ENTORTADOR DE CORPOS
por Serginho 5Bocas
Na minha época de menino, quis ser goleiro e ponta esquerda, posições logo abandonadas, a primeira por uma bolada que literalmente amassou e inchou meu dedo dentro da luva e a segunda por influência decisiva de meu pai, que dizia que jogar de ponta esquerda era furada, pois ficava perto da linha lateral e do treinador e na hora de substituir era sempre o sacrificado. Sábio seu Domingos, meu pai, que Deus o tenha em ótimo lugar.
Lenda ou verdade, naquele tempo ainda havia a figura do ponta esquerda e entre os melhores que vi jogar se destacam: Joãozinho, do Cruzeiro, João Paulo, do Santos, Zé Sergio, do São Paulo, Edér, do Atletico Mineiro e o Júlio César (Julinho) “Uri Geller”, o entortador de corpos do Flamengo.
Julinho era o ponta nato, partia para dentro e queria o drible em todas, fez muito sucesso no Flamengo de 1979 e 80. Era uma verdadeira atração nas excursões a Europa, os gringos ficavam doidos, pena não ter vídeos para comprovar, eu só tenho a narração do Garotinho da Rádio Nacional para testemunhar suas peripécias e o Jornal dos Sports para ampliar as diabruras.
Em 79 estava escangalhando os beques e a sua convocação através de Coutinho não demorou. Lembro que a manchete do Jornal dos Sports dizia que seria Julinho e mais 10, sem nenhum exagero, tal era a sua boa fase. No Rio, a torcida do Mengão mal podia esperar para vê-lo em ação com a amarelinha, mas veio uma contusão que não sarava e Julinho perdeu a sorte e o bonde da felicidade.
Perdeu o bonde da seleção, pois Coutinho foi substituído por Telê, que não era muito fã de dribladores, mas ainda deu tempo do craque ser campeão brasileiro de 1980 pelo Mengão. Depois foi negociado ao Talheres da Argentina.
Zico e Uri Geller aniversariam juntos
Na Argentina arrebentou. Foi considerado o melhor jogador do campeonato argentino naquele ano, superando inclusive o astro Maradona, e chegou a ser convidado a se naturalizar por Menoti, mas não aconteceu.
Carreira “curta” e de muitas porradas duras no campo e fora dele, mas prefiro ficar com as lembranças dos jogos nos torneios europeus de verão que curtia em meu inseparável radinho de pilha, dos jogos do Brasileiro de 80, dos dribles no lateral Márcio, do Atlético-MG, no amistoso das chuvas em 79 com a companhia real do Pelé, do drible de cinema em Uchoa, do América-RJ, dos inúmeros dribles em Orlando Lélé, entre outras lembranças maravilhosas.
O cara era a alegria do povo, foi uma das minhas maiores alegrias e inspirações de moleque e pena que vi pouco, deixou saudade boa.
Cansei de rezar literalmente para a bola ir para o lado dele no campo, só para ver o que ele faria com o lateral (qualquer um) do outro time. Sinceramente, não me lembro de nenhum lateral que tenha tido vida boa naqueles curtos dois anos de alegria.
Julinho pode não ter sido tudo que eu acreditava que ele era naquela época, não sei se foi uma “Chuva de verão”, um erro de julgamento de uma criança em seus 10, 11 anos, mas sei que fez parte decisivamente do meu imaginário, e das minha melhores lembranças de futebol arte. Foi meu herói e minha alegria nos campos de pelada, foi botão preferido (ao lado do Zico) na mesa verde e inspiração para partir pra dentro dos adversários nas peladas. Pena que foi tão efêmero…
PARABÉNS, JULINHO!
O ATLETIBA E O SONO TRANQUILO DO UTOPISTA DE BERMUDAS
por Marcelo Mendez
(Foto: Reprodução)
“Mulherada problema: Lugar de mulher é onde ela quer”.
O jogo entre Atlético Paranaense x Coritiba já começou lendário:
Na partida que vai entrar para história das comunicações no Brasil, como o mais importante, como o divisor de águas, como o primeiro a ameaçar o monopólio, de cara, na transmissão via Youtube, a torcedora do Atlético Paranaense, tinha essa frase escrita em seu cachecol na arquibancada.
Algo impensável de se ver nas transmissões esportivas no Brasil, porque a dona do esporte via televisão não compactua com essas manifestações, livres, civilizadas, democráticas, não; Faz o contrário…
Em um universo elitista, onde cada vez menos o povo pode freqüentar estádios, onde cada vez mais a repressão o amassa, autoridades tolhem, pisam em cima e sufocam o direito do cidadão se manifestar. A dona do esporte no país faz coro com isso.
Corta, edita, não mostra, finge que não viu… Não importa para um monopólio qualquer tipo de manifestação que agrida o pote de ouro. “Venham quem puder e quem não puder dentro dos preceitos monopólatras, que ligue a TV, que se enterre no sofá, que veja o jogo como nós aqui, os donos, queremos que seja visto.”
Ontem foi diferente.
A partir das 20h, o Brasil pode acompanhar um jogo de futebol sem nenhum tipo de chancela das Organizações Globo de televisão. Atlético-PR e Coritiba fizeram seus corres para transmitir cada qual em seu canal via Youtube, como aliás já deveria ter acontecido no ultimo dia 19 de fevereiro. Dessa vez não teve como ter nenhum tipo de estratagema, não teve carteirinhas proibidas, nada. O jogo aconteceu.
Sei que nada disso talvez tenha acontecido por uma postura de rebeldia, por pensar no povo que torce, que um desacordo entre clubes e Rede Globo por uns milhões a mais, permitiu que se abrisse esse precedente. Mas é um grande precedente na luta que virá pela frente.
Afinal, não são poucas as ameaças contra a liberdade de informação. São várias as tentativas de taxação.
Netflix, Youtube e todas as outras plataformas de streaming estão na mira do governo. Lutar contra o que esses clubes começaram a incomodar é uma tarefa inglória, mas pelo menos por enquanto, quero aqui comemorar.
Pelo menos por 90 minutos eu pude ver o monopólio perder. E isso fez meu sono muito mais tranqüilo.
Pelo menos ontem…
SAMBA FUTEBOL CLUBE
por Felipe Corvino
Como versa Dorival Caymmi em ‘Samba da Minha Terra‘: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou é doente do pé”. Não há como negar os versos do bom baiano, mas e quando a gente faz um samba do criolo doido misturando samba e futebol?
Aí não tem jeito, é gol de placa, de bicicleta, eternizada pelo diamante negro Leônidas da Silva. Nada mais justo que em pleno carnaval, o ritmo mais brasileiro de todos faça uma dupla infernal com o mais malemolente dos esportes, a nossa pelada. Futebol é nos outros países, aqui se chama futebol brasileiro, terreiro de inúmeros bambas da bola e do riscado.
Em época em que o carnaval virou negócio com direito a subcelebridades ganhando holofotes, camarotes VIP, monopólio da plim plim e o escambau, a festa do povo deixou de ter ares de manifestação cultural e de identificação da gente miúda com seu chão, ao menos em parte. Assim como vem acontecendo com o futebol, nossa religião politeísta, composta por deuses a perder a conta e a vista como Domingos da Guia, Evaristo de Macedo, Ademir Queixada e da Guia, Pelé e Garrincha, Nilton Santos e Heleno, Dinamite e Zico, Sócrates eFalcão, Edmundo e Gérson. Enfim, uma série de artistas circenses que faziam da pelota arte e musica, quadros mais belos e mais indecifráveis que a Monalisa de Da Vinci, merecedores de frequentar o Louvre.
E como o papo aqui é bola e samba, carnaval e festa, como não lembrar de episódios escalafobéticos envolvendo nossos boleiros com samba e bola nos pés?
Quem não recorda da história do baixinho Romário metendo uma péia no Real Madrid em 93 e pedindo pra ser substituído as 20 do segundo tempo pra ir pro carnaval do Rio? Ou do Edmundo e a famosa foto dele dando uma “biritis” a um macaco? Ou das histórias sobre o bailes de vermelho e preto da turma do Flamengo? Pois é, samba e futebol andam interligados desde que o samba é samba e que nosso pincel é a bola.
Pra dar liga ao time dos versos e prosa, do passe (passe sim, assistência é coisa de espectador, não de boleiro) e gol, vamos azeitar nosso meio campo pra armar a jogada pro 9 de oficio (no caso do baixinho Romário a eterna 11) fazer o êxtase da moçada metendo aquele golaço épico com sambasque fazem uma tabelinha digna de Pelé e Garrincha, deRomário e Bebeto em homenagem a época de carnaval. Como diria o Simas, a festa existe e se faz necessária pra aguentar a dureza da labuta e da viração do dia a dia. E nada melhor do que unir futebol e samba pra fazer um pagode de mesa digno dos batuques dos bambas.
Não dá pra começar a falar do riscado nessas mal traçadas sem falar do mestre Pixinguinha. Vascaíno de alma e talento incomparáveis, em 1919 compôs ‘1 x 0‘ em alusão a partida final entre Brasil e Uruguai no Sul Americano daquele ano. O choro remonta o ritmo da partida, que dizem estudiosos foi frenético, alucinante. O ritmo da peleja é musicada pelo mestre Pixinga em parceria com Benedito Lacerda e o título é em homenagem ao resultado final do certame: 1 a 0 pro Brasil gol de Friedenreich, aos 3 minutos da prorrogação.
Já que começamos com um vascaíno de corpo e alma, vamos ao maior rival do Gingante da Colina com o grandioso sambista e flamenguista doentio Wilson Batista. O Campista Wilson Batista, mudou-se para o Rio de Janeiro nos anos 20 com sua família e assim sua paixão pelo rubro negro atingiu níveis inimagináveis, acompanhando treinos e jogos de montão. Respirar o futebol o fez retratar a peleja em inúmeras composições suas como ‘Samba Rubro Negro‘, regravado posteriormente pelo ilustríssimo João Nogueira, e ‘O Juiz Apitou‘. Canção essa que retrata o desgosto sofrido devido a uma derrota para o Botafogo. Wilson também faz, em uma das suas letras, uma homenagem ao Vasco da Gama com a musica ‘No Boteco do José‘, interpretada por Linda Batista.
Fazendo uma tabelinha, a pelota é passada de Wilson para Moreira. Moreira da Silva, o Kid Morengueira, assim como Ary Barroso, flamenguista fervoroso. Moreira com toda sua irreverência e ar de malandro, lançou em 1968 um samba de breque que entorta qualquer beque inglês. Nesse caso, dá um drible daqueles no James Bond, o famoso 007, e de praxe ainda deixou o “Divino Crioulo” de beiços secos ao roubar-lhe a Claudia Cardinale, musa de filmes de Fellini e Sergio Leone. O samba ‘Morengueira Contra 007‘ é de um tremendo bom humor e trata do agente secreto Kid Morengueira salvando a pele do Pelé. Quando o agente da coroa britânica o vê cheio de intimidades com a musa italiana, Moreira dá um tabefe no “zero sete” e de quebra rouba-lhe a dama. Claudia confessa que só foi a Santos com o agente secreto pra sequestrar o 10 da seleção, mas com a intervenção do malandro Moreira, cai de amores pelo sambista tupiniquim. É ou não é a cara do Brasil? Como canta Moreira no breque do samba: “ O temperamento latino é fooooooogo!”
Botando a gorduchinha pra rodar o meio campo, passando de pé em pé, pra desnortear o adversário, do volante armador ao meia direita, chegamos ao camisa 10, aquele clássico, que nós como poucos produzimos aos montes. Mas nenhum como Chico Buarque, tricolor de peito aberto, de olhos cativantes e musicas primorosas. Chico, além de saber como poucos comover nossa alma romântica e amante, ama e serve o futebol. De suas letras formidáveis, tira da cartola tricolor como o gênio Cartola, um lance daqueles de fazer o marcador cair de bunda no chão. Mesmo quando o carrapato na marcação é um compadre de longa data como o rubro negro Cyro Monteiro. Em 1969, quando nasceu Silvia Buarque, primeira filha de Chico e Marieta Severo, Cyro Monteiro presenteou a petiz com uma camisa do Flamengo. Pronto, foi a senha pra que Chico versasse sobre o mimo do compadre e compusesse ‘Receita Pra Virar Casaca de Neném‘ A feita é uma resposta bem humoradíssima ao presente do amigo, e que conta como de um presente de grego rubro negro nascia uma tricolor com ardor como o pai, na época um sofredor torcedor do Fluminense.
Do camisa 10 tricolor pra Santos, a bola chega macia e com graça pra Luiz Américo fazer o domínio com seu clássico ‘Camisa 10‘. Santista que é, ficou órfão do 10 da Vila quando, assim como todos os amantes do esporte bretão, resolveu se aposentar da Seleção após a copa de 70. Apesar de Rivelino envergar a 10 do escrete canarinho, a coisa não ia lá muito bem e de forma satírica fez um samba caprichado e cheio de ironias pra criticar o time comandado pelo velho lobo Zagallo.
Num lançamento daqueles que o Gérson sabe fazer como poucos, a pelota chega na ponta esquerda e o Trio Gato Com Fome amacia a redonda no peito, acaricia ela com os pés e dá início a uma jogadaça com a musica ‘Derby‘ que retrata um clássico pelas bandas paulistas e que além de tudo, é uma final de campeonato. Coisa de craque! O único porém é que a pequena Helena, personagem do babado, na hora do replay do gol muda de canal. Aí não, Helena. É caso de polícia senhores, como é possível, na hora do replay do gol de empate aos 45 minutos e ainda por cima de bicicleta a presidente mudar o canal?!
Definitivamente, mulher pode tudo e mais um pouco, afinal são elas a razão da nossa existência. Bem, elas e o futebol. Se mexer com o futebol a casa cai e o siricotico tá armado. Olha o bafafá muito bem versado pela moçada:
Fui educado, fui comportado, fui delicado
Sofisticado como ela pediu
Dei boa noite, eu pedi licença
Eu sorri e agradeci
Tudo bem até ai
Peguei Helena, minha pequena, fui ao cinema
E a Vila Madalena pra curtir
Foi olho só pra ela
E nem pela janela, eu me distrai
Até a mim me surpreendi
E a nossa relação teve canção
E a única solicitação do pobrezinho aqui
Que respeitasse o meu domingo
E me deixasse o jogo assistir
Que o casamento ia sair
Mas foi num derby que meu time perde
Aos 45, uma jogada que saiu o gol
Num lance plástico, no fim do clássico
Meu time empatou e no replay ela mudou
Por falar em derby, vamos pra um clássico gigante e uma tabela de gênios, o corintiano Toquinho e o são paulino Carlinhos Vergueiro com ‘Camisa Molhada‘, primeira música de Vergueiro que trata do tema, e seus versos contém todos os ingredientes fundamentais de uma peleja: raça, árbitro vacilão, botecos, disputa acirrada, fé, rivalidade e bola na rede. Um golaço de placa da dupla. Vergueiro por sinal não fica só nesses versos sobre o riscado do campo. Tem um disco inteiro dedicado a arte suprema dos gramados com ‘Contra Ataque, Samba e Futebol’, que homenageia o gigante baixinho Romário, o galinho Zico e o craque são paulino Raí.
Depois de tantos passes primorosos, lançamentos escandalosamente perfeitos, matadas no peito e dribles infames chegamos a nossa dupla de ataque, e a bola é passada de Carlinhos Vergueiro para um dos mais fanáticos e ilustres torcedores do America (RJ), ninguém menos do que o mestre Monarco, que versa na música ‘America do Saudoso Lamartine‘, sobre o time Rubro e suas glórias e jogadores históricos que passaram por Campos Sales como Danilo, Saci de Irajá e de Carola, além de outro torcedor histórico do “diabo”, Lamartine Babo, o Lalá. Canta o saudoso tico tico no fubá, ataque formado por China, Maneco, César, Lima e Jorginho, que segundo outro ilustre americano, José Trajano, era um ataque mais poderoso que o do Real Madrid de Puskas e Di Stéfano. Esse gol nem o “Divino Crioulo” guardou.
Compondo nossa dupla de ataque, malandra e matreira, fechamos a jogada feita por uma equipe de astros com o mais escorregadio atacante: Dicró. Se Monarco é a elegância e o cérebro do ataque com a poesia perfeita do seu coração rubro cor de sangue, Dicró é o improviso definitivo, a malandragem na sua essência. O vascaíno Dicró com toda sua manha deixa pra trás uma lista infinita de craques, como bem versa no seu samba ‘O Bom de Bola‘, não tem pra Pelé nem Zico, Cruijffe Beckenbauer, Rivellino e Gersón, nem pro seu xará Carlos Roberto de Oliveira, o Roberto Dinamite, ali quem manja do riscado é ele. E com toda essa malemolência carioca e vascaína, guarda o gol mais bonito feito pelas bandas de cá. O gol definitivo do samba e futebol.
Bola passada de pé em pé, com classe, astúcia e inteligência, com gana e raça, do beque central ao ponta esquerda, passando pelo 10, como deveria ser sempre até chegar a dupla de ataque mortal e mortífera. Dicró sacramenta o gol sagrado das pelejas sambadas e dos golaços da pena.
GRITO DE GOL NO SAMBÓDROMO
por André Felipe de Lima
(Foto: Reprodução)
Tudo (ou quase tudo) começou com aquele célebre desfile do Salgueiro em 1971, com o samba-enredo “Festa para um rei negro”, que levantou o público na Avenida Presidente Vargas, local em que eram realizados os desfiles das escolas de samba antes da transferência da festa de Momo para a antiga Marques de Sapucaí, hoje mais conhecida pela alcunha de “Sambódromo”. O Salgueiro estava verdadeiramente espetacular. Um desfile revolucionário comandado pelo genial Arlindo Rodrigues, com a pincelada memorável de Maria Augusta, que buscou nas histórias de príncipes africanos que chegaram ao Brasil no período escravocrata a essência ideal para um enredo que apresentaria ao Carnaval carioca nomes que se tornariam lendas no universo do samba, como Joãosinho Trinta, Lícia Lacerda e Rosa Magalhães. Uma equipe de craques carnavalescos sob os cuidados do grande Fernando Pamplona.
Desfile do Salgueiro em 1971 (Foto: acervo O Globo)
O refrão salgueirense “O-lê-lê, ô-lá-lá / Pega no ganzê / Pega no ganzá” era entoado em uníssono. Um Carnaval de sonhos em vermelho e branco. Legal. Mas aí vem a pergunta dos leitores: mas o que, afinal, esse samba do Salgueiro tem a ver com futebol? Simplesmente tudo!
A partir daquele Carnaval, a arquibancada do Maracanã incorporou de vez o samba-enredo em dias de jogos. Felizes da vida torcidas do América, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco cantavam o samba salgueirense após gols ou vitórias de seus times. “Gol do Zico” e da geral e da arquibancada se ouvia imediatamente: “O-lê-lê, ô-lá-lá / Pega no ganzê / Pega no ganzá”. O mesmo se ouvia após os gols do Rivellino, do Jorginho Carvoeiro, do Edu Coimbra, do Paulo Cezar Caju, para sermos democráticos.
Desfile do Salgueiro (Foto: Rubens Seixas/O Globo)
Opa, mas e “Touradas em Madri”, marchinha cantada por Braguinha, que se ouviu durante a Copa do Mundo de 1950? Muitos questionarão, até com alguma dose de razão. Ali não teria sido, talvez, a primeira incursão do samba na arquibancada? Sim, justo. Mas no quesito samba-enredo, a nota “10” original ficou com o Salgueiro, em 1971.
VEJA O VÍDEO COM O SAMBA-ENREDO E IMAGENS DO DESFILE DO SALGUEIRO DE 1971: http://globotv.globo.com/rede-globo/carnaval-historico/v/salgueiro-sagra-se-campea-em-1971-com-festa-para-um-rei-negro/1196532/
Quando o assunto é “torcida”, logo vem à mente as marcas “Flamengo”, no futebol, e “Mangueira”, no samba. Falar em Flamengo é falar em massa. Falar em Mangueira, idem. Mas nem todo rubro-negro é verde e rosa, ou vice-versa. Escolas de samba e times populares nem sempre têm correlação em nossos corações. Eu, por exemplo, sou publicamente vascaíno e portelense, igualzinho ao meu ídolo Paulinho da Viola. Já o meu ídolo no futebol, Ademir Marques de Menezes, o “Queixada”, talvez sequer curtisse escolas de samba. Uma suposição arriscada que somente após uma vigorosa investigação biográfica poderia ser confirmada. Mas arrisco-me nesta pretensiosa tese inicial para o papo poder prosseguir.
No Rio de Janeiro, as escolas de samba — desde que emergiram no final dos anos de 1920 — assumiram um caminho independente ao do futebol, embora, em alguns (poucos) desfiles, reverenciando o esporte bretão ao longo de oito décadas. Ao contrário de São Paulo, que desde o surgimento de suas primeiras agremiações de samba, na década de 1930, viu a popularidade do futebol na cidade como um democrático e inclusivo estimulador carnavalesco.
Em 1933, a Frente Negra Brasileira criou a Taça “Arthur Friendenreich” — maior ídolo do futebol nos primeiros 30 anos do século XX — com o intuito de alavancar os cordões e ranchos de samba da cidade, fundamentalmente os de raízes africanas, que já existiam desde as primeiras décadas. Naqueles primeiros momentos da Taça “Friedenreich”, destacavam-se Vai-Vai, Cordão das Bahianas, Bloco Mocidade, Cordão da Barra Funda e Bloco do Boi.
Uma escola de samba propriamente dita na capital paulista só nasceria em 1935, com o surgimento da Primeira de São Paulo. Somente na década de 1990 o futebol volta a ocupar importante espaço no carnaval paulistano com a Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Gaviões da Fiel Torcida, uma agremiação formada por integrantes da maior torcida organizada do Corinthians. Em seguida, o maior rival do alvinegro nos gramados, o Palmeiras, também se viu representado na passarela do samba pela Mancha Verde, a maior facção de torcedores do alviverde. O carnaval de São Paulo não seria o mesmo após o ingresso de torcidas organizadas nos desfiles de escolas de samba. No Rio, como destaquei, ocorre o oposto.
Sempre houve reverência das escolas de samba ao futebol e a algumas de suas principais personagens, sejam clubes ou ídolos. Mas jamais houve uma tentativa franca das torcidas organizadas cariocas de criarem suas versões para a Marquês de Sapucaí, substituindo a bola e as chuteiras por pandeiros, tamborins e lantejoulas. Talvez apenas uma torcida dita organizada tenha cogitado tal possibilidade: a Raça Rubro-Negra. Mas a ideia não passou (literalmente) de um sonho de verão. E por falar em Flamengo, o clube mais popular é o que mais recebeu homenagens dos carnavalescos e sambistas cariocas até aqui.
Como esquecer do grande carnaval da Estácio de Sá em 1995, ano do centenário do Clube de Regatas Flamengo? O refrão impregnou o dia a dia na cidade: “Cobra coral/ Papagaio vintém/ Vesti rubro-negro/ Não tem pra ninguém”.
A escola de samba amargou, no entanto, um frustrante sétimo lugar, mas foi ovacionada pelo público. Nem todos torciam pela Estácio, mas, em comum, a paixão pelo Flamengo. Porém vascaínos, tricolores e botafoguenses também cantarolaram o samba-enredo composto por David Correa, Adilson Torres, Déo e Caruso. Ou seja, o samba estava acima do bem ou do mal. Há, no Rio, uma nítida separação de paixões. A clubística não interfere na sambista e por aí vai.
Semanas antes do desfile, a diretoria da Estácio de Sá aguardava um apoio prometido pelo então presidente do Flamengo, Kleber Leite, que recuou da oferta inicial e preferiu não mais misturar as coisas. Clube de futebol em um canto, escola de samba em outro. Cada um no seu papel social de alegrar as massas. Afinal, o Flamengo, no mês anterior ao Carnaval, investira os tubos para trazer Romário, maior ídolo mundial na ocasião. Desculpa melhor para não liberar a a grana para a Estácio impossível: “cofre liso, completamente vazio”.
Mas haveria uma resposta do maior rival do Flamengo. Em 1998, ano do centenário do Clube de Regatas Vasco da Gama, a escola de samba Unidos da Tijuca, cujo presidente “eterno”, o português e vascaíno Fernando Horta, teve como missão sair-se melhor que a Estácio em 95. Questão de honra que o então mandachuva do Vasco, Eurico Miranda, compartilhou. O Clássico dos Milhões saiu do Maracanã para o Sambódromo. Apesar do bom samba-enredo “De Gama a Vasco, a Epopéia da Tijuca” — até hoje cantado pela torcida nas arquibancadas —, o desfile da Unidos da Tijuca foi um fiasco, com a agremiação carnavalesca sendo rebaixada para o grupo de acesso. As piadas foram intermináveis, e aí incluídos tricolores e alvinegros a engrossarem o coro dos rubro-negros gozadores. De consolo para o Vasco, o título da Taça Libertadores da América e do Campeonato Carioca daquele ano. No gramado o Vasco estava quase imbatível. Já na passarela…
Maior campeã do Carnaval carioca das últimas décadas, a Beija-Flor de Nilópolis também já reverenciou o futebol. Isso aconteceu em 1986, ano em que a Argentina conquistou a segunda Copa do Mundo na história e a azul e branco despontou na avenida com o samba-enredo “O mundo é uma bola”. Foi, sem dúvida, o mais cantado naquele carnaval. Na voz de Neguinho da Beija-Flor, o refrão levantou a moçada na Sapucaí: “É milenar/ a invenção do futebol / fez o artista / ter um sonho triunfal”. Ao contrário da Estácio e da Unidos da Tijuca, a Beija-Flor saiu-se melhor, ficando em segundo lugar no desfile, atrás apenas da Mangueira, que rendeu homenagens ao Dorival Caymmi, com o enredo “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”.
Dois anos após o grande carnaval futebolístico da Beija-Flor, foi a vez de a União da Ilha do Governador, reconhecidamente uma das escolas de samba que mais empolgam o público nos desfiles, embarcar na onda da bola.
O enredo em homenagem a Ary Barroso, radialista, compositor e (sobre tudo e todos) rubro-negro desde aquele minuto antes do nada, fez o Sambódromo transformar-se em uma arquibancada do Flamengo, com destaque para a veterana e pioneira da genitália desnuda Enoli Lara como rainha da bateria e Renato Gaúcho no auge (digamos, em vários gramados). Ambos roubaram a cena juntos. Enoli, muito tempo depois, narrou detalhes do casal de foliões na passarela e… na cama. Mas o papo aqui é samba e “Aquarilha do Brasil” reproduziu com extrema competência uma das facetas mais populares de Ary Barroso durante as transmissões de rádio: sua eloqüente paixão pelo clube da Gávea. Quando saía gol do Mengão, o locutor levava à boca a sua famosa gaitinha e a tocava de forma ensurdecedora. O refrão da União da Ilha marcou época: “A gaitinha tocando/ É gol /a galera vibrando, Mengo!”.
O futebol somente voltaria a atrair a atenção de alguma escola de samba do Rio em 2002, quando a Unidos de Vila Isabel levou à passarela o enredo “O glorioso Nilton Santos… sua bola, sua vida, nossa Vila”. A escola pleiteava um retorno à divisão especial, contando com a “Enciclopédia” do futebol. Com o ídolo botafoguense Nilton Santos comandando o time no Sambódromo, a escola de samba ficou apenas um décimo atrás da Acadêmicos de Santa Cruz, a campeã. Por culpa de um jurado trapalhão, a Vila terminou fora da elite do Carnaval carioca no ano seguinte. O refrão do samba levantou, porém, a galera alvinegra: “Bate palma, bate-bola, bate junto bateria / Igualzinho ao Nilton Santos, toca com categoria / É o gingado da baiana, é futebol, samba no pé / A galera já delira, minha Vila ‘dando olé’”.
VEJA A REPORTAGEM DO ESPORTE ESPETACULAR SOBRE O CARNAVAL DO NILTON SANTOS: https://globoplay.globo.com/v/3179468/
O centenário do Fluminense, em 2002, por pouco não passou em branco na Sapucaí. Deixaram para homenagear o clube tricolor somente no carnaval do ano seguinte. Mesmo assim, uma lembrança que coube a Acadêmicos da Rocinha, que disputava o desfile no grupo de acesso A. Sem desmerecer a escola de samba da zona sul, o Fluminense merecia ser tema de enredo no grupo especial, como aconteceu com Flamengo e Vasco. Coube à Rocinha um 10º lugar, na frente apenas das rebaixadas Unidos da Ponte e Boi da Ilha. De bom naquele desfile somente o trepidante puxador Carlinhos de Pilares, morto em julho de 2005, uma das vozes mais empolgantes do carnaval carioca nas décadas de 1980 e de 90.
Dias após o tropeço da Rocinha, mas no desfile do grupo especial, a Tradição pegou carona no pentacampeonato mundial do Brasil, em 2002. A estrela do desfile foi, naturalmente, o atacante Ronaldo, que foi, inclusive, o motivo do enredo “O Brasil é Penta, R é 9 – O Fenômeno Iluminado”. Mas a bola da Tradição sequer bateu na trave. Simplesmente foi zunida para além das arquibancadas do Sambódromo. Na noite do desfile, o próprio Ronaldo fez forfait. Estava doente e deixou a turma da Tradição na mão. A escola de samba teve, porém, alguma dose de sorte. Ficou em 13º lugar e se livrou do rebaixamento, que coube à Acadêmicos de Santa Cruz. Ronaldo, aliás, seria novamente lembrado para um enredo de escola de samba, mas não no carnaval carioca. Sua história foi baixar em outro terreiro… de samba.
Os paulistanos da Gaviões da Fiel levaram para a avenida, em 2014, uma reverência ao ídolo, que encerrara a carreira no Timão, em 2011. Ao contrário do que aconteceu com o desfile da Tradição, Ronaldo prestigiou a Gaviões e foi, com a família a tiracolo, se esbaldar na passarela.
Ronaldo no desfile da Gaviões (Foto: reprodução)
No mesmo ano em que os corintianos saudaram Ronaldo, a Imperatriz Leopoldinense fez o mesmo no carnaval carioca, mas com outro ídolo: Zico.
O enredo “Arthur X: O Reino do Galinho de Ouro na Corte da Imperatriz” levantou a Sapucaí e foi prestigiado por vários craques das antigas e de todos os clubes que foram à passarela do samba dar um forte abraço no Galinho de Quintino. Como esquecer aquela parte do refrão que diz “Zico faz mais um pra gente ver!”? Eu, vascaíno, reconheço, não gosto de lembrar, mas admito: Zico foi um cracaço incomparável! Eis aí o grande barato do universo das escolas de samba, justamente essa harmonia festiva sem as paixões doentias que tomaram conta de nossas arquibancadas.
O futebol e, principalmente, seus torcedores precisam aprender um pouco com o mundo do samba. No mais, Evoé Momo!… e muita bola na rede para a gente soltar o grito gol!
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Os editores tentaram identificar os autores das imagens, mas não obtiveram sucesso. Caso o autor se manifeste, teremos o imenso prazer de citá-lo.
A BOLA E O RÁDIO, VICTOR HUGO MORALES
por Marcelo Mendez
“Marcelo, demitiram a Voz…”
Foi com essa frase me dita em janeiro de 2016 que meu amigo Ignácio Miguez, argentino, torcedor do Lanus, começou a me contar que Victor Hugo Morales havia sido demitido da Rádio Continental, a qual empunhava o microfone há 30 anos.
Vitima das pressões sofridas por um governo o qual sempre foi critico, o maior locutor do esporte argentino deixava seu posto. O azar é nosso, que perdemos um homem que é, sem dúvidas, uma das principais vozes do esporte sul-americano.
Dom Victor Hugo Morales é nosso convidado hoje em “A Bola e o Rádio”.
O COMEÇO
Morales é uruguaio nascido na cidade de Cardona em 1947. Começou sua vida de jornalista em 1966 como repórter na Rádio Colonia para depois, em 1969, virar diretor de esportes na Radio Ariel. De lá, saiu para fazer história na Oriental Rádio de Montevidéu e então permaneceu até 1981, quando cansou das perseguições políticas que sofria e se mudou definitivamente para a Argentina.
A CONSOLIDAÇÃO DO MITO
Parceiros na obra de arte contra os ingleses em 1986
No novo país, Morales começou a vida na Radio Argentina e em 1987 foi para a Rádio Continental onde permaneceu até a sua demissão em Janeiro de 2016. Foram muitos momentos épicos por lá, mas não dá mais para falar de Victor Hugo na Argentina sem falar do gol de Maradona contra os Ingleses em 1986.
Assim como não dá para falar de Maradona sem falar de Victor Hugo…
“A Bola e o Rádio” de hoje vai prestar essa homenagem ao classudo Mestre com a narração desse gol de 1986, sem dúvidas uma das maiores narrações de todos os tempos. Segue, então…
“Barrilete cósmico de que planeta veniste?!?!!?”