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FILIPE LUIS E A CELEBRAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL SOB A ÉGIDE DO PROFISSIONALISMO

por Ricardo Nêggo

Pedro foi tratado feito um moleque que precisa ser exposto publicamente para aprender a “ser homem”

A polêmica recente envolvendo o atacante Pedro e o técnico Filipe Luís, vem gerando um debate muito interessante nas redes sociais e nas rodinhas de discussão sobre futebol. Há muito tempo se discute a falta de profissionalismo de muitos boleiros brasileiros, e a negligência dos dirigentes dos clubes diante dela. O que, em alguns momentos, e de forma equivocada, faz com que torcedores se sintam no direito de tomar as atitudes que os dirigentes não tomam, e cobrem mais comprometimento por parte desses jogadores em abordagens agressivas e violentas feitas no desembarque do time em aeroportos, ou em invasões criminosas nos centros de treinamentos dos clubes. Assim como ninguém aborda o padeiro na porta da padaria do bairro para reclamar que o pão naquele dia estava ruim, torcedor não tem que abordar jogador no seu local de trabalho, ou em qualquer outro lugar que seja.

O caso do jogador do Flamengo admite algumas nuances interpretativas que precisam ser exploradas. Tanto para avaliarmos a atitude do técnico Filipe Luís, que expôs o jogador publicamente como nunca antes na história do futebol desse país, como para entendermos o que acontece com o atacante Pedro, que já foi criticado por outros técnicos, e até agredido fisicamente por um preparador físico do clube, devido a um comportamento considerado indolente. Se Pedro está “roubando” nos treinamentos e sugando o sangue dos companheiros, como foi dito pelo técnico na entrevista coletiva após o jogo contra o São Paulo, obviamente ele precisa ser advertido e punido pela diretoria. O que, não necessariamente, implicaria na exposição pública e tão minuciosa dos fatos como fez o técnico do Flamengo. Filipe Luís chegou a dizer que o desempenho de Pedro nos treinamentos “beira o ridículo”, citando apontamentos feitos sob monitoramento de GPS.

Muitos jornalistas estão aplaudindo a atitude do treinador, louvando a sua visão “europeia” de gerir o grupo, alegando que ele o fez para o bem do Pedro, para extrair o seu melhor, e dizendo que quando alguém resolve cobrar profissionalismo de um jogador de futebol, esse alguém ainda recebe críticas. Ok! Suponhamos que um jornalista de um determinado veículo deixe de ser escalado para uma cobertura jornalística a qual ele sempre foi o responsável, e ao ser questionado sobre o porquê da “barração” do profissional, o chefe de redação venha a público e diga que as últimas matérias daquele jornalista beiravam o ridículo, e que ele já o havia advertido sobre a baixa qualidade delas. Alguém maior de 18 anos, e em sã consciência, consegue enxergar isso como sendo benéfico para o jornalista? Qual outro veículo de comunicação iria contratá-lo após a declaração do chefe? Advertir internamente é válido, e faz parte do ambiente profissional. Expor publicamente nestes termos é assédio.

Tenho a absoluta certeza de que os mesmos jornalistas que estão aplaudindo a “sinceridade” e o “profissionalismo” do técnico do Flamengo, estariam acusando o chefe de redação de assédio moral e cobrando uma punição por parte da diretoria do veículo de comunicação para sua atitude. Aliás, o comportamento da diretoria do Flamengo é outro ponto que merece atenção nessa história. Onde está José Boto, o dirigente português trazido pelo novo presidente do clube para comandar o futebol? No mar? Ele que é um dos responsáveis por toda essa situação, por ter revelado ao jornalista Mauro César Pereira em conversa informal pelo WhatsApp, o desejo de negociar o atacante pelo fato de suas características não se adaptarem ao esquema de jogo do técnico rubro-negro. Chateado e sentindo desvalorizado ao ver isso se tornar público, o jogador teria demonstrado sua insatisfação deixando de treinar no mesmo ritmo dos companheiros. Compressível, mas não justificável.

O fato é que a diretoria do clube se omitiu de se posicionar publicamente sobre o fato, e transferiu a responsabilidade para o técnico se blindando através dele de maiores cobranças por parte da imprensa, da torcida e do próprio atleta. Filipe Luís, que sabe muito bem esconder a sua vaidade por trás de uma falsa humildade que consegue seduzir os menos atentos, pegou a bola das mãos da diretoria, colocou na marca do pênalti e disse: deixa que eu bato. Converteu a cobrança, mas ainda não garantiu a sua vitória no cargo. Afinal, quem tem mais de 18 anos, e está em sã consciência, sabe bem que no futebol brasileiro tudo muda muito rapidamente. Principalmente, para os treinadores. Basta uma sequência de maus resultados e um rendimento do time beirando o “ridículo”, para que Filipe Luís seja exposto por todos aqueles que hoje aplaudem sua atitude imatura, e porque não dizer, pouco inteligente emocionalmente.

Eu gostaria de saber como o Filipe Luís agiria se fosse técnico do Romário, e visse o baixinho chegar virado da noite nos treinamentos, não conseguindo render o mesmo que os companheiros de trabalho. Seria tão profissional e “europeu” a ponto de expor o tetracampeão numa coletiva e mostrar o GPS com seu rendimento? Conhecendo o baixinho como conhecemos, sabemos muito onde ele iria mandar o técnico enfiar o aparelho dedo duro. Não que isso seja uma virtude. Porque embora sendo um dos maiores jogadores da história do futebol mundial, Romário nunca foi exemplo de profissionalismo para ninguém. Filipe está “grandão” e a mídia tem dado a ele esta confiança. Claro que devemos reconhecer os méritos de seu trabalho até aqui, mas pontuando que ele ainda não é o que já acredita ser como técnico. O Mundial de clubes provou isso, quando ele não foi capaz de mudar uma simples saída de jogo do time, e levou 4 gols do Bayern pelos mesmos erros.

Também tenho visto alguns ex-jogadores que tinham lá suas idiossincrasias quando estavam em atividade, defendendo o técnico e dizendo que o Pedro precisa se enquadrar na filosofia de trabalho. Concordo, mas lembro que quem tem telhado de vidro não joga pedra na casa dos outros. Se não foi exemplo quando era atleta, não venha pagar de defensor da ordem como comentarista. Até mesmo Filipe Luís quando era jogador do Flamengo, já deixou a desejar em alguns momentos. Sua presença na festinha de aniversário do também polêmico Gabigol, quando parte do grupo não estava satisfeito com o comportamento do atacante no dia a dia, não deveria permitir que ele estivesse cobrando do Pedro tanto empenho em respeito ao grupo. Sem falar nas “pipocadas” que ele deu em duas finais de Libertadores, sobretudo, contra o Palmeiras em 2021, quando pediu para sair do jogo alegando contusão. Mas como diria o filósofo Neymar Jr: “Aos parças, tudo. Aos inimigos, a lei.”

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos dessa novela, porque elas prometem muita discussão entre os flamenguistas. De um lado, um técnico que sempre sonhou em ser europeu e quer “colonizar” seus jogadores sob a mesma mentalidade, e do outro, um jogador com fama de bom moço, mas que já deu demonstrações de ser um preguiçoso passivo-agressivo no dia a dia. Só não podemos concordar com a exposição pública a qual Pedro foi submetido. Roupa suja se lava em casa, mas Filipe Luís decidiu lavar na praia, na frente de todo mundo. E ainda improvisou um varal à beira-mar para pendurar a peça, sem pregador, esperando que ela seque e lhe vista novamente. Ou ela cai no mar e vai embora levada pelas ondas, ou alguém que lhe caiba perfeitamente a subtrai e a leva para secar num local mais seguro e acolhedor. E a praia tá cheia, hein!?

DIA NACIONAL DO FUTEBOL: MAIS DO QUE UM ESPORTE, UM FENÔMENO SOCIAL

por Marcos Luz

Foto: Alex Ribeiro

O Brasil celebra em 19 de julho o Dia Nacional do Futebol, data criada para homenagear o esporte mais popular do país. O futebol, no entanto, transcende as quatro linhas. É uma paixão que pulsa nos estádios, nas ruas, nos campos de várzea, nos corações de milhões de brasileiros. Esporte que carrega papel social, cultural e econômico de proporções imensas. Neste dia de celebração, é fundamental refletir também sobre os desafios que rondam essa atividade esportiva no Brasil.

Os clubes de futebol não são apenas times que disputam campeonatos, mas sim instituições com forte enraizamento comunitário, muitas vezes nascidas em bairros populares ou ligadas a imigrantes, operários e movimentos sociais. São agremiações que ajudam na formação de crianças e jovens, oferecendo acesso ao esporte, à educação e a valores como disciplina, trabalho em equipe e respeito.

Os clubes funcionam como espaços de convivência, de identidade e pertencimento, ao criar um vínculo estreito com seus torcedores. Vestir a camisa de um time é participar de uma cultura, de uma história coletiva, de uma memória afetiva transmitida entre gerações.

O futebol é uma força cultural gigantesca no Brasil e influencia a moda, a música, a linguagem popular e até o humor nacional. Afinal, o que seria do Rio de Janeiro sem o gol de placa de Fio Maravilha. Ídolos do esporte tornam-se celebridades, modelos de comportamento e influenciam decisões de consumo, opinião pública e engajamentos sociais.

O adolescente que veste a camisa do time repete a gíria utilizada pelo craque do time e exibe nas redes sociais a estética das arquibancadas, das torcidas e dos uniformes. A publicidade sabe que é isso que vende e vai nesta direção. Tudo gira em torno do futebol e bilhões são movimentados.

O velho esporte bretão se reinventou ao logo do tempo e hoje impulsiona setores como o turismo, o comércio, a indústria do entretenimento e a mídia. Clubes bem-sucedidos geram emprego, atraem investimentos e movimentam economias locais. Cidades com clubes de massa se transformam em polos econômicos e culturais por conta da presença do futebol.

É preciso, no entanto, um alerta. A má gestão ainda é um gargalo que compromete o potencial do esporte como ativo econômico de longo prazo. Muitos clubes seguem endividados, com modelos de negócios ainda frágeis. Há claros avanços com a transformação de clubes em Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), mas a grande maioria das agremiações nada em mares revoltos sem horizonte limpo à vista.

Times que ostentam modernos estádios ainda convivem com má gestão, escândalos, baixa estrutura para categorias de base e dificuldade de manter talentos diante do assédio financeiro do exterior.

Paralelamente à questão financeira e na direção contrária da evidente paixão do brasileiro pelo futebol está a crise institucional instalada por aqui. A Seleção Brasileira, outrora símbolo de excelência mundial, vive um momento de instabilidade, sem títulos importantes há anos e sem uma identidade clara dentro de campo. O distanciamento entre seleção e torcedores aumentou, e a confiança da população na Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é cada vez menor.

A eleição recente para a presidência da entidade foi marcada por manobras políticas, disputas judiciais e suspeitas de interferência externa. A entidade, que já foi comandada por dirigentes envolvidos em esquemas internacionais de corrupção, como revelado pelo FBI na operação “FIFAGate”, continua sendo alvo de desconfiança da sociedade e do Ministério Público.

A proximidade com figuras políticas e o jogo de poder entre federações estaduais e clubes contribuem para um sistema que privilegia acordos de bastidores em detrimento de uma gestão técnica, transparente e voltada para o bem do futebol brasileiro.

Sob o comando destas instituições está uma atividade esportiva que vê sua credibilidade arranhada por recentes casos de manipulação de resultados envolvendo jogadores e criminosos.

É necessário que a CBF entre em campo em todas as posições para que o futebol não seja ferramenta de interesses escusos e continue a ser somente espaço de alegria, cultura e transformação.

Neste Dia Nacional do Futebol, é hora de reafirmar que o futebol brasileiro é um patrimônio imaterial da nossa cultura. Mas esse patrimônio está sob risco. A paixão do torcedor, o talento de nossos jogadores e a história gloriosa não bastam diante da atual conjuntura.

É preciso uma renovação de valores, de práticas e de governança. O futebol deve ser tratado com seriedade, ética e profissionalismo. O povo brasileiro merece uma CBF transparente, clubes bem administrados, um ambiente seguro e, sobretudo, um futebol que seja novamente motivo de orgulho nacional.

Porque, no fim, o futebol é mais do que um jogo: é uma expressão da alma brasileira. E cuidar dele é também cuidar de nós mesmos.

MANUAL DO BOTAFOGUENSE SUPERSTICIOSO

por Wesley Machado

Esses dias assisti a um vídeo de um torcedor corintiano dizendo que comprou a camisa branca do Botafogo por ser histórica, afinal foi a camisa com a qual o Fogão conquistou sua primeira Libertadores e venceu o campeão da Europa, PSG, na Copa do Mundo de Clubes. Logo a camisa branca que era dada como de má sorte para boa parte dos botafoguenses.

Por outro lado, o meião cinza era apontado pelos mais antigos como de boa sorte. Meião cinza que voltou a ser utilizado nesta quarta-feira no empate sem gols com o Vitória no estádio Nilton Santos pelo Brasileirão. Será então que a superstição do botafoguense vem mudando?

Duas coisas que eu costumo fazer para o Botafogo ganhar é não ver filme antes do jogo e não mexer no celular no intervalo. Coisas essas que, desafiando a superstição, fiz desta vez e deu no que deu.

Em dia de jogo do Botafogo, sem ser no estádio, também não visto a camisa do Glorioso.

E você, botafoguense, qual sua superstição?

QUANDO UM ÍDOLO VAI EMBORA

por Zé Roberto Padilha

Quando você perde um ídolo, e foi assim, em meio a uma reverência concedida ao Rei Pelé, em seu palco iluminado, o Maracanã, seja em uma dramática despedida pela TV, a Ayrton Senna, em Ímola, em um domingo pela manhã, a gente perde mais que um sentimento de idolatria.

A gente perde o que o esporte reúne de mais fascinante. Nossos ídolos, como Eder Jofre, João do Pulo, Paula e Hortência, foram os Deuses que nos permitiram, mesmo na poltrona, alcançar o Monte Olimpo.

Sem ter quem nos conceda arte, emoção, um elástico, contra o Vasco, uma pole-position em Interlagos, um tricampeonato em Roland Garros, uma vitória no basquete contra os quase imbatíveis americanos, a nossa vida esportiva seria um lugar comum.

O esporte, um porre.

Como ficar a a aguardar, durante toda uma temporada, um gol do Lima? Do Samuel Xavier?

Aquela raridade alcançada pelo Guga, que de tão inesperada foi aquela bomba Rivelino, de fora da área, que fez, com toda justiça, aquele momento ser único em sua carreira.

Foi o último a sair de campo, a dar entrevista, a tomar um banho e chegar em casa. Se chegou.

Fora isso, nossos jogadores tricolores representam um grupo de excelentes profissionais, competentes, disciplinados, mas que são incapazes, pelo previsível conjunto de suas obras, nos levantar da cadeira.

Ficar 90 minutos aguardando que o Ganso encontre um atalho entre um mar de pernas, e que o Keno receba a bola sozinho diante do goleiro. E que o Everaldo reviva, por um voleio sequer, a precisão das conclusões do Flávio. O Minuano.

John Arias era nosso arco, e quando a flecha se encolheu, tratou de ser arco e flecha também. Dono de um domínio absoluto de bola, equilíbrio raro como atleta, só caía quando o cartão amarelo era apresentado a quem “utilizava força desmedida” ao interceptar suas jogadas. Nunca em direção às laterais, todas em direção à meta.

Ele cruzava uma bola como ninguém. Descobriu a arte de sua trajetória que não permitia ao goleiro adversário sair. Ou que sua zaga se antecipasse. Toda a defesa contrária ficava no meio do caminho. E era aí que nossos adversários entravam pelo Cano.

Já que toda a nossa recente idolatria será congelada, e o desejo do nosso ídolo de sair e ser feliz seja respeitado, que pelo menos o Fluminense nos permita encher o Maracanã. E agradecer a ele.

Antes que parta em silêncio, como partiram Nino e André, sem receber a nossa gratidão. O agradecimento pelo que nos permitiram alcançar o paraíso das Américas.

Eles, que deixaram o Galeão nos braços da família, não foram capaz de perceber o quanto nos ajudaram a ser felizes. Que seja, com John Arias, diferente.

Porque ele merece por ter sido, ao lado do Fábio, depois do Fred, os últimos dos nossos ídolos.

A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA

por Letícia Woolf e Sofia Castro

No Brasil, é muito difícil estar alheio ao futebol. No trabalho e na faculdade, comentam o resultado injusto do Fla-Flu; no Uber ou no táxi, o motorista escuta o jogo do Vasco; no bar, a madrugada reprisa o último jogo da Série B. Nem a jornalista e escritora Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, foge dessa realidade. A melhor forma de evitar um silêncio constrangedor, dizem, é perguntar sobre o time. Todo mundo tem um time, até Clarice. A autora de “A Hora da Estrela”, “Água-Viva”, “Laços de Família”, entre outros livros, era torcedora do Botafogo de Futebol e Regatas.

Em março de 1968, ela expõe, pela única vez, sua relação com o esporte. O jornalista Armando Nogueira a desafia a escrever sobre futebol. Diz que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica dela sobre futebol. Clarice rebate: se o time dele for o Botafogo, melhor não fazer isso. Na crônica intitulada Armando Nogueira, futebol e eu, coitada, a escritora revela um aspecto da sua vida até então nunca discutido – a paixão pelo clube:

“Deixe eu lhe contar minhas relações com futebol, que justificam o ‘coitada’ do título. Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo”.

Botafoguenses sempre foram conhecidos pelo pessimismo. O time pode estar ganhando de 10 a 0 e faltar cinco minutos pro fim do jogo, mas o torcedor sofre como se fosse um suado empate em 1 a 1. Como a autora mesmo diz, ela retém sua tendência ao excesso. Na verdade, qualquer torcedor apaixonado tem, de certa forma, essa tendência.

O excesso se manifesta, por exemplo, nas brigas de torcidas, nos debates acalorados, nos dramas do jogo tratados como gota d’água. Em 2008, o torcedor Luiz Fernando Vilaça tentou se jogar da marquise de São Januário após a confirmação do rebaixamento do Vasco – como se a derrota ultrapassasse o gramado e fosse tamanha a ponto de destituir a vida de sentido.

A professora de Cultura Brasileira na PUC-Rio, Luísa Melo, doutora em Literatura, acredita que a intensidade inerente à relação entre o torcedor e o objeto da sua paixão alinhava-se à veia literária e às inquietações da escritora:
“Acho que Clarice, como botafoguense, pôde viver todas as coisas. Viveu a intensidade do sentimento dela”, acredita Luísa. “O teórico Hans Gumbrecht diz que o futebol ganha essa popularidade toda no mundo justamente porque permite um pouco a gente emular a vida. Viver a metáfora da própria vida. Porque na vida as coisas não são justas ou injustas, as coisas acontecem”, acrescenta.

Clarice foi, supostamente, a um único jogo em estádio, acompanhada do filho botafoguense, com quem assistia às partidas na televisão. Ela fazia muitas perguntas. Considerava-se uma ignorante apaixonada:

“Digo ‘ignorância apaixonada’ porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender de futebol”, escreve Clarice. Ela, inocentemente, comparava o jogo ao balé, com movimentos calculados, previsíveis. Neste ponto, o futebol, sabemos, é muito diferente da dança.

O futebol distingue-se também pelas conexões profundas com os torcedores. Muito da magia em torno do esporte está na torcida, nas arquibancadas. “Parte da experiência no futebol é assistir junto, vem dos elos entre os torcedores. Quando acontece um elo de família, isso se fortalece ainda mais”, comenta Luísa.

Em “A Paixão Segundo G.H.”, Clarice eterniza uma de suas frases mais famosas: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. O aforismo, de apelo existencial e filosófico, também pode ser atribuído ao jogo. Talvez seja impossível racionalizar experiências despertadas numa final de Copa do Mundo ou numa vitória sofrida do time do coração. Talvez seja só possível vivê-las, entrelaçadas à abertura do futebol para o improvável, o intangível. 

O Botafogo honra essa inclinação imaterial dos gramados, refletida na mística da Camisa 7 – vestida por Garrincha, Maurício, Túlio Maravilha, Luiz Henrique. Era de Jairzinho em 1968, ano do tal conto de Clarice. Mística atualizada na conquista da Libertadores 2024, com um jogador a menos na decisão desde os quarenta segundos do primeiro tempo, quando é expulso, e o terceiro gol marcado no sétimo minuto de acréscimo do segundo tempo. Clarice provavelmente consideraria essas peculiaridades da final evidências da aura mágica alvinegra.  

Convicta da predestinação, ela explora o místico em figuras como a cartomante, frequente em vários livros. A personagem Macabéa, por exemplo, busca ver o futuro com Madama Carlota, que prevê sua “hora da estrela”: nada mais do que a morte. Macabéa acaba atropelada, ao sair da consulta. Clarice revisita a ideia, central na tragédia grega, de fuga impossível do destino, já traçado.

O Botafogo conheceu, de certa forma, sua “hora da estrela”, ao deixar escapar o Campeonato Brasileiro de 2023, a coroação de uma campanha histórica no torneio. Mas, como o destino é inescapável, ganhou o título de 2024, em cima do grande rival do ano anterior, o Palmeiras.

Clarice Lispector entendia que a vida transcendia o cotidiano e se revelava nos milagres do dia a dia. O Botafogo de Clarice expressa tal perspectiva. Perde do Madureira no Carioca, vence o poderoso PSG (1 a 0), campeão da Champions, vice-campeão mundial. o PSG. Cada botafoguense deve ter sua própria explicação para a façanha na primeira Copa do Mundo dos Clubes. Um pode atribuí-la à promessa de parar de fumar, feita 20 minutos antes da partida. Outro acredita que tenha sido a graça atendida pela reza forte a São Jorge.

A superstição que acompanha a história do clube, e se manifesta nas arquibancadas físicas e digitais, aproximam as vivências do futebol da essência humana que Clarice buscava compreender. No livro “Água viva”, ela navega por sentimentos como religiosidade, solidão e medo da morte – replicados nas relações mediadas pelo esporte. A professora de Literatura da UFF compara: “O futebol é um lindo poema em prosa, no qual se comemora a vida de tudo o que, intensamente, é”.

Para milhões de brasileiros, tamanha intensidade significa, várias vezes, colocar o amor pelo time acima de outros amores. Diante da dimensão sociocultural e emocional do futebol no país, Clarice admitia certa impossibilidade de assimilar a totalidade do esporte. No penúltimo parágrafo da referida crônica, ela abre o coração:

“Então, na minha avidez por participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que representa vida […] É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha de futuro”.

Nesta avidez de participar de tudo, Clarice Lispector se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira e mundial. Aventurou-se por diversos campos. Foi jornalista, romancista e, como lembrado aqui, cronista esportiva. Para acentuar o misticismo botafoguense, Clarice viveu a conquista da Taça Brasil, primeiro título nacional do clube, no mesmo ano de publicação da crônica Armando Nogueira, futebol e eu, coitada. São tantas coincidências que fazem pensar: seria tudo obra do destino?