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Claudio Lovato

OBITUÁRIO

por Cláudio Lovato Filho 


Ergueu-se da cama num pulo, como se pregos e facas e agulhas e cacos de vidro tivessem emergido subitamente do colchão de encontro ao seu corpo. Antes mesmo de conferir o horário no celular soube que estava atrasado, e muito. Voou para o banheiro, jogou água no rosto, escovou os dentes, voltou ao quarto, vestiu as mesmas roupas da noite anterior, torceu para que a carteira e as chaves do carro estivessem no lugar de sempre – na mesinha do abajur, na entrada do apartamento – e, quase feliz por ter encontrado o que queria, saiu do apartamento. 

Só quando chegou à garagem se deu conta de que não havia tomado nada para combater a ressaca, e a cabeça começava a latejar ferozmente. Ele pensou (pela quarta ou quinta vez nos últimos dez ou doze dias) que precisava mudar seu estilo de vida. Um pensamento obviamente inócuo. Então acionou o controle-remoto da garagem e tomou o rumo do jornal. 

Entrou na redação sob o olhar irônico dos colegas, mas sabia que o pior viria ao ingressar no aquário da editoria de Esportes, onde trabalhava. Ali teria de enfrentar a carranca condenatória de seu editor, que, para começo de conversa e dizendo bem a verdade, não queria que ele estivesse ali; apenas o aturava em razão de um pedido feito por um velho amigo.

– João Carlos, o obituário do Valério Dias é com você! – disse o editor.

Ele ficou olhando para o editor. Teve dificuldade para vencer a pasmaceira. 

– Manda brasa! – emendou o editor, apontando para o computador.

Ele se deixou desabar na cadeira. Teve de se esforçar para se livrar da prostração trazida pelo choque e ligar o computador. 

Valério Dias estava morto. 

O técnico que era o herói das torcidas de quatro clubes gigantes do país, com passagem muito digna pela seleção e o feito de ter criado uma vencedora e celebrada escola de treinadores. E ele de ressaca, tendo de escrever o obituário de uma lenda. Mas a coisa era muito mais complexa que isso. 

Pensou que seu editor ou era um baita filho-da-puta ou um dos melhores sujeitos que já encontrara em sua vida.

Aquele bate-boca com o técnico lhe custara o emprego no jornal em que trabalhava havia mais de 20 anos. Mais que isso, lhe rendera o tipo de condenação que fica estampada na cara de cada colega, mesmo daqueles que ele considerava os mais próximos, quem sabe até mesmo amigos. Isso sem contar as portas fechadas, sabia-se lá por quanto tempo, talvez para sempre, no seu clube do coração. 

Ele chamara Valério Dias de “ultrapassado” e “arrogante” no meio de uma entrevista coletiva. Valério Dias, em resposta, o chamara de “ignorante” e “venal”.

Então ocorre que, menos de um ano depois daquele evento sombrio que transformou João Carlos Nunes Filho numa espécie de pária na comunidade jornalística local (e não apenas na comunidade local), Valério Dias morre aos 67 anos, vítima de um infarto no começo de uma madrugada em que ele, o próprio estereótipo de jornalista veterano cuja carreira iniciava imparável descida em direção ao ocaso, estava enchendo a cara em um bar perto da rodoviária, sozinho e com o celular descarregado.

“Puta que pariu”, ele pensou, e decidiu que escreveria aquele obituário da melhor forma que pudesse, produziria o melhor texto que conseguisse. Que fosse seu último texto decente nesta porra de vida sacana.

Sentiu vontade de fumar. Pensou em descer para pitar, mas não levou a ideia adiante. Perguntou-se se devia ir até a copa, mas decidiu que não faria aquilo também. Era tudo procrastinação. Ele podia ter muitos defeitos, e com certeza os tinha, mas um deles não era a covardia. 

Pôs-se a escrever.

A tentar escrever.

“Se liga, porra. Acerta logo o tom desse negócio”. 

Então digitou:

Morreu na madrugada desta segunda-feira…

Deletou. Este não poderia ser um texto burocrático.

Ficou olhando para a tela em branco. Porra, um cigarro ajudaria. Só um cigarrinho.

“Um infarto na madrugada desta segunda-feira tirou a vida do técnico Valério Dias, 67 anos…”    

Deletou. Começar o texto com a causa da morte? Ele se perguntou, com irritação, se não deveria pedir uns conselhos ao estagiário.

Deu uma rápida olhada para o fundo do aquário e viu que o editor o estava observando, sem sequer se dar ao trabalho de disfarçar. Pensou de novo no café. E no cigarro.

Digitou:

“O futebol perdeu na madrugada desta segunda-feira o técnico…”  

Continuava protocolar, ele pensou. Continuava impessoal. Uma bela bosta. 

Recostou-se na cadeira. Respirou profundamente duas, três vezes. Passou a mão nos cabelos ainda desgrenhados, um recuerdo da noite passada, tristemente embalada à cerveja e tequila. Ah, se arrependimento matasse (ou se pelo menos aliviasse a ressaca)…

Um cigarro. Um café. Talvez uma fuga a toda velocidade para casa ou para lugar nenhum. Um copo até a boca de uísque sem gelo. 

Mas não era um covarde. 

Abriu mais um botão da camisa, passou a mão no pescoço, tocou o terço que usava há muitos anos, presente da madrinha.

E então digitou:

“Uma vez, em uma entrevista coletiva, eu o chamei de ultrapassado e arrogante. Ele respondeu dizendo que eu era ignorante e venal. Nós nos ofendemos. Eu perdi meu emprego. Mas isso, de todos os danos, foi o menor”.

Ele olhou para as palavras que acabara de alinhar, pesando-as uma a uma. Já não sentia mais vontade de fumar nem de beber nem de fugir. 

“Agora, sim, temos um bom começo”, ele pensou.

E deu prosseguimento – a muito custo, com o necessário e inevitável sofrimento, enfrentando seu ego, numa empreitada irreversivelmente transformadora – à construção daquele que seria, de todos os textos que já escrevera, o mais honesto e, exatamente por isso, o melhor.

O EXAME

por Claudio Lovato


– Toma o seu protetor auricular, pra enfrentar essa música bonita que você vai ouvir daqui a pouco.

O enfermeiro era um cara de meia-idade, muito falante, e tentava criar um clima de bom humor.

– Valeu! – disse o craque, que já havia usado em outras ocasiões aquelas duas pequenas “rolhas” (era o que sempre lhe vinha à cabeça) cor de laranja ligadas por um cordão da mesma cor. 

O enfermeiro disse que ele já podia se deitar. O jogador já sabia o que tinha de fazer. Não era a primeira vez que passava por um exame desse tipo, mas agora era uma situação diferente, muito diferente. 

Enquanto ele se acomodava na máquina, o técnico responsável pela condução do exame, que era mais jovem e bem maior que o enfermeiro, entrou na sala.

– Qualquer coisa é só apertar aqui, que paramos o examena mesma hora! – ele disse, enquanto acomodava na palma da mão esquerda do paciente o que parecia ser uma bola de borracha.

– O mais importante é não se mexer! – ele acrescentou antes de voltar para a salinha anexa, onde ficava o computador que era sua ferramenta de trabalho.  

Então começou.

Primeiro uma sirene, depois um bate-estaca, em seguida leves movimentos da maca para frente e para trás, e por fim o silêncio, até recomeçar a barulheira, e assim por diante. 

A ressonância magnética diria o tamanho do estrago que havia sido feito no seu joelho. 

Ele rezou. Dentro daquele túnel ruidoso, ele rezou pais-nossos e aves-marias e, no meio das orações, veio-lhe à mente, venenosa que só ela, a pergunta “por que isso foi acontecer comigo, por que comigo?”. Lidava com essa interrogação bandida ao mesmo tempo em que via o rosto da mãe e do pai e dos outros que ele amparava; sim, pensou neles, mas era o rosto da mulher e da filha pequena, a filhota linda, que fazia seu coração bater aospulos, e de novo “por que comigo, por que essa porra foi acontecer comigo?”, e ele ficou com receio de acabar fazendo algum movimento brusco por causa do tumulto na sua cabeça e dos saltos que seu coração dava.

Num certo momento, as orações e a preocupação e o amor infinito e o inconformismo se combinaram de uma forma tão intensa que acabaram resultando numa explosão em forma de lágrima solitária, que escorreu do canto do olho direito, e só no que ele conseguiu pensar nessa hora é que sua vida não podia se encerrar ali, fosse qual fosse o resultado do exame, e foi então que ele sentiu o rastro quente de outra lágrima, essa no olho esquerdo, e sua cabeça de repente invadida, completamente invadida, todos os cantos e recantos dela, por uma nova pergunta: “O que eu vou fazer se não puder mais jogar?”, e diante dessa indagação gigantesca e brutal, completamente solitário perante essa questão assassina, a única resposta que ele conseguiu arranjar foi um suspiro fundo e alto, um gemido, talvez tenha até falado, e de repente tudo foi interrompido pela voz do técnico no alto-falante: 

– Estamos finalizando seu exame. Só mais um instante.

E então acabou. 

Ele agradeceu ao enfermeiro e ao técnico, que lhe responderam com votos de boa sorte e entusiasmadas confissões de que eram seus fãs. 


Havia uma tristeza profunda que vinha lá do fundo do peito e que tirava a graça de qualquer coisa, uma tristeza que era enfrentada apenas por uma persistente fé com base naquilo que ele não conseguia explicar nem em palavras nem em pensamento, um sentimento, ou uma sensação, ou apenas um desejo – sim, talvez apenas isto, desejo – de que a tragédia fosse evitada. 

Foi somente horas mais tarde, horas longas e difíceis, que ele conseguiu se livrar desse campo minado de emoções potentes e paradoxais. Isso ocorreu no exato momento em que seu médico, o médico do clube, entrou no quarto e, sem dizer uma palavra, sorriu e levantou os dois braços numa simulação de comemoração de gol.

Sob o olhar atento da mulher e de um de seus irmãos, ele apenas conseguiu fechar os olhos e pensar que é preciso passar por algumas coisas nesta vida, simplesmente isso, é preciso passar, e que o futebol e a vida são lindos, mas são duros, e só não foi adiante em seus pensamentos porque nesse momento sentiu o toque de uma mãozinha macia e quente em seu rosto e ouviu a vozinha fina da dona daquela mãozinha, e então, como nunca antes, tudo fez completo sentido para ele, completo e perfeito sentido. 

PARABÉNS, GRÊMIO

por Claudio Lovato 


Quando tinhas 50 anos,

Lupicínio escreveu o teu hino

No Restaurante Copacabana, na Cidade Baixa

E que hino!

Tua casa, naquele 1953,

Ainda era o Fortim da Baixada, nosso primeiro lar, no Moinhos de Vento, 

A Baixada de Eurico Lara, Luiz Carvalho, Oswaldo Rolla, o Foguinho

E de Mohrdiek, Schuback, Grunewald, Moreira, Booth, Sisson, Assumpção e todos os outros

Um ano depois,

Te mudarias para o Olímpico, na Azenha

O novo estádio, em outro bairro

Uma nova manifestação tangível

Do teu poder de mobilizar pela paixão 

E transformar desejos em concreta realidade

Concreto com alma

Olímpico dos míticos comandantes Foguinho, Ênio Andrade e Felipão

De Airton, Gessy, Juarez, Alcindo, Everaldo, Espinosa, Telê, Ancheta, Oberdan, Iúra, Éder

E de Tarciso, o jogador que mais vezes vestiu o teu manto e que nasceu no mesmo dia que tu 

De Milton, Vieira, Tadeu Ricci, André Catimba, De León, Mazarópi, Jardel, Danrlei, Renato e todos os outros

Renato, o Portaluppi,

Herói como jogador, nos tempos do Olímpico, 

E herói como técnico, na Arena

A Arena…

De Felipão, Roger Machado, Marcelo Grohe, Luan, Everton Cebolinha, Pedro Geromel, Kannemann, Maicon, Pepê e todos os outros

Tua terceira casa

Linda obra de engenharia e encantamento erguida no Humaitá

Agora ela guarda nossas taças

As das Libertadores, dos Brasileiros, das Copas do Brasil, dos Gauchões, das Recopas, dos Citadinos…

Guarda mais que taças: guarda História – assim como foi no Olímpico e na Baixada 


Este é o teu oitavo aniversário comemorado na Arena

O teu 117º

Hoje!

Viva o 15 de setembro de 1903

Cândido Dias da Silva e outros 29 bravos

Reunidos num restaurante de hotel na Rua José Montaury, no Centro de Porto Alegre

Carlos Luiz Bohrer, o primeiro presidente

Hoje Romildo Bolzan

Salve Bohrer, salve Luiz Carvalho, salve Romildo, salve Hélio Dourado, salve Fábio Koff

Parabéns, Grêmio!

Meu Grêmio do Moinhos de Vento, da Azenha, do Humaitá, de todos os lugares

O Grêmio de todos os que o amam

Estamos juntos

Sempre estaremos

O tempo todo estivemos – para mim, desde 1965, ano em que nasci

Na verdade, antes

Muito antes.    

E A AMÉRICA FICOU AZUL DE NOVO

por Claudio Lovato 


Esta é uma das melhores lembranças que guardo comigo sobre idas a estádio na condição de visitante. Dia 1º de setembro de 1996, um domingo, eu e meu irmão mais novo a bordo de um ônibus 474, Copacabana-São Cristóvão, a caminho de São Januário para ver o nosso Grêmio enfrentar o Vasco pelo Brasileirão. Acomodados lado a lado num banco próximo ao do cobrador, tínhamos à nossa frente pai e filho vascaínos. Os dois usavam camisas com o número 10 sobre a faixa transversal preta, como muitos outros que estavam ali. Eu conversava com o meu mano e ao mesmo tempo tentava prestar atenção ao papo dos dois à nossa frente. 

Lá pelas tantas, o guri disse:

– Hoje não vai ser fácil.

Ao que o pai respondeu:

– Não vai mesmo. Esses caras jogam até no inferno!

Nunca mais esqueci aquilo. Nunca vou esquecer. Ser respeitado pelos adversários, respeitado de verdade, é uma das melhores coisas no esporte e na vida. 

Jogo duríssimo. Pimentel fez um a zero para o Vasco aos 40 minutos do segundo tempo. Paulo Nunes empatou para o Grêmio aos 47. Naquele ano, o Grêmio conquistaria o seu bicampeonato nacional, batendo a Portuguesa na final.

A história daquele time que eu e meu irmão acabáramos de ver enfrentar o Vasco havia começado nos primeiros dias de 1995, quando se reuniram, no vestiário do Estádio Olímpico, jovens pratas da casa (alguns deles remanescentes da equipe campeã da Copa do Brasil do ano anterior, como Danrlei, Roger e Carlos Miguel) e jogadores vindos de fora, este segundo grupo formado por veteranos e novos, alguns deles desvalorizados nos clubes de procedência. Esse time daria à torcida, meses depois, um dos principais títulos da vitoriosa trajetória do clube: o bicampeonato daLibertadores da América.  

A taça continental foi erguida quase exatamente um ano antes daquele empate em São Januário. Em 30 de agosto de 1995, o Grêmio conquistava sua segunda Libertadores da América ao empatar em 1x 1 com o Atlético Nacional de Medellín, na cidade colombiana (gols de Aristizábal e Dinho), coroando uma campanha de oito vitórias, quatro empates e duas derrotas. O Tricolor vencera o primeiro jogo da final por 3x 1 em Porto Alegre, uma semana antes: Marulanda (contra), Jardel e Paulo Nunes balançaram as redes para o Grêmio e Ángel descontou para Atlético Nacional.

Havia muito e muito mais que isto: as defesas brilhantes, algumas inacreditáveis, e a vibração incendiária de Danrlei, os cruzamentos perfeitos e os chutes potentes de Arce, a técnica e a segurança de Adilson e Rivarola, a consciência tática e os passes precisos de Roger, a experiência e a liderança de Dinho e Goiano, volantes com ótima saída de bola, os dribles e a movimentação de Arílson, avisão de jogo e os lançamentos geniais de Carlos Miguel, o entendimento e o instinto matador de Paulo Nunes e Jardel, autores de 16 dos 29 gols (11 de Jardel) marcados pelo Grêmio na campanha, que incluiu embates antológicos contra o Palmeiras. Mas havia também a capacidade de entrega e a qualidade dos outros jogadores do elenco, entre os quais Emerson (que viria a se tornar capitão da Seleção Brasileira), Luciano, Magno, AlexandreXoxó, Nildo, Murilo, Sílvio, Vagner Mancini e Jacques.

Havia mais, é claro: o conhecimento de futebol de Luiz Felipe Scolari, para nós sempre Felipão, que montou e comandou um time de grande qualidade técnica e mentalidade vencedora, que,jogo após jogo, sufocava os adversários em campo; a excelência da preparação física de Paulo Paixão, fundamental para o estilo de jogo praticado pela equipe; a condução sábia, serena e apaixonada do grande presidente Fábio Koff e as constantes demonstrações de amor de uma torcida que promovia celebrações lendárias no Olímpico lotado em completa comunhão com a equipe, míticas avalanches da alma azul-preta-e-branca que tiveram seus primórdios no Fortim da Baixada e hoje encontram palco e templo na nossa Arenainaugurada em 2012.

Neste 30 de agosto de 2020, a torcida do Grêmio comemora os 25 anos do bicampeonato da Libertadores da América e exalta um espírito que levou o clube a tocar o céu várias vezes, frequentemente por ter sabido jogar, e vencer, até no inferno.

 

A campanha    

Primeira fase:

Palmeiras 3 x 2 Grêmio (21/02, São Paulo)

Emelec 2 x 2 Grêmio (14/04, Guayaquil)

El Nacional 1 x 2 Grêmio (17/03, Quito)

Grêmio 0 x 0 Palmeiras (22/03, Porto Alegre)

Grêmio 4 x 1 Emelec (31/03, Porto Alegre)

Grêmio 2 x 0 El Nacional (07/04, Porto Alegre)

 

Oitavas-de-final:

Olímpia 0 x 3 Grêmio (25/04, Asunción)

Grêmio 2 x 0 Olímpia (03/05, Porto Alegre)

 

Quartas-de-final:

Grêmio 5 x 0 Palmeiras (26/07, Porto Alegre)

Palmeiras 5 x 1 Grêmio (02/08, São Paulo)

 

Semifinal:

Emelec 0 x 0 Grêmio (10/08, Guayaquil)

Grêmio 2 x 0 Emelec (16/08, Porto Alegre)

 

Final

Grêmio 3 x 1 Atlético Nacional (23/08, Porto Alegre)

Atlético Nacional 1 x 1 Grêmio (30/08, Medellín)

 

O FANTASMA DO CRUZEIRO VELHO

por Claudio Lovato


Faustino Bezerra tinha oito anos quando o conheceu: um mulato alto e magro chamado Irineu Alves. Faustino ouviu esse nome ser pronunciado pela primeira vez quando o recém-chegado do Rio de Janeiro foi ao encontro de seu pai, gerente administrativo da obra, e se apresentou:

– Irineu Alves, topógrafo.

Irineu começou a trabalhar no dia seguinte, e não se passou muito tempo até que começasse a impressionar a todos como goleiro nos jogos do canteiro de obras. Alguns trabalhadores vindos do Rio tinham a impressão de que já o haviam visto.

Depois das partidas, os trabalhadores se reuniam para beber. Até que todos iam embora e apenas Moisés e Irineu permaneciam. Haviam se tornado amigos. Essas conversas, relatadas ao longo de anos por seu pai, permitiram a Faustino escrever a maior parte do que está registrado à caneta em ensebados cadernos escolares de espiral.

Irineu realizou seu primeiro grande feito futebolístico aos 17 anos, num jogo em São Januário contra o poderoso Vasco da Gama. Naquela partida, ele defendeu dois pênaltis e foi elogiado por Sabará e Pinga ao longo de dias. Vavá, outro integrante do Expresso da Vitória, disse que aquele garoto logo se tornaria o melhor goleiro do país, opinião compartilhada publicamente por Nilton Santos, do Botafogo, e Moacir, do Flamengo.

Nascido em Bonsucesso, Irineu chegou aos 15 anos ao clube que leva o nome do bairro e logo cedo começou a se sobressair. Dividia-se entre o clube, a escola e a ajuda ao pai no pequeno armazém que ficava no andar de baixo da casa onde moravam.

Conheceu Mariana quando tinha 17, e ela, 16, recém-chegada de Madureira, de mudança com a família. Nessa época, Irineu já tomava conta do armazém praticamente sozinho, porque o pai sofria o açoite constante da artrose na coluna, e, em razão disso – e também por conta da amizade de um dirigente do Bonsucesso com um tenente-coronel torcedor do clube –, conseguiu escapar do Exército.

O jovem goleiro assumiu a titularidade do time principal quando ainda não havia completado 18 anos, e pouco tempo se passou até o dia do jogo contra o Vasco em São Januário e os subsequentes elogios de Sabará, Pinga, Vavá, Nilton Santos e Moacir.

Irineu e Mariana se casaram com a autorização e as sinceras bênçãos do pai dela. Irineu conseguia tempo para o curso técnico de topografia, uma escolha feita em razão do que alguns conhecidos haviam lhe dito, de que o Brasil estava para se tornar um grande canteiro de obras.

Vasco, Flamengo e América tentaram contratá-lo, mas, por vontade própria, ele permaneceu no Bonsucesso. Moacir, o reserva de Didi na Copa de 58, na Suécia, chegou a procurá-lo no armazém da família para tentar convencê-lo a aceitar a proposta do Flamengo, mas não teve sucesso na empreitada.

Irineu e Mariana se casaram. Da união nasceu uma menina que eles decidiram que se chamaria Paulina, nome da mãe de Irineu, falecida quando ele tinha sete anos.

Goleiro promissor, mencionado em crônica de Nelson Rodrigues, dono do próprio negócio, topógrafo formado, marido e pai amado, benquisto na comunidade, Irineu não poderia imaginar para si uma vida melhor, mas as tragédias ao que parece chegam exatamente nessas horas e foi então que uma vela acessa em uma casa próxima causou um incêndio que destruiu uma dezena de residências e a vida de duas famílias, entre as quais a de Irineu. Mariana e Paulina foram levadas pelo fogo.

A vida para ele não seria mais possível em Bonsucesso nem no Rio. Quanto mais longe melhor, mesmo que tivesse que esquecer a carreira de jogador, e assim Irineu foi para Brasília, tentar reconstruir a vida em meio à construção do novo Distrito Federal.

O trabalho o ajudava a enfrentar o terror do passado e a impossibilidade de vislumbrar um futuro, mas a vida é maior que tudo, sempre empurrando a tudo e a todos para frente, e Irineu conheceu uma jovem de cabelos negros muito lisos de nome Luzia, filha de um comerciante nascido na Bahia e de uma professora goiana. Foi com Luzia que Irineu voltou a sorrir. Foi com Irineu que Luzia viveu o amor pela primeira vez. Planejavam se casar e ter uma casa ali mesmo no Cruzeiro Velho.

Esses planos bem que poderiam ter se concretizado não fosse um jovem engenheiro de São Paulo, decidido a fazer de Luzia sua esposa. Um dos encontros clandestinos de Irineu e Luzia foi testemunhado por um encarregado de obras, subordinado do engenheiro. O pai da Faustino deu seu conselho:

– Esqueça essa menina, Irineu.

A resposta era o silêncio e um sorriso indolente.

Um dia, Irineu sumiu de repente. Seus pertences desapareceram por completo. Foi como se ele tivesse evaporado ou como se nunca tivesse existido.

O engenheiro paulista e Luzia, depois de obsessiva insistência dele, se casaram e foram morar em São Paulo – ela com a sensação de que perdera a chance de ser complemente feliz; ele com uma culpa da qual jamais conseguiria se livrar, resultado de um ato de violência e covardia que o impediria de conseguir olhar nos olhos de seus três filhos.

Pouco tempo se passou até que os moradores do Cruzeiro Velho passassem a relatar o quicar de uma bola e certos gritos, de madrugada, entre as quadras e blocos. Quando  saíam para verificar, não viam ninguém. Os gritos diziam sempre a mesma coisa:

– Sai, zagueiro, sai!

e

– Essa foi pra você, Luzia!

Não tardou muito para que um veterano decretasse:

– É o fantasma do Irineu!

Faustino, cujo pai se foi deste mundo quase cinco décadas depois do sumiço de Irineu, continua escrevendo em seus cadernos – acrescentando detalhes, ampliando o contexto, passando a limpo.

Faustino já decidiu que frase usará como epígrafe de seu livro, que ele ainda não desistiu de ver publicado. É uma frase de sua própria autoria, lapidada ao longo dos anos:

– Todo mundo vira fantasma um dia. A diferença é que alguns fazem isso depois de morrer e outros, antes.