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O CRAQUE DE INCONTÁVEIS GOLS DE LETRA

por Cláudio Lovato Filho

O que dizer de Luis Fernando Verissimo, de sua genialidade, de sua generosidade, que já não tenha sido dito? Meu sentimento e o de muita, muita gente é de profunda tristeza por uma perda que deixa o Brasil culturalmente mais órfão – sentimento só superado por uma imensa gratidão pelo prazer e pela inspiração que a leitura do que ele escreveu nos proporcionou e pelo legado que continuará a encantar e fazer pensar.

De todo modo – como sempre foi e como sempre será – o melhor mesmo é deixar que ele fale. Escolhi o texto que segue – Centroavantes – para esta singela homenagem ao mestre que nos deixou no sábado, 30 de agosto, aos 88 anos, e que era um completo apaixonado pelo futebol e pelo seu Internacional.

CENTROAVANTES

Eles são difíceis, os centroavantes. Reúnem-se em lugares certos, em várias partes do mundo, mas não se olham nos olhos. Trocam lamúrias e reminiscências, como em qualquer confraria de especialistas, mas é como se estivessem sozinhos. De vez em quando levantam a cabeça e olham e volta, à procura de um possível empresário ou de um fã antigo. Mas não se encaram. Sabem que a qualquer momento terão que trair o companheiro ao lado. Se lhes perguntarem: “Conhece um bom centroavante?”, terão que responder:

– Só conheço eu mesmo.

E se insistirem, “Me disseram que o Fulano ainda joga…” responderão:

– Não joga, bebe muito e arrasta uma perna. De centroavante só conheço eu mesmo.

Eles são sombrios e tristes, os centroavantes.

Você os encontrará em velhas tascas do Bairro Gótico em Barcelona depois de se acostumar com a escuridão. Em algumas esquinas de Milão, encolhidos do frio dentro das suas japonas. Em Chacarita. Na Cinelândia. Em Marselha, no restaurante de peixe do velho Renard, um centroavante que desistiu antes dos 36 porque perdeu um joelho.

– E o seu joelho, Renard?

O velho corso toma um gole de “blanc”.

– Ainda está rolando por um campo da Catalunha.

– Como é que foi, Renard?

– Um beque sem mãe.

– E onde está o beque, Renard?

– Junto da sua mãe.

Você os conhece de longe.

Centroavantes, toureadores velhos e mercenários, você os conhece de longe. São sobreviventes de profissão. Estiveram com a morte e voltaram, e têm as cicatrizes para provar. Restam poucos centroavantes no mundo. O jeito desconfiado, os gestos tensos, o cigarro nos dedos nervosos, os olhos cansados, você os conhece.

Os centroavantes só falam nos companheiros mortos ou nos que pararam, os outros são concorrentes. Centroavante bom e vivo só conheço eu mesmo. Eles fumam muito, os centroavantes. Mas cuidam para não tossir na frente do empresário.

– Com quantos anos você está?

– Vinte e sete.

– Você quer dizer trinta e sete.

– A bola não sabe a diferença.

Nos treinos tratam de brigar logo com o treinador, chutar a bola longe e sair de campo, senão não aguentariam. Eles sabem que o treinador os irá procurar depois no quarto do hotel e pedir perdão. São raros, os centroavantes.

– Você me insultou.

– Só disse que você estava muito parado.

– Meu pé conhece mais futebol do que você inteiro.

– Está certo. Volte para o treino.

– Eu não treino. Eu jogo.

– Está certo.

São difíceis, os centroavantes.

Quando se reúnem, falam dos que morreram ou dos que pararam. Sem se olharem nos olhos.

Falam de Carrara, o Italiano Louco, que uma vez comeu um bandeirinha vivo e foi retirado de campo por um batalhão de carabinieri, ainda mastigando o pano da bandeira e ofendendo a arquibancada. Nenhum bandeirinha jamais viu Carrara em impedimento, depois disso.

Falam de Bahal, o Turco de olhos vermelhos, o peito de um touro e um dedão de 10 centímetros em cada pé. Bahal, morto com uma adaga na nuca dentro da pequena área, na cobrança de um córner. Antes de morrer – mas isto já é lenda – teria feito o gol com uma lufada de sangue.

Falam de Lúcio, o Poeta, um brasileiro esguio com pomada no cabelo, outra história trágica. Lúcio tinha um chute mortal. Um dia errou a goleira, a bola subiu, venceu a cerca, venceu a arquibancada de São Januário, caiu na rua, acertou a cabeça de uma moça dentro de um Lincoln conversível – a cantora Rosa de Rose, o Rouxinol Louro – e a matou. Rosa era noiva de Lúcio, o caso emocionou o Brasil. Esperava o fim da partida para levá-lo ao Cassino da Urca. Lúcio enlouqueceu. Nunca mais jogou futebol. Hoje é funcionário do Maracanã e de vez em quando se distrai. Em vez do grande círculo, desenha com cal no gramado o nome de Rosa de Rose.

Falam de Tamul, a Gazela Africana, rápido como o raio, que jogava descalço e mordia a trave sempre que perdia um gol. Tamul tinha os dentes esculpidos. Um era o Taj Mahal. O outro, a Torre Eiffel. Um torto, bem na frente, era a Torre de Pisa. Outro, o Obelisco da Place Vendôme. O Arco de Constantino.

Falam de McMoody, o anão escocês, que batia pênalti de cabeça e tinha placas de aço em vez de canelas.

Falam do argentino Lombroso, que chutou a cabeça do goleiro para dentro do gol. Não teria sido nada se ele não tivesse saído comemorando.

Falam de goleiros com desdém e de beques centrais só antes de cuspir. Os centroavantes tendem a engordar e a emagrecer como os outros respiram. E têm pesadelos. Sonham que a grande área é um pântano, que não conseguem pular, que a bola é de ferro e que o tempo passa.

São raros, os centroavantes.

OS JOGADORES ESQUECIDOS

por Paulo-Roberto Andel

Meu pai adorava um álbum de figurinhas de futebol.

É uma tristeza para mim termos perdido todos devido às mudanças por aí. Toda vez que vejo um álbum antigo penso nele e sinto uma emoção enorme.

Quanta história não está ali publicada naqueles rostos das figurinhas?

As pessoas naturalmente tendem a valorizar os vencedores, os campeões, os mais conhecidos, os jogadores consagrados. Mas acontece que a história não é feita só por eles.

Num campeonato qualquer quanta gente participa?

Então você vai lá e encontra um velho zagueiro do Botafogo de Ribeirão Preto do anos 1960, ou um atacante do Comercial dos anos 1950. Pode vir para o Rio e encontrar jogadores especiais da Portuguesa, do Madureira e do Olaria. Quase ninguém se lembra deles, mas estão nos registros marcados para sempre.

Claro que é bom vencer e ser campeão, mas nenhum time se limita a isso: as histórias dos clubes são escritas também pelas competições que não foram vencidas, aliás.

Quantos times que não foram campeões também ajudaram a escrever o livro dos dias do futebol?

O esporte bretão deixa marcas que não se resumem a conquistas; às vezes um jogo, uma tarde, uma circunstância é suficiente para fazer com que decoremos nomes eternos.

Agora, o duro mesmo é para aqueles que também se esforçaram tanto, mas que não conseguiram fincar raízes na memória popular. É o tipo do pessoal que a gente só lembra quando encontra um bom e velho algo de figurinhas, ou ainda as fichas técnicas das partidas, às vezes publicadas em almanaque ou pelos jornais.

Então, principalmente para os mais velhos, a reação é a gente olhar e tentar lembrar de muita coisa, ou ainda descobrir muita gente boa que saiu de cena. Futebol é descoberta.

@p.r.andel

O ADEUS DO GUERREIRO DA CAMISA 5

por Cláudio Lovato Filho

Camisa 5 clássico, centromédio raiz, ele formou com Tadeu Ricci e Iúra um meio-campo histórico do Grêmio.

Ele era um dos jogadores daquele time cuja escalação os torcedores recitam como um poema: Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder.

O time que, treinado por Telê Santana, conquistou o Campeonato Gaúcho de 1977. O título que colocou fim à indigesta série de estaduais vencidos pelo nosso arquirrival. O título que abriu caminho para a conquista nacional de 1981, para a Libertadores e o Mundial de 1983 e para tudo o que veio depois.

Meio-campista discreto, eficiente e taticamente disciplinado, dedicava-se a proteger a zaga e a iniciar as jogadas com o bom passe que tinha – e cumpria essas atribuições como um guerreiro incansável .  

Jogador de poucos gols, ele fez o seu primeiro pelo Grêmio (e talvez o primeiro como profissional, confesso que não tenho certeza) em 1978, numa cobrança de pênalti, a pedido da torcida, no Olímpico. O estádio inteiro gritando o nome ele, os companheiros de time incentivando. Eu estava lá.

Marcador duro mas leal, foi elogiado por Maradona depois de um amistoso entre Grêmio e Argentinos Juniors, no Olímpico, em 1980. O jovem Dieguito foi anulado.

Vitor Hugo Barros faleceu na terça-feira, 19 de agosto, aos 73 anos, em João Pessoa, onde residia. Jamais será esquecido. Terá para sempre seu nome lembrado em verso e prosa pela nação azul, preta e branca.

THE LAST DANCE

por Marcos Vinicius Cabral

A primeira vez que vi Junior em campo, foi com a camisa da seleção brasileira. Não recordo-me em que jogo foi e em qual estádio, pois ainda era criança. Mas suponho que tenha sido um amistoso preparativo para a Copa do Mundo na Espanha, em 1982.

No entanto, até hoje lembro do lance. Foi um cruzamento na área do Brasil e naquela bola perigosa, no meio de tantos jogadores adversários, Junior sobe e com a categoria que Deus lhe deu, mata a bola no peito e recua para as mãos de Waldir Peres. Vibrei como se fosse um gol dele.

Anos depois, já como fã do jogador, passei a acompanhar a carreira do senhor Leovegildo Lins Gama Junior, tanto no Flamengo e na seleção brasileira.

Recordista de partidas com o Manto Rubro-Negro, Junior — sem acento, é bom que se diga — teve uma carreira privilegiada e sem contusões graves. O fato em si, já o torna vitorioso pela própria natureza, já que contou com as areias das praias cariocas na prevenção de lesões podendo manter o equilíbrio e a coordenação, o que fortaleceu os músculos e articulações, tornando-os mais resistentes.

E convenhamos, ninguém melhor definiu a palavra resistência como Junior. Tanto que foi campeão carioca e brasileiro em um time de garotos e ele, merecidamente, recebeu os apelidos de Maestro e Vovô. Isso em 1992, no pentacampeão, competição que comeu a bola.

Mas Junior tornou-se um querido amigo. Um ser humano incrível e apreciador do meu trabalho de artista plástico. Já ilustrei um livro do Maurício Neves de Jesus que foi lançado na Gávea, na pandemia. Agora, o mesmo Maurício, me pediu autorização para publicar na biografia do Maestro o The Last Dance, nome sugerido pelo autor da obra literária.

Muito honrado em poder contribuir com a minha arte e aguardo ansiosamente a oportunidade de entregar ao Junior.

O desejo do meu coração é dar o quadro, um forte abraço e dizer para um dos meus ídolos no futebol: “Junior, obrigado por forjar o meu caráter rubro-negro!”.

ZAGALLO X ROMÁRIO

por Elso Venâncio

Zagallo e Parreira estão no quarto do Romário, em dezembro de 1992, antes de um amistoso da Seleção Brasileira com a Alemanha, em Porto Alegre. Goleador do PSV, o Baixinho jogou por cinco temporadas no futebol holandês antes de se transferir para o Barcelona, da Espanha. Preterido por Bebeto, do La Coruña, e Careca, do Napoli, deu declarações de que não faria sentido sair da Europa para ser reserva na Seleção, que na época se preparava para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. A insatisfação foi confirmada por Romário aos treinadores, lembrando que nunca havia esquentado banco na carreira. Os novos comandantes da Seleção nunca esqueceriam a sinceridade do marrento atacante.

Alguns fatos ajudaram a mudar a história do Baixinho com a camisa brasileira. Em julho de 1993, o Brasil estreou nas Eliminatórias da Copa perdendo por 2 a 0 para a Bolívia, em La Paz. Um resultado surpreendente, pois aquela foi a primeira derrota do país na história da competição. Em seguida, veio o empate por 0 a 0 com o Equador. Acuado com as críticas e sem contar com Romário, que já era ídolo no Barcelona, Parreira resolveu entregar o cargo de treinador. Só permaneceu após ser convencido pelo coordenador, Zagallo, e pelos jogadores mais experientes do grupo, como Dunga e Ricardo Rocha.

Mais longevo técnico do Barcelona, Johan Cruijff considerava Romário o maior talento que comandou. “Gênio na grande área”, dizia o treinador, que comandou o clube catalão por oito temporadas. No período pré-Copa, havia um clamor nacional para o Baixinho ser convocado ao último jogo das Eliminatórias, contra o Uruguai, em que só a vitória classificaria o Brasil. Após uma contusão de Müller, o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, interferiu e foi o responsável pela convocação de Romário.

No domingo, dia 19 de setembro de 1993, Romário fez o melhor jogo de toda a sua carreira e uma das melhores apresentações individuais de um atleta no Maracanã. Foi o autor dos dois gols na vitória brasileira por 2 a 0 — o primeiro, de cabeça, e o segundo, driblando o goleiro Siboldi antes de concluir. A atuação lhe garantiu o status de astro da Seleção Brasileira.

Nos Estados Unidos, Romário e Bebeto fizeram oito dos 11 gols marcados pelo Brasil na Copa, comprovando que eram os grandes atacantes do futebol mundial. O Baixinho balançou a rede cinco vezes naquele Mundial, conduzindo a Seleção ao tetracampeonato.

Após a conquista, Zagallo assumiu a função de técnico e convocou Romário, o melhor jogador do mundo, para um amistoso com a Eslováquia, em Fortaleza. Repatriado pelo Flamengo, o craque se esquivou. “Só voltarei à Seleção na Olimpíada de 1996”, disse. Foi motivo suficiente para o retorno das desavenças com Zagallo, que ficou insatisfeito. Nesse período, Romário deixou de jogar uma Copa América, amistosos e um torneio dos Estados Unidos. Quando decidiu mudar de ideia e pediu para ser convocado, foi ignorado por Zagallo, que o manteve de fora por um ano, dois, dois e meio…

Num belo dia, o “Jornal do Brasil” estampou a seguinte manchete: “Romário está de volta à Seleção”, matéria do saudoso Oldemário Touguinhó. Os concorrentes, por sua vez, garantiam o contrário: “Romário continua fora”. Quem acabou com o mistério foi Zagallo, anunciando Romário como o primeiro nome para o amistoso com a Polônia, em Goiânia. Ao chegar à redação do “JB”, Oldemário foi aplaudido de pé. “O que é isso? Por que isso?”, perguntou, antes de chorar copiosamente. Uma emoção marcante para o jornalista, já reconhecido com dois prêmios Esso.

Zagallo não levou Romário aos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, e apoiou seu corte por contusão na Copa do Mundo da França, em 1998. O jogador, que apostava na recuperação, colocou no banheiro da sua boate Café do Gol, na Barra, caricaturas de Zagallo sentado no vaso sanitário, e de Zico, coordenador do Brasil na Copa, com um rolo de papel higiênico nas mãos.

Vanderlei Luxemburgo, o técnico na Olimpíada de Sidney, em 2000, foi outro a deixar Romário de fora da convocação, assim como Felipão também não o levou à Copa de 2002, no Japão e na Coreia do Sul. O que ficou para a história foi mesmo o protagonismo no Mundial de 1994, em que o Baixinho foi verdadeiramente o cara.