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Craque das Várzeas

MANIPULAÇÃO DE UM SONHO

por Marcos Vinicius Cabral


Após colocar as luvas, uma breve folheada em algumas fotos antigas o faz voltar ao passado.

Nelas, histórias e mais histórias que o fazem lembrar das vitórias, dos amigos, da bola que jogava e porque não dizer, das injustiças que o futebol lhe proporcionou.

Lembrar disso se tornou uma rotina em sua vida, já que por pouco, muito pouco mesmo, Ricardo Concísio Sampaio, não seguiu adiante com o desejo de se tornar jogador profissional.

Com o capacete já colocado, o niteroiense acelera sua Honda Fan 160, desce a rua Plinio Gaia no Boa Vista em São Gonçalo e vai ao bairro Zé Garoto, onde trabalha há dez anos numa farmácia de manipulação como motofretista.


– Desde muito novo que sou apaixonado por futebol -, se declara o camisa 8 do Grêmio Recreativo e Esportivo Barabá, desde 2017.

E sempre foi mesmo.

Nascido em 1981 no Hospital São Paulo em Icaraí, Niterói, o habilidoso lateral-esquerdo chamava atenção no Campeonato Comunitário do Vila Lage, com apenas oito anos de idade.

Jogando pela equipe do Azulão Futebol Clube, exibiu um futebol vistoso no Campo do Cortume, do Gerdau, Do Zero, no extinto Jacarezão e no campo que leva o nome do time que jogou por quatro anos e onde acumulou respeito, apesar dos títulos não conquistados.

Com uma canhota produtiva, recebeu do professor José Augusto o convite para ingressar no time de futsal do Vila Lage.

– O salão me ajudou a aliar técnica com rapidez no raciocínio -, diz.

Mas era necessário alçar voos maiores e deixar de desfilar o talento apenas em solo gonçalense.


– Com onze anos treinei no Fluminense Futebol Clube e os treinos eram no Campo da Marinha na Avenida Brasil. Fui reprovado pelo técnico JJ – lamenta.

Não se deu por vencido.

– Voltei no mesmo ano e fui aprovado – recorda aos risos.

Porém, vestir a camisa 6 do tricolor na categoria infantil e treinar todos os dias em Xerém, se tornou um sonho impossível.

Desistiu.

Mas a bola não desistiria dele.

Dois anos depois, em 1994, incentivado pelos colegas Sérgio Lopes e Rômulo, que estudavam na sexta série na Escola Municipal Altivo César, chegou ao Canto do Rio Foot-Ball Club.

Lá, pelas mãos do treinador Jorge Tibau disputou o Campeonato Estadual Infantil como zagueiro, onde enfrentou o filho mais velho de Zico, Thiago Coimbra, que defendia o Barra da Tijuca Futebol Clube.

No tempo em que comandou a zaga do Cantusca, se dividiu como pôde entre os estudos e a bola.

Não deu.

Acabou indo parar no América/RJ em 1997 e não conseguindo conciliar mais uma vez os treinos com as salas de aula, sepultou de vez a possibilidade de ser jogador de futebol, aos dezesseis anos.


Em compensação, fez história em São Gonçalo com o bicampeonato de 2001 e 2002, defendendo as cores do Ferrazão Futebol Clube.

– Ricardo era um jogador simples, de toques fáceis, dribles curtos e com uma virada de jogo como se fosse jogada de vídeo game -, elogia o ex-lateral do Ferrazão, Fabiano dos Santos Souza, de 42 anos.

Ainda teve fôlego para jogar nas equipes niteroienses do Barril Futebol Clube e do Rua 5 no ano seguinte e em seguida, em 2005, vestiria a camisa do Real Madrid do Boaçu.

– Tive o prazer de jogar com Ricardo. Jogador com uma habilidade incrível e uma personalidade muito forte dentro de campo – diz Flávio Henrique, meio campista do Rua 5, da Ilha da Conceição em Niterói.

Assim foi Ricardo, que teve sua história abreviada num esporte que nem sempre basta ser craque.


Atualmente, desfila elegantemente nas manhãs de domingo no Campo da Brahma, no Porto Velho em São Gonçalo.

E com quase 38 anos e envergando a 8 às costas, continua sendo o canhoto que produz um futebol aprazível aos olhos de quem Deus concedeu o privilégio de enxergar.

UM SENHOR ZAGUEIRO MOVIDO A MINGAU

por Marcos Vinicius Cabral


Os olhos rabiscavam cada metro quadrado do Campo do Cais, situado na rua Tomás Rodrigues, número 581, no bairro Antonina em São Gonçalo.

Construído por funcionários do Cais do Porto no fim da década de 1940 e rebatizado de Arena Dr. Manoel de Lima ano passado – vereador este falecido em 2017 -, jogar naquele chão de terra batida era a consagração de todo peladeiro.

Em pé e à beira do tradicional campo, o pequeno Jorge presenciava impávido o que seu tio Décio, ponta-direita da equipe do Cais do Porto, aprontava dentro das quatro linhas.


– Meu tio foi um dos maiores jogadores de São Gonçalo na sua época -, gaba-se Jorge Fernando Faria, de 58 anos.

De tanto ver o estrago que seu tio fazia nas zagas adversárias, começou a se encantar pela posição, não a de atacante por incrível que pareça, mas a de zagueiro.

Assim como os tantos defensores que sofriam nas mãos, ou melhor, nos pés de seu tio, decidiu que não se tornaria um zagueiro qualquer, mas seria o melhor do bairro.

Em 1971, aos dez anos de idade, deixou São Miguel com a irmã Rejane e com os pais Basílio e Anízia, para irem morar no Boa Vista.

Aquela mudança repentina teria grande significado na sua vida, já que os domingos no Campo do Cais haviam sido substituídos pelas peladas durante a semana no Campinho da Mangueira, na rua Paulo Setúbal, onde reside até hoje.

Certa vez, numa dessas (como outras tantas) peladas, enquanto o seu time puxava um contra-ataque, dona Nair, mãe de seu colega Luís Otávio – lateral-direito muito ofensivo e adversário na ocasião -, chega no portão de casa e grita:

– Giiiiinho, vem comer seu mingau!

O jogo é interrompido e um silêncio fúnebre invade aquele lugar.

Ninguém responde.


– Ei dona Nair, eu quero! – gritou Jorge, estufando o peito na altivez de seus 1,87 de altura, desamarrando as chuteiras jogando-as para um lado, tirando os meiões das pernas compridas e finas e jogando-os para o outro e já sentando à mesa.

Nascia ali, naquele ano de 1973, o apelido que o acompanharia para o resto de sua vida: Jorge Mingau.

E foi com essa alcunha que fez história nos campos de São Gonçalo em seus 128 anos de existência, não sem antes, com dezesseis anos, treinar no Botafogo de Futebol e Regatas, em 1977.

– A gente treinava três vezes por semana na Base de Fuzileiros Navais, na Ilha do Governador. Era bem puxado, já que saíamos às 4h da manhã de casa, voltávamos às 14h para almoçar e entrar às 15h no colégio para sair às 19h – lembra.

E completa:

– Eu desanimei quando ele foi reprovado – conta visivelmente emocionado ao lembrar do falecido amigo Lino.

Mas se não chegou a se profissionalizar no clube da Estrela Solitária vestindo a camisa 3 de seu ídolo rubro-negro Jayme, fez história nos campos da cidade.

No Biquinha Futebol Clube, foi protagonista nas campanhas da equipe no extinto Campo do Arlindo, onde hoje funciona o São Gonçalo Shopping, no Boa Vista.


– Jogar com Mingau é o sonho de todo camisa 1. Se eu fui o goleiro que fui é porque ele foi o zagueiro que foi. Simplesmente incomparável – frisa Renivaldo Sant’ana Cândido, de 60 anos, considerado o melhor goleiro do Boa Vista de todos os tempos.

Mas a elegância e o potente chute lhe credenciariam a conquistar de forma invicta o campeonato do bairro Rosane, um dos mais disputados da localidade pelo Mangueira Futebol Clube.

– Jorge Mingau foi campeão por onde passou. Sempre foi respeitado por todos no futebol, apesar de ser bem mais novo que a maioria dos boleiros. Era forte, com boa estatura e nunca vi um jogador bater tão bem na bola como ele. Me sentia muito bem jogando ao seu lado – diz seu ex-companheiro de zaga Ubirajara Alves de Oliveira, de 62 anos.

Mas o auge foi no Liverpool Futebol Clube, onde conquistou títulos, ficou vários jogos invictos, fez amigos, escreveu seu nome definitivo na história do bairro e fez seu Basílio, seu pai, se tornar fã número um e acompanhar o time nas excursões que fazia.

Todos queriam vencer o Liverpool mas poucos conseguiam tal façanha.

Até hoje, depois de tantas gerações, não houve um beque-central como Jorge.

Portanto, lá do céu, dona Anízia – que detestava o apelido do filho – fazendo tricô em seu sofázinho e seu Basílio – que se divertia com isso – lendo seu jornalzinho em sua cadeira de balanço, hão de concordar: foi um grande zagueiro