PELÉ GOSTA DE SAMBA; BOM DA CABEÇA AOS PÉS
por André Felipe de Lima
Desde que me conheço como gente, ou seja, lá pelos idos de 1974, embora ainda criança, comecei a gostar (e muito!) de samba. Foi exatamente naquele ano que pela primeira vez ouvi o casamento desta minha paixão lúdica e mirim por outra tão forte quanto: o futebol. Achei o maior barato. E o amoroso preâmbulo musical da minha vida — além, obviamente, do timoneiro Paulinho da Viola — foi registrado pelo samba “Camisa 10”, assinado por Hélio Matheus e pelo gremista Luís Vagner, na voz do santista Luiz Américo, aquele intérprete que ficou famoso na década de 1970 tanto pelo inconfundível bonezinho que usava como pelo molejo dos sambas que cantava.
A letra de “Camisa 10” é crítica e com endereço certo: o ex-técnico da Seleção Brasileira Mario Jorge Lobo Zagallo. Na letra do samba, Luís Vagner deixou público que Zagallo estava pisando na bola e que a Seleção, em preparação para a Copa do Mundo, na Alemanha, permanecia uma grande e incômoda incógnita. Ora, não havia mais Pelé, que três anos antes deu adeus à Seleção e se preparava para deixar o Santos também. A “dez” do escrete tornou-se um verdadeiro ponto de interrogação. Muitos noivos queriam desposá-la, mas apenas dois estavam na crista da onda e jogando muito: Rivellino e Ademir da Guia.
Alguns meses antes da Copa, Vagner finalizou a letra com Matheus e partiu imediatamente para o Rio de Janeiro. Queria mostrá-la ao Luiz Américo, que curtia muito futebol e estava numa fase ótima na carreira, integrando a leva de sambistas bastante populares na ocasião, dentre os quais Luiz Ayrão, Roberto Ribeiro, Os originais do samba, Paulinho da Viola e Martinho da Vila.
Os dois se esbarraram no programa do Chacrinha e ali começou, para valer, “Camisa 10”, um samba cuja letra, por pouco, ficou engavetada. Américo estava com o disco finalizado e pronto para ir ao mercado. Não poderiam ficar em cima do muro, como Zagallo na Seleção, e meteram a música no LP graças, ora veja, aos censores da ditadura militar, que acharam apologia à prostituição a letra de uma faixa do disco que falava em “multiplicação do amor”. Podia até cair o “amor livre”, mas jamais a “Dez”. Durante a Copa na Alemanha (e após ela também devido ao fiasco da Seleção), o disco vendeu mais que água e os caras encheram a burra de dinheiro. Até hoje me pego cantarolando, do nada, o refrão: “É camisa 10 na seleção, laiá, laiá, laiá…(bis)/ Dez é a camisa dele/Quem é que vai no lugar dele (bis)”.
Mas “Camisa 10” não foi a primeira, digamos, incursão da marca “Pelé” no samba. “Camisa 10” foi apenas uma citação ao craque. Pelé sequer sabia da existência da letra antes do estrondoso sucesso que fez nas rádios e em programas de auditório entre 1973 e 74.
No final da década de 1950 e começo da seguinte, Pelé estava estupendo. Era natural, portanto, que seu nome estivesse em pelo menos uma de quatro marchinhas carnavalescas ou ranchos que estourassem no mercado fonográfico. Em 1959, a orquestra e coro da gravadora RGE lançaram a marcha “Pelé, Pelé”, de Alceu Menezes. Sucesso garantido no carnaval de 1960. No ano seguinte, o cantor Luiz Vanderley gravou pela RCA Victor o chá-chá-chá “Rei Pelé”, do próprio Vanderley com os sambistas Wilson Batista e Jorge de Castro. Essa composição foi regravada dois anos depois pelo coro do “Clube do Guri”, programa exibido pela antiga TV Tupi entre 1955 e 1976. Além de “Rei Pelé”, Wilson Batista também compôs, novamente com Jorge de Castro, a marcha carnavalesca “Rei do Futebol”.
Parece interminável o número de marchinhas rendendo loas ao “Rei do futebol: “Pelé e o Brotinho”, de João Chamo e Souza Cruz, lançada pelo selo “Carnaval” por volta de 1958; “Pelé”, de Oiram Santos… enfim, a lista vai longe. “Ataca Pelé”, da gravadora Copacabana, foi lançada em 1961 por Tico-Tico, um carioca do Santo Cristo, cujo nome era Jorge Pereira Simas. Há também “Marcha do Pelé”, de Paulo Borges e Magdalena Correia; “Pelé”, de Amasílio Pasquim e Caçulinha; “Coitadinho do Pelé”, de Mariano Nogueira; “Pé de Pelé”, de Cambuí e Nhô Zé, e, por fim, a “Marchinha do Pelé”, de Alvarenga e Ranchinho, cujo áudio pode ser conferido aqui.
Jackson do Pandeiro, em parceria com Edgar Ferreira, é o autor da célebre “Um a um”, música do gênero “embolada” lançada em 1954. “O meu clube tem time de primeira”, reclamava Jackson nunca admitindo empate. É deste gigante da história da MPB a letra de “O Rei Pelé”, um “coco” de 1974, como destaca Paulo Luna, em seu livro “No compasso da bola” (2011): “Quem é aquele moço com a bola no pé?/ (É o Rei Pelé!)/ Eu perguntei quem é o moço com a bola no pé?/ (É o Rei Pelé!)/ A bola lhe deu dinheiro/ Lhe deu nome, lhe deu fama/ A bola lhe colocou/ Entre os maiores dos homens”. A letra composta por Jackson de Pandeiro para “O Rei Pelé” é gostosa de ouvir. Muito divertida mesmo.
TABELINHA COM COUTINHO? QUE NADA… PELÉ COM ELIS FUNCIONOU MUITO BEM
Já ouviram alguma vez o sensual diálogo a seguir?:
— Pelé, canta um negocinho pra gente, canta.
— Não posso, não tenho voz pra cantar.
— Mas canta, Pelé. Me disseram que você toca violão tão bem…
— Em todo o lugar que chego querem que eu toque violão.
— Mas canta pra mim…
Pois é, Pelé não resistiu ao dengoso pedido da pimentinha Elis Regina e decidiu cantar para ela e com ela. Foi a primeira vez que cantou e gravou um sambinha. Um não, dois sambinhas! Isso aconteceu em 1969, ano em que o maior jogador de todos os tempos arriscou-se no samba ao gravar com Elis o disco compacto “Tabelinha: Elis x Pelé”, pela antiga gravadora Philips, com apenas duas faixas (“Vexamão” e “Perdão não tem vez”) todas de autoria do Pelé.
Pelé voltou a aventurar-se em um (quase) samba em 1977, quando, em parceria com Sérgio Mendes e a banda Brasil 66, lançou o LP “Pelé”, pela gravadora WEA. O disco, que priorizou o instrumental, contém a trilha sonora do filme que narrou a sua despedida dos gramados. O jogador estava no Cosmos, de Nova Iorque, dando um banho de marketing e atraindo uma legião impressionante de novos adeptos do soccer nos Estados Unidos. No disco, fazendo dueto com Gracinha Leporace, Pelé canta “Meu mundo é uma bola” e “Cidade grande”, que também foi interpretada por Jair Rodrigues, de quem Pelé foi grande amigo.
Em 1979, Pelé lançou, pela Som Livre, um compacto simples com as músicas “Criança” e “Moleque danado”, de sua autoria. Para ouvir “Moleque danado” e várias outras músicas do Pelé basta acessar o site www.tidido.com e cadastrar-se gratuitamente. No link a seguir você vai direto para as músicas do Pelé: http://tidido.com/pt/a35184372128979/al5601335ae7c622686a871920/t5601335be7c622686a871a0f
JAIR RODRIGUES, AMIGO MAIS DE VIOLA QUE DE SAMBA
O saudoso Jair Rodrigues foi um grande amigo de Pelé. Um visitava o outro com relativa frequência. Jair foi, é verdade, quem mais procurava o Pelé. Ia muito a Santos só para botar o papo em dia com o ídolo e falarem mais de música que propriamente de futebol. “Quando chegava, o Pelé já estava com o violão dele lá me esperando”, disse Jair, em uma entrevista à TV Bandeirantes, contando, também, como o gosto musical de Pelé é versátil: “Esse violão ele acabou me vendendo. Tenho ele até hoje. Chegava na concentração ou na casa dele, o Pelé já vinha me mostrando. E não era só samba, porque ele gostava de todos os ritmos, assim como eu. Além de jogar uma bola finíssima encontrava tempo de compor boas músicas.”
A amizade entre ambos rendeu duetos que fizeram muito sucesso. O samba passou, porém, longe da amizade de Jair com Pelé. O intérprete, que notabilizou-se por muitos sambas de sucesso, gravou três canções assinadas por Pelé. Todas elas longe, contudo, do quesito samba. Enquadram-se no estilo moda de viola. Ei-las, portanto: “Recado à criança”, gravada em 1974; “Cidade grande”, em 1981, e “Violeiro, violeiro”, em 1982.
COM WILSON SIMONAL OU ‘TODO CANTOR QUER SER JOGADOR’
Em antiga reportagem do SporTV, Benedito Ruy Barbosa afirmou ter sido testemunha da vocação musical de Pelé. Garantiu ter presenciado Tite, um ex-ponta canhoto que jogou pelo Fluminense e pelo Santos, ensinar ao Pelé os primeiros acordes do violão. Pelé conta que nos primeiros momentos de Santos, alguns jogadores pintavam na concentração com uma viola e que ele os acompanhava, timidamente. “Quando eu era garoto, já pegava um violão e ficava dedilhando”, recordou Pelé, que foi intensificando o gosto pela música conforme o Santos ia conquistando tudo e todos. “Muitos compositores e cantores famosos visitavam a gente nas concentrações”, contou Pelé, na mesma reportagem do SporTV. Com o assédio dessa gente famosa, a musicalidade definitivamente o envolveu. Além de Elis Regina e Jair Rodrigues, Wilson Simonal foi uma destas celebridades musicais da época que se aproximaram de Pelé. Em 1967, gravou, inclusive, uma composição do craque santista, a letra de “Gosto tanto de você”, que integra o LP “Alegria Alegria vol. 2”, lançado pela Odeon.
Wilson Simonal esteve bem perto de Pelé no momento mais importante da carreira do craque: o “tri” na Copa do Mundo de 1970, no México. Simonal foi convidado pelos cartolas da antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos) para acompanhar a delegação no Mundial. A missão do cantor era entreter a rapaziada com muito samba para que ficassem calmos e tinindo em campo. Missão, pelo visto, devidamente cumprida. O Brasil ganhou todas as pelejas e Pelé se consolidou como o maior atleta do século XX.
No documentário “Ninguém sabe o duro que dei”, de Calvito Leal, do “casseta” Cláudio Manoel e de Micael Langer, Pelé reconheceu em Simonal uma figura ímpar da MPB. Era uma ocasião na qual o cantor rivalizava em popularidade (vejam só…) com Roberto Carlos. “Simonal foi uma espécie de cantor oficial da delegação [do Brasil, na Copa de 70]. Ele fazia um imenso sucesso no México tanto quanto Pelé”, confirmou Nelson Motta, em depoimento para o filme biográfico do cantor.
Wilson Simonal e Pelé eram carne e unha. Juntos promoveram ensaios musicais divertidíssimos para os jogadores. A amizade entre ambos afirmou-se no México. “Pô, eu chegava no aeroporto e todo mundo pedia autógrafo pra ele [Simonal]. Quer dizer, parecia que ele era um jogador de futebol. Aquela coisa que você sabe, né, de boleiro com cantor. Ele dizendo que era bom de bola, que gostava de bater bola. Eu tinha um [campo de futebol] society lá na minha casa, aí nós brincamos lá. Aí começou nossa amizade. Pô, é impressionante. Todo cantor quer ser jogador e todo jogador quer ser cantor”, declarou Pelé também para o filme “Ninguém sabe o duro que dei”.
Simonal acabou se tornando mais que apenas o cantor oficial da delegação. Foi uma mascote, um querido amigo de todo mundo. O clima descontraído permitiu aos jogadores promoverem uma brincadeira com o cantor. Durante um treino, ele deveria jogar para um leve e descompromissado “teste”. Os craques deixavam o cantor se sentir “jogador”. Simonal passava a bola, conduzia a pelota… só dava o “craque” Simona na pelada dos craques. No documentário, Chico Anísio recupera uma história surreal. Zagallo tinha dúvidas se levava para o México o ponta-direita Rogério do Botafogo ou o terceiro goleiro, no caso o Leão, do Palmeiras. Carlos Alberto Torres, o “Capita” de 70, emendou a sugestão, naturalmente na maior galhofa: “Zagallo, pra que levar o Rogério se o Simonal está aqui? O ‘Simona’ entende, joga uma bola redonda”. Zagallo embarcou na piada do Capita e perguntou ao Simonal: “Você joga, Simonal?”. O treinador do escrete ouviu na lata: “Bato uma bola…”. Um todo prosa Simonal mordeu a isca e Zagallo o convidou para uma “preparação física pra valer” na manhã do dia seguinte. Tudo à vera, sem “brinca”. “Se você estiver bem, eu te inscrevo”. Um confiante Simonal acreditou.
“Ele [Simonal] achava que estava bem, que era atleta e ele falou assim: ‘Pô, vou fazer uns dois toques’, porque a gente fazia brincadeira de dois toques, né? Aí, recreação… ele falou: ‘Vou fazer dois toques com vocês aí’. Aí eu falei: ‘Tá legal’, aí arrumamos pra ele fazer o dois toques. Botou o uniforme, botou a chuteira, tudo. Eu me lembro como se fosse hoje. Aí, ele foi fazer o dois toques. Quinze minutos de aquecimento, pô, ele se sentiu mal. Lá no México é alto, pô, deu um piripaque nele. Aí, ficou lá, teve que vir o doutor dar um oxigênio e tudo pra ele”, recordou Pelé, às gargalhadas, para o documentário sobre Simonal.
Simonal desmaiou para valer. Somente quando acordou é que percebeu que tudo não passava de uma gozação. Até ali, o cantor acreditava piamente ser ele o ponta-direita da seleção na Copa de 70.
Claudia Cardinale
A Copa do Mundo de 1970 rendeu muitos sambas, como o “breque” “Moreira da Silva contra 007”, do rubro-negro Moreira da Silva, o grande “Kid Morengueira”, o último malandro de raiz de que se teve notícia. Ele, com o parceiro de composições, o jornalista Miguel Gustavo (autor também da famosa “Pra frente Brasil!”, criaram uma letra tão surreal que nem mesmo o artista surrealista Salvador Dali ousaria pintá-la. A música narrava um hipotético quiproquó de Pelé com James Bond por causa da atriz Claudia Cardinale. O narrador inicia a comédia trágica assim: “Moreira da Silva contra 007. Sexo e violência no mais espetacular filme de espionagem do famoso diretor americano Abelardo ‘Chacrinha’ Barbosa. Com James Bond, Claudia Cardinale e Edson Arantes do Nascimento.”
No final das contas, Claudia Cardinale teve um caso com Pelé, em Santos. “A bonitinha não percebe a tabelinha que ele faz/ Pelé controla a Cardinale, dá-lhe um beijo e avança mais”. Mas Bond flagrou os dois na maior pegação na piscina do hotel/ concentração e partiu para cima do craque empunhando um soco-inglês. E quem surge para salvar nosso ídolo das garras do famoso espião britânico? Ora, ora, ora, meus caros… ele, somente ele, poderia salvar o nosso Pelé: o trepidante agente “Kid Morengueira”, que levou James Bond para o (argh!) Dops e descobriu a “trama sórdida”: queriam sequestrar Pelé para que não jogasse contra a Inglaterra. Malandramente, Moreira da Silva desvenda o “crime” e leva como “brinde” a estonteante Cardinale para jogar um emocionante pif-paf e comer uma pizza no Brás.
A Copa do Mundo de 70 passou, mas Pelé permaneceu. Jorge Ben Jor, que tantas músicas fez sobre futebol (maciça maioria dirigida ao Flamengo e a Zico), talvez tenha sentido uma certa culpa por jamais ter reverenciado o maior de todos os gênios do futebol. Foi redimido pela “O nome do Rei é Pelé”, do álbum “Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum)”, de 2004: “Dondinho e Celeste idealizaram e fizeram o rei chamado Pelé/ O nome do rei é Pelé, o nome do rei é Pelé/ Pelé de todos os tempos/ Incomparável Pelé, Pelé/ Pelé da arte e da magia”. A música, contudo, não foi das mais empolgantes do cracaço da MPB.
Em 1982, com o país em polvorosa por conta da seleção do Mestre Telê Santana, Moraes Moreira, outro craque da MPB, decidiu homenagear aquele inesquecível escrete na música “Sangue, Swing e Cintura”, mas, evidentemente, sem esquecer o maior jogador da história: “O rei aqui é Pelé/ Na terra do futebol/ Olé! É bola no pé/ Redonda assim como o sol/ Seja no Maracanã/ Ou num gramado espanhol”.
Foi a partir daquele ano da frustrante participação do Brasil na Copa do Mundo da Espanha que Pelé foi, aos poucos, sumindo das composições da MPB. Ele, por sua vez, também foi se esquivando do samba e permanecendo mais no gênero sertanejo. Algo mais próximo de samba, com nítida pitada de rap, o ídolo só voltaria a fazer em 2016.
O hit “Esperança” foi uma vã tentativa de manter a imagem de Pelé vinculada a da Olimpíada de 2016. A música não emplacou e Pelé sequer deu pinta na abertura dos Jogos, no Maracanã. Alegou que estava com a saúde frágil. O que é a mais triste verdade. Nosso ídolo maior do futebol vem enfrentando uma barra pesada com as fortes dores no quadril após uma cirurgia malsucedida realizada por médicos americanos.
O tempo passa e nenhum outro jamais superará o “Rei do futebol”, seja nos gramados ou nas letras da MPB. Pelé — perdoem-me o chavão — é único e insuperável. O que mais, afinal, poderia ser dito sobre um dos maiores gênios da humanidade no século XX? Pelé é definitivo. Caetano Veloso estava certo: “Pelé disse love”… e fez isso para o mundo. Pelé, meus caros, é um samba de uma nota só. Inigualável nas partituras do futebol e da vida.
PAULO MENDES CAMPOS E UMA PARTICULAR ONTOLOGIA DA PELADA
por André Felipe de Lima
Paulo Mendes Campos
Hoje, dia 28 de fevereiro, faria anos o poeta, ensaísta, jornalista, contista, escritor e confesso peladeiro Paulo Mendes Campos. Seriam cristalinos 95 anos de vida. Botafoguense, Paulo amava o futebol sobre quase todas as coisas. Talvez um pouco menos que a Literatura, somente. Sem a paixão pelas letras e a (boa) escrita seria, obviamente, impossível exclamar em sonoridade poética e estratosférica o quanto encantava-se pelo querido e velho esporte bretão. Uma idolatria à bola que jamais mostrou-se claudicante. Muito menos quando seu Botafogo estava na ordem do dia. Na ordem do mais ontológico intimo do seu ser… “Ser”, frise-se, devidamente alvinegro: “Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinça nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco. Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol. Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho. O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa.”
Paulo Mendes Campos interpretava o Botafogo como o mais deliciosamente peladeiro dos clubes. O mais espontâneo para se amar. Somente um clube com a ingênua vocação sedutora do Botafogo poderia transpassar corações sem feri-los. Paulo Mendes Campos pensava assim sobre o seu Botafogo. Seu, sim, e de mais ninguém.
Reprodução do livro de Ruy Castro
O Botafogo também tem essa aura de fidelidade clubística. Parece que somente ele, o Botafogo, ama o seu torcedor. Aquele único torcedor e mais nenhum outro. O torcedor acredita, claro, nessa doce e saudável ilusão. E o Botafogo, como é peculiar em sua linda história, é também um pouco de cada um dos seus torcedores. Há, realmente, coisas que só acontecem ao Botafogo. O ídolo se mistura ao clube e vice-versa. Garrincha era Botafogo e ai do Botafogo não ser Garrincha. Vá lá, isso, o poeta das cores em preto e branco muito bem conhecia. Teve como ídolo e amigo ninguém menos que o próprio Garrincha. Sua mais perfeita crônica viva, verídica até a alma, e a de que mais prazer lhe proporcionava decantar na conexão dos universos do futebol e das letras. Gostava até mais que do seu jocoso Botafogo, que em si provocava momentos de tensão, medo, euforia e alegria sempre extremos, apaixonados (e apaixonantes) e minuciosamente detalhistas, igualmente a sua crônica tão famosa intitulada “Mané Garrincha”: “Descobri há tempos uma graça espantosa nessa finta de Garrincha: às vezes o adversário retarda o mais possível a entrada em cima dele, na improvável esperança duma oportunidade melhor. Garrincha avança um pouco, o adversário recua. Que faz então? Tenta o suficiente para encher de cobiça o pobre João. João parte para a bola de acordo com o princípio de Neném Prancha: como quem parte para um prato de comida. Seu Mané então sai pela direita.”
Em outra crônica, simplesmente nomeada “Garrincha”, Paulo Mendes Campos se apresenta como, talvez, o escritor/ torcedor que melhor tenha descrito Garrincha, em sua plenitude e doçura de peladeiro. Para o poeta, o peladeiro e a pelada, digamos, poderiam representar os mesmos papéis das figuras da horda primeva freudiana: a mãe (a bola) deve ser imaculada e os irmãos (peladeiros) devem preservá-la. Com uma única diferença: sem a repressão do pai (o futebol aristocrático). Na horda primeva do futebol, que também poderia atender pelo nome de “pelada original”, todos podem correr atrás da bola para saudá-la, como Garrincha sempre fazia, sem distinção entre a terra batida de Pau Grande e o gramado do Maracanã. Para ele, a pelada era imortal, espontânea e distante, portanto, das interferências elitistas que a cultura do mercado tenta impor: “[Garrincha] Era a própria candura. Todo mundo, em todas as profissões e fora das profissões, sonha com a candura como um bem supremo. Mas somente Mané Garrincha e uns poucos ungidos nasceram e cresceram com essa pureza, com essa espontaneidade inalterável. Nunca houve homem famoso menos mascarado, menos cônscio de sua importância. Algumas pessoas, à custa de autodomínio, conseguem isso. Mas a Garrincha não custava nada. Ele era desimportante sem saber que o era E era também perfeitamente espontâneo — e isso é ainda mais raro de se achar — ao receber alegremente a glória e o carinho do povo. Cândido mas não ingênuo. Pelo contrário, Mané é, antes de tudo, um astuto. Dentro e fora do campo. A qualidade ardilosa de sua inteligência — tão comum, aliás, em nosso homem do interior — pode ser imediatamente notada em um detalhe: Mané fala errado, à falar corretamente cometeria erros involuntários.”
Reprodução
Botafogo, Garrincha. A reverência ao “ser” original do futebol, estes doces e cândidos peladeiros, no esquema tático e metricamente tácito em toda poesia, sobretudo a de Paulo Mendes Campos, para quem o Botafogo e ele (sim, o próprio escritor) pareciam ser a mesma pessoa, em um único esquema: “O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo; no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração.”
A bola, sacrossanta “mãe” da horda primeva do futebol, está presente em nossas vidas desdeencarnações passadas. Desde antes do próprio futebol dos ingleses, dos Miler da vida, dos Friedenreichs ou afins: “O brinquedo essencial do homem é a bola. Quem ganha uma bola descobre dois mundos, o de dentro e o de fora. Um Psicólogo do futebol imagina a seguinte cena: meninos jogam na rua; a bola sobra para o cavalheiro que passa. Que fará o austero transeunte? Ficará indiferente? Devolverá a bola com as mãos? Já vimos todos nós o que ele irá fazer: o homem, sem perder a gravidade rebate a bola com o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na Verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um chute. É sempre um grande prazer, uma das coisas agradáveis da vida, dar um chute na bola, sobretudo quando conseguimos colocá-la na meta almejada.”
Reprodução do livro de Ruy Castro
Santa pelada de nós todos… o mais legal disso tudo é que descobri que no campo para as remotas peladas do Paulo Mendes Campos, em um já demolido parque de um laboratório farmacêutico na Rua Marquês de São Vicente, na Gávea, eu, humildemente, algumas décadas depois, também ousei dribles, caneladas e amizades. Cresci, sem saber, perto do poeta e do futebol original, primevo, que tanta nostalgia nos desperta. Ambos sempre estiveram em minha alma vira-lata de jornalista e de peladeiro, que um dia achava ser o “Garrincha” da Marquês de São Vicente. Como escreveu Paulo Mendes Campos: “O futebol jogou-me como quis”. E viva a ontologia da pelada presente em todo o brasileiro!
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LEITURA OBRIGATÓRIA: “O gol é necessário — Crônicas esportivas”, Editora Civilização Brasileira (2002), um imperdível livro de crônicas do Paulo Mendes Campos. Uma ode ao futebol e, claro, à pelada.
UM “LORD” BRASILEIRO E MELHOR LATERAL-DIREITO DA HISTÓRIA
por André Felipe de Lima
Os ingleses o chamavam de Lord. Não era para menos. Djalma Santos foi o melhor lateral- direito da história do futebol mundial. Ídolo estelar do nosso olimpo futebolístico, Djalma completaria 88 anos nesta segunda-feira, 27. Saudade deste grande ídolo, bicampeão mundial em 1958 e 62, com a seleção brasileira. Saudade do querido “Nariz”, como era carinhosamente chamado, porém com tom brincalhão, por Garrincha, Pelé e Nilton Santos nos bons tempos em que juntos vestiram a poderosa “amarelinha”…
Na foto, estou em pé, atrás do Djalma Santos e dos craques da antiga Tchecoslováquia, que disputaram a final da Copa do Mundo de 62. Djalma está entre Jelínek e Masopust, este o maior jogador tcheco da história.
Naquela tarde do dia 24 de junho de 2012, em São Paulo, bati um longo papo com todos para edição do documentário “Simplesmente passarinho”, sobre a vida de Garrincha. Entrevistas muito bacanas que, se Deus quiser, poderemos conferir com o lançamento do filme.
Vale a pena conferir os vídeos abaixo e conhecer um pouco sobre a história deste gênio da bola:
GRANDE E DIGNA HISTÓRIA DO DJALMA SANTOS…
BLOCO 1: http://migre.me/oMEHA
BLOCO 2: http://migre.me/oMEJb
BLOCO 3: http://migre.me/oMEK7
CALÇADA DA FAMA NO MARACANÃ: http://migre.me/oMEQG
ELE SCARPOU! ATÉ QUANDO?
por Zé Roberto Padilha
Estava me preparando para sair no Bloco das Piranhas (segundo Moisés, o zagueiro que fez seus seguidores atravessarem os atacantes ao meio, conduzindo-os ao gelo, um Voltaren no músculo e uma estadia no DM, boleiro que se preza não ganha o Troféu Belfort Duarte – e sai de mulherzinha no sábado de carnaval) quando resolvi dar uma olhada na telinha que transmitia Fluminense x Madureira.
Carrinho sofrido por Gustavo Scarpa contra o Madureira
A partida estava paralisada e o replay provocava frios na espinha diante de um carrinho criminoso dado em cima do Gustavo Scarpa. Um serial killer de amarelo dera um salto sobre o camisa 10 tricolor no gramado escorregadio, o que aumentava a velocidade do tiro, e suas balas passaram a centímetros da tíbia, do perônio, dos quatro meniscos e dos seus ligamentos cruzados.
Em um só instante revi o carrinho do Márcio, do Bangu, que abreviou tantos momentos de genialidade que o Zico ainda tinha para nos oferecer. E lembrei-me daquele outro imbecil que nos roubou John Lennon e tantas canções que ele iria nos presentear. Imagine all the people. Imagine as pessoas vivendo a vida em paz!
A arte é a perfeição alcançada por um dom concedido pelo criador aos seus filhos para tornar a vida mais bonita aqui embaixo. Vale para a pintura, a arquitetura, para música, dança e também para o futebol. A este menino simples e humilde, formado nas divisões de base em Xerém, foi concedido um futebol requintado, com resquícios do passado. Nada daqueles toques para o lado do Márcio Araújo, para o companheiro mais perto para o show do intervalo elevar o índice de acertos e previsibilidade. Muito menos para trás, jogando aos pés dos que não sabem sair jogando a missão de distribuir as jogadas.
Gustavo Scarpa escapa da mesmice e, como Gérson, Didi, estica o passe, alonga o jogo, enxerga sempre um companheiro livre porque nenhum zagueiro acredita em uma conexão tão rápida. Bate com jeito na bola, como Jair da Rosa Pinto, Zizinho e Silveira, não com força, daí a velocidade com que o goleiro Rafael, do Globo-RN, foi surpreendido, porque ele não tomou a distancia comum e necessária para acertar um chute daquela distância. Foi apenas um retoque de pincel sobre uma tela verde e iluminada. Uma obra de arte como muitas que ele tem ainda a nos oferecer.
Igualmente revelado nas divisões de base em Xerém como ele, Paulinho, Mário, Zezé, Gilson Gênio, Wallace e tantos canhotinhas tricolores, tive minha carreira abreviada por quatro intervenções cirúrgicas na caneta esquerda. Antes do Bloco das Piranhas teve uma pelada à fantasia aqui em Três Rios e minha mente foi convidada. Meu corpo? Fui nadar. Às vezes ando de bicicleta, vou caminhar, correr não dá mais!
Às vezes fico pensando: de que vale um dom herdado para sempre danificado? Mas após aquele carrinho criminoso que demorou a deixar a minha mente, antes do bloco fiz uma prece por este menino. E agradeci, como tricolor e apaixonado pelo futebol, por ele ter escapado ileso daquela covardia. O futebol, e sua arte, não podem mais se dar ao luxo de perder um dos poucos artistas que lhe restam.
É O ETERNO ‘CAMISA 10’ DA GÁVEA NO SAMBA
por André Felipe de Lima
Jorge Ben, Zico, Júnior e Caetano
O refrão diz tudo: “É falta na entrada da área/ adivinha, quem vai bater/ é o camisa 10 da Gávea…”. Zico, Flamengo e Jorge Ben Jor. Naquela tarde de domingo, dia 7 de março de 1976, o Flamengo sapecava uma goleada de 4 a 1 na então poderosa “Máquina Tricolor”, que contava no gramado com Carlos Alberto e Paulo Cezar Lima a postos, mas sem Rivellino. Não deu para eles, Zico estava infernal. “Violento”, como definiu o jornalista Marcos de Castro, nas páginas do Jornal do Brasil: “Pois o jogo foi Zico, meus amigos. A bola escorreu mansa pela direita, maltratada por um pé meio quadrado, voltou, veio de novo pra cá, pra lá, Renato falhou. Zico, violento, um toque de mestre, gol.”
O que Zico fez ao Fluminense foi uma “Zicovardia” digna de samba e da bossa linguística, como estampou a manchete do Jornal dos Sports no dia seguinte. O placar mais justo foi Zico quatro, Fluminense um. Sim, quatro gols de Zico, que naquela tarde passaria definitivamente da “promessa” à realidade e o seu nome seria protagonista não somente nos gramados de futebol, mas também de muitas letras musicais, sobretudo as de samba. Arrisco-me a dizer que Zico, Garrincha e Pelé sejam os craques brasileiros mais citados na MPB.
Jorge Ben Jor estava no Maracanã naquele domingo. E mais: foi ao vestiário rubro-negro animar a moçada, cantarolando um refrão ainda solto no ar que se tornaria um famoso sambalanço: “Falta na entrada da área, é o número 10 da Gávea”. Com a frase cantada, Jorge Ben Jor mostrou a facilidade de Zico para cobrar faltas. Dali, na arquibancada, começou a brotar a música “Camisa 10 da Gávea”, que integraria meses depois o estupendo e dançante LP “África Brasil”, que contava também com a música “Ponta De Lança Africano/ Umbabarauma”, igualmente associada a Zico por muita gente fã de Ben Jor e, claro, do Galinho de Quintino.
“Foi a falta melhor cobrada até hoje. Creio que dificilmente conseguirei bater outra falta com tanta perfeição. Nos outros gols dei sorte, pois estava acompanhando todos os lances. O último, então, devo destacar o trabalho de Caio, Toninho e o toque genial de Geraldo, que me deixou sozinho contra Renato. As demonstrações de carinho só podem me incentivar para que melhore ainda mais”, disse o Galinho, logo após o Fla-Flu, sem imaginar que ainda cobraria muitas faltas semelhantes àquela, igualmente a outros lances magistrais que o desenhariam como o maior ídolo rubro-negro de todos os tempos.
O 4 a 1 sobre a “Máquina Tricolor”,no jogo em que se disputava a Taça “Nelson Rodrigues”, deixou eufórico um torcedor do Flamengo, que se aproximou de Zico e disse: “Você é tão bom quanto o Pelé”. Humildemente, o Galinho de Quintino rebateu: “Você pode ser muito meu amigo, mas não diz isso não que é pecado. Igual ao Negão nunca vai aparecer. Eu me contentaria em saber que consegui jogar a terça parte do que ele jogou.”
Logo após ter deixado o festejado vestiário do Flamengo, Jorge Ben Jor talvez tenha buscado imediatamente uma caneta e um papel para escrever a letra definitiva de “O camisa 10 da Gávea”. Isso é apenas uma suposição, frise-se. Jamais — creio —perguntaram isso ao Ben Jor, um rubro-negro ferrenho, santificado, que durante entrevistas declarara com inabalável convicção: “Sou brasileiro e meu time é o Flamengo”. E é mesmo, desde pequeno. Chegou a jogar nas divisões de base do clube e, em uma entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura), em 1995, foi categórico: “Quero ser presidente do Flamengo um dia.”
Sobre o Galinho, sem rodeios, externou sua paixão, em outra entrevista, publicada pela revista IstoÉ Gente, de 12 de julho de 2010: “O futebol dele foi surreal. Ele foi um exímio cobrador de faltas na entrada da área”. Precisa mais?
Após aquele Fla-Flu do “4 a 1”, Zico tornou-se mágico. Uma espécie de “Midas da bola” que passou a despertar nos torcedores uma paixão avassaladora. Inclusive em outros fãs ilustres da MPB. Seguindo a trilha de Jorge Ben Jor, o “novo baiano” Moraes Moreira tornou-se grande amigo de Zico e para o ídolo compôs uma música (no melhor estilo arretado de um trio elétrico) “Saudades do Galinho”, lamentando o fim da carreira do craque, no dia 2 de dezembro de 1989, contra o (olhe a “vítima” aí de novo!) Fluminense. E o Placar? Cinco a zero para o Flamengo, em jogo realizado no estádio de Juiz de Fora (MG), que valeu pelo Campeonato Brasileiro. “E agora como é que eu fico nas tardes de domingo sem Zico no Maracanã?”, diz a letra. Surge, portanto, uma breve pergunta: Adivinhem de quem foi, de falta, o primeiro gol do Flamengo naquele Fla-Flu?
Anos depois, o cantor Alexandre Pires, outro rubro-negro sem meio termo, ficou visivelmente nervoso ao cantar, diante do ídolo, a música “Zico é o nosso rei”, cuja letra havia composto no dia anterior ao encontro com o Galinho. Para quem não sabe, Pires, que antes de cantarolar sambas sonhara ser Adílio para tabelar com o Galinho, tem um filho que se chama, ora essa, Arthur.
Só faltava mesmo a Marques de Sapucaí para a reverência definitiva ao Zico. Em 2014, a Imperatriz Leopoldinense cumpriu a missão de homenageá-lo com o enredo “Arthur X – O Reino do Galinho de Ouro na Corte da Imperatriz”. Pronto. Não faltou mais nada para Zico e sua gloriosa carreira também serem eternizados no doce universo do samba.
Os editores tentaram identificar os autores da imagem, mas não obtiveram sucesso. Caso o autor se manifeste, teremos o imenso prazer de citá-lo.