunte ao Baggio, que perdeu o pênalti na final da Copa de 94, ou ao Romário, que converteu o dele. Pergunte a eles quem bateu aquele pênalti: o jogador consagrado e milionário ou o menino cheio de medos e sonhos?

Sua carreira como jogador e seus comportamentos apontam um grande potencial. Torço para que você construa uma trajetória brilhante, guiado pela coragem, firmeza, profissionalismo, humanidade e sensibilidade.