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Bahia

ZÉ CARLOS FEZ DO BAHIA O MAIOR DO BRASIL EM 88

por André Felipe de Lima


(Foto: Reprodução)

Hoje, 20, é aniversário do Zé Carlos, o meia-atacante decisivo para o Bahia na conquista do bicampeonato brasileiro de 1988.

Zé Carlos teve uma infância difícil e começou a trabalhar aos 13 anos para ajudar a família: “Tenho o orgulho de dizer que passei fome, mas nunca mexi em nada de ninguém, nunca apelei para a marginalidade. Sempre acreditei na honra e no trabalho honesto. É isso que procuro ensinar para as escolas de futebol em que atuo.”

O ingresso no futebol foi tarde. Zé tinha 18 anos, quando o juvenil do Tricolor de Aço baiano o acolheu após uma peneira com mais de mil garotos. Tiro certeiro dos olheiros do Bahia. O rapaz, embora muito magrinho e com quase 1,80m, era bom de bola pra chuchu. Em 1985, foi peça fundamental para o título estadual de juniores. Para não o dispensarem, fazia exercícios contínuos pendurado no travessão para tentar ganhar musculatura. Nem precisava disso. Zé batia um bolão. Após a boa fase na base do Bahia, já entre os profissionais, foi tricampeão baiano e, a maior de todas as conquistas, campeão nacional, em 1988.

O rapaz bom de bola fez tanto sucesso que o treinador da Seleção Brasileira, Sebastião Lazaroni o convocou para amistosos contra Arábia Saudita e Portugal, em 1989.

Com todo aquele futebol, não há dúvida: os Orixás sempre deram uma força bacana para o craque e ídolo Zé Carlos. Axé, mestre! E, claro, feliz aniversário!

 

TONHO VÉIO

por Tom Correia

As derrotas consecutivas de um carpinteiro heptacampeão


Tonho Véio

A tarde é de sábado, o tempo é de chuva. Operários buscam abrigo nos tratores estacionados à beira do campo de São Brás, limite entre o bairro da Federação e o Vale das Muriçocas, periferia de Salvador. A prefeitura está recapeando a pista da avenida Sérgio de Carvalho, que atravessa toda a comunidade, embutida numa baixada que começa na Vasco da Gama. Há mais de uma década, serviços de grande porte não eram vistos na região. Eleições municipais serão realizadas em quatro meses. Deve ser coincidência.

Sem preleção, o técnico da Portuguesa distribui as camisas laranja de verdes listras horizontais que não combinam muito com os calções e os meiões vermelhos. Cada conjunto do único uniforme está espalhado no chão, debaixo das árvores plantadas no lado oposto do campo. O adversário do dia é o Juventude B, que também se prepara num local próximo. A Lusa do Vale vem de duas derrotas seguidas, a última delas frente ao Juventude A: um humilhante 6 a 1.

Na véspera das partidas, Tonho Véio, 54, sempre fica ansioso e sonha com resultados. Dessa vez estava otimista, a profecia fora favorável. Sonhou com a vitória do time que fundou em 1998 após a dissolução do mítico Esperança, dos grandes Orlando e Milton, Luisinho e Osmar, Dinho e Everaldo. A equipe chegou ao heptacampeonato da Liga batendo um a um como se fosse uma máquina húngara de fazer gols, um papa-títulos da Vila Belmiro.

O céu se fecha e grossos pingos d’água se precipitam sobre o campo de terra batida onde os jogadores da Portuguesa se abraçam, formando um círculo. Um padre-nosso e uma ave-maria precedem um grito de guerra apoiado por aplausos. Todos aguardam pelo início de mais uma rodada da competição disputada por 14 equipes. Ninguém espera mais pelo final da temporada do que Tonho. Lá se vão dez anos desde o último troféu de campeão. Para ele não importa.

– Não bebo, não gosto de festa. Esse time é a minha alegria, o futebol é a minha ‘baixa’, é o que me deixa de coração espantado – se declara com o forte sotaque trazido de São Gonçalo dos Campos, terra natal, 108 quilômetros interior baiano adentro.


O árbitro aciona o apito. Léo, Décio e Rogério; Paulo Bau, Valdir e Cláudio; Pereira, Vado e Adriano. O time escalado pelo homem negro, grisalho, franzino e de estatura mediana é formado em sua maioria por moradores do Vale. São eletricistas, carregadores, pedreiros, vendedores de material de construção, porteiros e metalúrgicos que, durante setenta minutos, esquecem o desemprego. Os biscates são a alternativa de sobrevivência. Mesmo sem conseguir criar chances claras de gol, a Portuguesa domina as ações. O Juventude B se defende, rifando a bola, sem organizar um contra-ataque consciente.

Léo, o jovem cego do olho esquerdo, é um goleiro calado e ‘semi-ótico’. Veste-se quase todo de preto, involuntariamente buscando inspiração no lendário Aranha Negra. Aos 22 minutos, numa saída equivocada do zagueiro Décio, Jairo rouba a bola e toca para Isaías marcar Juventude 1 a 0. Tonho Véio agita-se na beira do campo. O semblante acusa o golpe. Rugas bem marcadas aparecem na testa. Sua voz rouca é descompensada, desprovida da modulação ideal: de perto é alta demais; a meia distância, quase inaudível. Seus trajes de diretor técnico são a representação espontânea de um Luxemburgo ao contrário: camisa de empresa de ônibus para a Operação Carnaval 2007, calça jeans de barra dobrada e sandálias havaianas verde-pálido. 

Ele acende o primeiro Hollywood de uma série de cinco. A partida é renhida. Não há poesia ou lirismo, apenas prosa endurecida. Botinadas concretas produzem um som rascante do atrito de canela contra canela. Raça e força de homens rudes suplantam os escassos instantes de técnica, quase todos saindo dos pés de Pereira, o camisa 10 da Portuguesa. Ele distribui a bola utilizando um bom repertório de dribles, lançamentos e passes precisos. Seu único pecado é não finalizar as jogadas que inicia. É o intocável do time. Não recebe reprimenda ou orientação por parte do comandante.

Tonho tem 30 anos de experiência como carpinteiro, ofício aprendido na época em que trabalhou como servente ao chegar à capital baiana, em 1974.

– Trabalho ‘fichado’ em obra, mas agora estou desempregado aí porque as empresas estão chiando por causa desse negócio de idade! – justifica-se.

A faixa etária dos seus jogadores situa-se entre os 23 e os 42 anos; a escolaridade é baixa, poucos concluíram o ensino médio. Dentre todos, só o dono do time conheceu os brejos, as hortas e a lama que invadia as primeiras casas do Vale das Muriçocas, construídas no final dos anos 70 à base de mutirões. Conheceu também as valas de esgoto a céu aberto que atraíam quantidade absurda de insetos, o que deu origem ao nome do lugar.


Falta a favor do adversário. “Excelença, vamo olhá diretcho!”, Tonho contesta, num dos poucos momentos em que tenta intervir. Acompanhando os lances de perto, o árbitro criterioso até seria discreto se não fosse pelo moicano, o brinco e as tatuagens. Vagas orientações táticas são recebidas com indiferença. A voz rouca e débil do líder parece não chegar aos ouvidos dos dez comandados, que lhe pediram para não xingar durante os jogos. O cessar-fogo do boca-suja começara há duas rodadas, há duas derrotas.

O time ressente-se do primeiro gol e cede espaço ao Juventude, que cresce. Aos 28, numa jogada despretensiosa, Jairo domina na entrada da área e coloca de chapa, no canto. Léo, caladão, aceita. 2 a 0. Tonho não sabe quanto tempo ainda resta do primeiro tempo: ninguém da equipe trouxe relógio. Ele passa a mão no rosto, enfia o dedo no nariz, no ouvido. Acende um novo cigarro e abre um papel amarrotado que envolve as carteirinhas dos jogadores. Escolhe uma delas e dirige-se à mesa da comissão, preparando mudanças.

Tonho Véio não possui religião e nem precisa dela para falar diretamente com o seu Deus. Na ‘Muriçoca’, as opções para quem busca consolo espiritual são variadas. Os templos católicos, protestantes e afro religiosos convivem lado a lado abocanhando, cada um, de acordo com seus ritos, a fatia de fiéis provedores. Na barraquinha do Pai Helinho, localizada no trecho comercial mais ativo da Sérgio de Carvalho, folhas de descarrego são vendidas aos que necessitam recarregar as energias, mudar o rumo das coisas que estão dando errado na vida. No Terreiro de Dona Boneca, trabalhos podem ser encomendados para que caminhos sejam abertos à prosperidade. 

Ele não apela para macumba. Quer vencer na bola, de preferência jogando bonito, como na época em que regia o Esperança. O padrão amarelo e preto que aniquilava os rivais como se fosse o Ypiranga dos anos 20, o Peñarol três vezes campeão do mundo. No intervalo, o técnico-carpinteiro faz três alterações de uma só vez. Alguns questionam, mas respeitam a decisão. Ele queima mais um Hollywood ao mesmo tempo em que afirma não entender a atuação do time. A falha de Décio ocasiona sua substituição.

– É o melhor zagueiro que nóis tem, mas vou colocá outro. Testá logo aquela miséra ali… se não prestá, não vem mais…

A temporada 2008 foi aberta há dois meses*. Até dezembro, quando o novo campeão do Vale será conhecido, grande quantidade de barro ainda deverá ser extraída das chuteiras utilizadas no campo de São Brás. Cada turno é dividido em dois grupos de sete equipes, das quais as quatro primeiras colocadas se classificam para as fases seguintes até a decisão em jogo único. A Portuguesa não avançaria caso o campeonato fosse encerrado após o 3 a 1. Ao invés de estudar estratégias ou posturas táticas que revertam o panorama do time na competição, o Véio Tonho prefere acreditar no “Imponderável de Almeida” rodrigueano.

– Quando eu xingo, meu time ganha… vou voltar a xingá de novo e eles vão ganhá… – sentencia, enquanto se despede com algumas ferramentas na mão, pronto para assentar a milionésima fechadura, a milionésima porta.


Jogadores da Portuguesa do Vale posam para foto antes da partida

*texto publicado originalmente no blog Caverna do Escriba em 2008.

A TÁTICA DO BÚFALO

por Paulo Oliveira


Mauro Gordo é sempre o primeiro a chegar, vestido com sua roupa de gala: o tênis kichute, amarrado como sapatilhas de bailarina; um surrado short preto; e a camisa do Flamengo, cujas cores, adquiridas em dezenas de lavagens, passaram a ser rosa e cinza. Às costas, nenhum número, pois pode se transformar em qualquer jogador que tenha pisado no solo sagrado do Maracanã com o místico manto rubro-negro. Seus dois pares de meiões não combinam com nada – um é verde; o outro, laranja. Não raras vezes utiliza uma meia de cada cor.

Diariamente, Mauro repete o mesmo ritual: a mãe prepara uma mamadeira de café com leite, que ele sorve em poucos goles. Na hora da ave-maria, pega a bola dente-de-leite, confere os nós dos cadarços, faz o sinal da cruz e parte em direção ao seu território. Será assim até os seus 20 anos, quando perceber que a maioria dos colegas deixou o bairro, o centro velho do Rio.

Nada tira sua concentração enquanto atravessa as ruas Costa Ferreira e Senador Pompeu, nas imediações da Central do Brasil. Fisionomia fechada, a bola debaixo do braço, imagina belas jogadas e como serão os gols que pretende marcar.

Ao chegar no Largo dos Estivadores, verifica a posição dos gelos-baianos do estacionamento que vira campo de futebol todas as noites e nos finais de semana. Em seguida, abre um largo sorriso e deixa a bola correr. Tem cerca de uma hora, antes da turma chegar, para treinar.

Treino básico: embaixadinhas. Sob a luz fraca dos velhos postes do bairro, tenta bater seu recorde. Uma, duas…, a bola foge do controle. De novo e de novo, várias vezes, não consegue passar de três embaixadas com a perna esquerda.

A outra, cega, não serve para nada.

O treino termina quando surgem os primeiros amigos: Banana, Manteiga, Dido, Paulo, Albino, David… Mauro cumprimenta um a um, torcendo para que pouca gente apareça. Paraibinha, Mauro Preto, 32, Sérgio…

– Vam’bora, vam’bora, vamos tirar o time – tenta apressar os outros, sem sucesso.

O sofrimento aumenta a medida que chega mais gente: Lula, Marcos Bu, Celso, Durão, Chope, Jason, Xinha. Já são mais jogadores do que o campo comporta – seis na linha e um no gol de cada lado.

Longa é a agonia do mais assíduo jogador do Larguinho, onde funcionava um mercado de escravos no passado. Ele vê a chance de atuar no primeiro racha se apagar.

– Quem quer tirar o time comigo? – insiste.

Quando Banana e Albino, os artilheiros do Águia Dourada, começam a escolha, Mauro Gordo, resignado, puxa de dentro da camisa, preso ao pescoço, um apito de plástico, pronto para virar o juiz. Para quem se acostumou a ser o último selecionado, não é tão ruim apitar e ganhar o direito de comandar o time de fora.

A luz fraca somada à miopia impede a boa atuação do árbitro. Ele é logo expulso. Cabisbaixo, deixa o campo e senta-se na soleira da serraria do seu Jorge, mudo. Porém, as primeiras gotas de chuva, mudam seu humor.

O primeiro jogo termina dez minutos depois – é isso ou quem fizer dois gols primeiro.

Mauro entra com disposição, pega a bola, coloca onde imagina ser o meio do campo. Em seguida, corre para a “banheira”, desprezando a regra do impedimento, sem validade mesmo nas peladas. Os primeiros passes caem teimosamente na perna direita, obrigando-o a fazer uma manobra complicada, que consiste em girar no eixo do próprio corpo, deslocando 90 quilos, na tentativa da perna boa entrar em ação. Por mais que se esforce, demora muito e é desarmado.

Sem jeito, olha para o chão, se prepara para pedir desculpas aos companheiros, mas não dá tempo. Percebe pela algazarra dos adversários que o seu time acaba de levar o primeiro gol.

A chuva aperta, a sarjeta começa a encher. A água já iguala a parte da calçada com a do asfalto, a poeira da rua se transforma em lama. Hora de Mauro colocar em ação a arma secreta. Ele recua até o meio-campo, espera o passe. Domina com o pé esquerdo, baixa a cabeça e, como um búfalo, invade a parte enlameada. É o único a enfrentar o lamaçal sem se preocupar com uma queda, enquanto os inimigos o cercam à distância.

O tiro disparado com violência passa entre os chinelos usados como traves. Gol com direito a comemoração diante de uma torcida imaginária. Mauro age como se fosse um Zico, um Adílio, um Júnior; como se fosse os três ao mesmo tempo.

A mesma tática é usada com sucesso pela segunda vez, dando a vitória para a sua equipe. Mauro sai triunfante. Para ele, a batalha acabou.

Quando o jogo acaba, puxa do bolso do short uma caderneta e um cotó de lápis. Vai para debaixo da cabine do zelador do estacionamento e registra os tentos assinalados ao lado da data da partida. É o controle da artilharia, a prova que marcou mais de cem gols no Larguinho.

Ao voltar para casa, a irmã tenta convencê-lo a tomar um banho antes de dormir, mas o artilheiro está cansado. O corpo desaba no sofá da sala e o centroavante dorme, embriagado com o cheiro da lama.