A JOIA ESTÁ PRONTA
por Serginho 5Bocas
Entendo quando escuto gente do ramo, com seus ternos bem cortados, falando para muitos na televisão, que ele ainda é um menino, que podem queimar uma carreira promissora, que é muita pressão sobre os seus ombros e que talvez nem seja essa coca-cola toda, é compreensível. Ou estão sendo corporativistas e querem defender o prodígio colega de profissão de um insucesso futuro, mais certo de ocorrer do que o sucesso, ou são míopes e não enxergam a meio palmo de seus narizes. É uma savana de pensamentos!
Do treinador atual, coitado, tão acostumado aos Copetes e Berríos de sua vida futebolística, de seu país tradicional mediano no cenário internacional do futebol, dos esquemas altamente defensivos, baseado na retranca e contra ataques, que carrega colado nos imãs de sua surrada prancheta que leva para onde quer que vá, também entendo.
Também é razoável ouvir, dos torcedores dos clubes rivais, as críticas antecipadas, de quem torce para não dar certo, último suspiro de uma tragédia anunciada que deve ocorrer no próximo estadual, quando o enfrentarão, provavelmente já como titular e certamente vão sofrer com suas arrancadas fulminantes.
O que não posso aceitar é ouvir dos próprios rubro negros, tão carentes de ídolos, se curvar aos laticínios transloucados e desesperados, derrotistas quanto ao futuro desse menino.
Já foi! Já é, mermão!
O menino Vinicius é diferente, pois então vejam só quando ele entra no decorrer dos jogos, como o clima muda.
Se dê conta de como você já torce para que a bola chegue logo aos seus pés.
Repare na velocidade já superior aos adultos, na verticalidade incomum nesse monte de Armandinho de toquinhos para o lado, na facilidade de antever jogadas e de construí-las mentalmente para servir aos companheiros e de se servir.
Reparem na ginga de corpo e na habilidade, olhem como mesmo sendo tão jovem, já é tão superior aos outros atacantes de seu time.
Quarta à noite, um cego ao meu lado, tomando uma cerveja e escutando o jogo pela voz alta do narrador, roía suas unhas rubro negras de tensão pelo placar adverso que ainda seria igualado, mas também de esperança, pela certeza mediúnica de que, com o menino que acabara de entrar, as coisas iriam melhorar e o melhor ainda estava por vir.
No Real Madrid não tem bobo, aqui temos, muitos!
Aqui acham que os 61 milhões de euros foram muito, então tá.
Tite! Leva ele ano que vem, o futebol agradece e Telê, seu ídolo, o abençoará.
Eu torço, pois o menino estará mais do que pronto, o tempo dirá.
Valeu, Vinícius!
GERD MÜLLER, O MAIOR ARTILHEIRO QUE A ALEMANHA PRODUZIU
por André Felipe de Lima
Hoje é aniversário de Gerhard “Gerd” Müller, indiscutivelmente o melhor centroavante da história do futebol alemão e certamente um dos maiores que o futebol mundial já conheceu. Ele nasceu em Nördlingen, no dia 3 de novembro de 1945. Com suas famosas pernas curtas, seus dribles curtos e agilidade incomuns, marcou muitos gols que levaram a antiga Alemanha Ocidental ao título da Copa do Mundo de 1974. Era tão rápido dentro da área, que passaram a chamá-lo de caubói, ou seja, rápido no gatilho e com tiro (ao gol) certeiro. Müller era infalível. Dizia que preferia chutar rasteiro para dificultar a vida dos goleiros. Dava certo. Tanto funcionava, que o craque tornou-se o maior artilheiro do campeonato alemão, do qual foi campeão quatro vezes, sempre com o Bayern de Munique. Em uma única edição da Bundesliga, a de 1971/72, ele assinalou 40 gols. Em sete campeonatos nacionais, Müller foi o artilheiro. Com a camisa do Bayern, marcou 567 gols em 607 jogos. Ao longo da carreira, defendendo além do Bayern, a seleção alemã, o TSV 1861 Nördlingen e o americano Strikers de Fort Lauderdale, marcou 658 gols em 716 partidas. Simplesmente extraordinário.
“Tudo que o Bayern se tornou se deve ao Gerd Müller e aos seus gols. Se não fosse por ele, ainda estaríamos em uma velha cabana de madeira”, declarou Franz Beckenbauer, maior jogador da história da Alemanha e companheiro no Bayern e na seleção. Na mesma linha, outro colega de Bayern e de seleção, Paul Breitner destaca a relevância histórica de Müller para o futebol germânico. “Gerd Müller é o mais importante e maior futebolista que a Alemanha revelou após 1954 [ano da primeira Copa do Mundo conquistada pelo país]. Gerd Müller é o Bayern, Gerd Müller é a seleção alemã. Ou o contrário: o Bayern e a seleção nacional se tornaram o que são hoje graças ao Gerd Müller, porque foi ele quem trouxe os troféus e os títulos. Ninguém mais.”
Breitner alega que com Müller as coisas sempre ficavam mais fáceis. O time já entrava em campo confiante porque não havia dúvida de que o gol decisivo viria dos pés do artilheiro. Se fossem necessários dois ou mais gols, sem problemas, bola no Müller que ele resolvia. “Com Gerd Müller no seu time, você não precisa de sistema tático. Tínhamos a nossa estrutura. Mas podíamos jogar com o nosso sistema perfeitamente, mas sem ele não ajudaria. Para ter sucesso, precisávamos do Gerd Müller. E nós o tínhamos”, afirmou Breitner.
Quando deixou o futebol em 1982, Gerd Müller decidiu inaugurar um bar na Flórida. Um infortúnio representava o negócio. Alcoólatra, o ex-artilheiro bebia mais que vendia. A doença fez com que perdesse tudo, sobretudo o dinheiro e a esposa. Em 1991, após realizar um teste Gamma GT, o fígado registrou temerárias 2400 unidades de medida, quando o recomendável é entre 10 e 70. Müller foi internado e teve o tratamento pago por Beckenbauer. Em troca pela ajuda e carinho do amigo, que também o indicara para treinar as divisões de base do Bayern, Müller abandonou definitivamente a bebida.
Embora livre do álcool, o grande ídolo do futebol alemão encararia outro drama: o Alzheimer, diagnosticado em 2015. “Gerd Müller é um dos gigantes do futebol. Sem os gols dele, o Bayern e o futebol alemão não poderiam estar onde estão hoje. Apesar de todo o sucesso, ele sempre foi um cara modesto, o que sempre me impressionou. Foi um ótimo jogador e amigo. Trouxe experiência como treinador e ajudou a criar campeões mundiais como Phillip Lahm, Schweinsteiger e Müller”, disse Karl-Heinz Rummenigge, outro gigante da história do Bayern e do futebol alemão.
Gerd Müller hoje sofre com a saúde debilitada, mas deixou muitos ensinamentos para os que um dia desejam ser goleador implacável como ele foi um dia: “Como artilheiro, você precisa saber onde está a meta. E eu sabia disso”. Gerd Müller foi genial.
ARTILHARIA PESADA
por Sergio Pugliese
O folclórico Perácio guardava ótimas lembranças de sua última viagem de navio. Afinal, após belas apresentações pelo Botafogo estava entre os selecionados pelo técnico Adhemar Pimenta para representar a seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938, na França. Logo na estreia deixou o seu nos 6 x 5 contra a Polônia, mas assim como os parceiros de equipe preocupava-se com o prenúncio de uma nova guerra. Na competição, os italianos jogaram de uniforme negro, cor oficial do fascismo, e os alemães usaram a suástica como escudo. Que medo!!! No retorno, mesmo amargando o terceiro lugar, o craque sentiu um baita alívio ao pisar em solo brasileiro.
– O que ele nunca imaginou era que alguns anos depois fosse convocado pelo Exército e acabasse jogando pelada em plena Segunda Guerra Mundial, na Itália – contou Léo Christiano, responsável pela organização e edição fac-similar dos 34 números do Cruzeiro do Sul, jornal bissemanal rodado numa gráfica em Florença e publicado, entre janeiro e maio de 1945, pela tropa do quartel-general da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para manter nossos 25 mil pracinhas atualizados no “front” italiano.
Foto | Arquivo
Mas, reza a lenda, Perácio tentou fugir. No porto, a poucos metros da entrada do navio, bateu aquele desespero e ele agiu como se tivesse ouvido a tradicional ordem militar “meia volta, volver”, e sumiu do mapa. A tropa só estava acostumada a vê-lo correr assim nos gramados quando foi peça decisiva no tricampeonato do Mengão, na década de 1940. No segundo título, em 1943, marcou três na goleada sobre o Bangu e entrou definitivamente no coração dos rubro-negros junto com Jurandir, Quirino, Newton, Domingos da Guia, Jaime, Nandinho, Vevê, Zizinho, Biguá e Pirilo. Mas apesar de viver o auge da popularidade, o mineiro de Nova Lima não escapou da marcação cerrada do Exército, foi agarrado logo depois e partiu rumo à incerteza da guerra.
– Pelo menos estava bem acompanhado, num navio recheado de craques – brincou Léo Christiano.
E com tantas feras reunidas, lógico, rolou pelada! Eram vários profissionais, o meia Geninho e o zagueiro Walter Fazzoni, ambos do Botafogo, o goleiro Bráulio, do Atlético (MG), Bidon, centroavante do Madureira, Careca do Fluminense, e Alvanilo, da Ponte Preta, além dos amadores Dunga e Mato Grosso, do Botafogo, Labatut, do Olaria, Juvencio, do Cocotá, Walter, do Ideal, Timbira, do Bonsucesso, Pasquera, do Parque da Mooca, D´Avila e Soares. Juntos, formaram o imbatível time da Quinta Artilharia, sempre mesclado com um francês e quatro americanos, do exército aliado. Juntos, participaram de várias peladas e do Campeonato do Mediterrâneo.
– Esses jogos tinham grande destaque no jornal – disse Léo.
E a penúltima edição do Cruzeiro do Sul foi histórica! Além de noticiar as mortes de Adolf Hitler e Benito Mussolini, também destacou o jogo de Perácio & Cia contra o combinado inglês, RAF (Real Força Aérea) e Marinha. O primeiro tempo terminou 1 x 1, gol de Geninho, mas no segundo Perácio guardou dois e Bidon e Walter fecharam o placar em 5 x 3. Perácio não pode comemorar no Café Nice e na Assirio, como fazia após os títulos do Mengão.
– Esse jogo foi praticamente uma comemoração pelo fim da guerra – comentou Léo.
Dias depois, a Força Expedicionária Brasileira, comandada pelo marechal Mascarenhas de Moraes, aprisionou dois generais, a 148ª Divisão de Infantaria alemã inteira e mais a italiana, totalizando 20 mil inimigos prestes a invadir fronteiras francesas. Gloriosa conquista! Alguns desses guerreiros desfilaram ontem no Dia da Independência. Nos navios que os trouxeram de volta, muita festa, lágrimas, fardas e bolas. O nazifascismo estava derrotado e alguns anos depois o feito seria simbolizado no belo Memorial aos Heróis da FEB, no Aterro do Flamengo. Na chegada, histeria! Perácio novamente disparou pelo porto, mas dessa vez não era medo, mas felicidade. Toda a tropa o acompanhou.
FRAGMENTOS
por Claudio Lovato
Você já ouviu a expressão “a vida inteira de repente passou como um filme…” Claro que já.
Só que com ele não foi bem assim. Não foi como um filme. Acho que nunca é.
Foram fragmentos.
O sorriso do pai cada vez que ele contava o que fez no jogo, e os conselhos do pai, e depois a morte do pai, para nunca mais, a devastadora e insolúvel morte do pai.
E a saída casa aos 16 anos, e o drama da mãe arrumando a mala dele, e a cama no quarto do alojamento sob a arquibancada do velho estádio. Quanta solidão e quanta expectativa e quanto desamparo e quanta saudade cabem numa cama de alojamento debaixo de uma arquibancada de estádio velho?
E a primeira vez em que ele e ela saíram juntos, e o primeiro filho, que viria exatos dois anos e três meses depois, e as mudanças, e as trocas de cidade, e o primeiro clube grande, e a interminável paciência dela com ele, a força dela, a presença dela, firme e forte, sempre.
E o telefonema do irmão mais velho, uma despedida que ele só foi entender que era uma despedida quando já era tarde demais para dizer a ele tudo o que queria dizer, e nunca conseguiu.
E a filha que veio num momento em que ele achava que a vida não valia mais grande coisa, quanto engano; quanta vida aquela criança lhe trouxe.
Fragmentos.
Em um segundo? Dois? Três? Não dá para dizer, não dá para contar, porque não é como um filme. Não é assim. Pelo menos não para ele, aqui, agora, com a bola colocada na marca do pênalti, com o goleiro batendo palmas diante dele, gritando que ele vai se foder, só vai, que essa bola é dele, do goleiro.
E os dedos amarelos do avô, e o sorriso amarelo do avô, e as palavras de encorajamento do avô, uma forma completa e irretocável que Deus arranjou para lhe explicar, cedo na vida, o que era amor, mas que ele só foi entender mais tarde, bem mais tarde.
E o filho, e a filha, e a mulher, sua família agora, a forma como Deus, ou que nome se queira dar, encontrou para lhe dizer que ele – pai, marido, jogador, ser humano – era importante do jeito mais completo e perfeito que alguém pode ser: dando felicidade a outros.
E então o árbitro apita, e há um silêncio que só ele consegue ouvir no estádio lotado, e é a última chance que aquele time tem de conseguir ganhar o primeiro título nacional que disputa em sua longa existência, e então ele respira fundo e esvazia os pulmões e puxa o ar outra vez e corre para a bola sem soltar o ar e bate nela do jeito que tinha que fazer, exatamente como havia se proposto a fazer, e o resultado daquele chute é exatamente aquele que eu e você queríamos (queremos), porque não se pode admitir outra maneira de este novo fragmento chegar ao fim – e se eternizar.
ÍDOLO PERÁCIO FARIA 100 ANOS
por André Felipe de Lima
“O Perácio foi um dos maiores atacantes de todos os tempos do futebol brasileiro”. Como discordar de João Saldanha, o autor da frase? Perácio foi, sim, um dos melhores atacantes do seu tempo e titular da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1938, na França, quando o nosso escrete conseguiu um honroso e memorável terceiro lugar. “Meia-armador e ponta-de-lança ao mesmo tempo e dono de um dos maiores e mais poderosos chutes. Certos goleiros se abaixavam quando era de perto o negócio. Um dos monstros sagrados do futebol brasileiro de fins da década de 30 e da de 40”, completou Saldanha, que estava coberto de razão. Perácio, que tinha um dos chutes mais violentos já emanados por aqui, era parrudo. Tinha cerca de 1 metro e 80 de altura. Dividir bola com ele ou ficar diante de um pelotaço que desferia era derrota na certa.
Que o diga Planicka, lendário goleiro da antiga Tcheco-Eslováquia, um dos melhores da história, que encarou Perácio em um embate na Copa de 38. Deu-se mal, obviamente. Após uma trombada com o craque brasileiro, Planicka perdeu o rumo e chocou-se contra a trave. Resultado: clavícula deslocada.
O cartunista Ziraldo, que teve Perácio como um dos seus ídolos de infância, sempre acreditou que o goleiro tcheco morrera no lance. O fato impressionara o menino Ziraldo, que ao descobrir ser Perácio mineiro igual a ele, assumiu-se um apaixonado torcedor do Flamengo.
Perácio era tão carismático que cativava uma legião de torcedores até mesmo dos rivais do Botafogo e do Flamengo, times em que brilhou no futebol carioca. Além do poderoso chute, o meia-esquerda tinha uma velocidade impressionante. Com a bola dominada ainda na área do time que defendia, partia rumo ao gol adversário com uma fúria igual a de um touro das sangrentas corridas nas ruas de Sevilha. Essa característica singular do craque estimulou uma reflexão em Saldanha, para quem Perácio era a figura exemplar de uma nova etapa do futebol que se construía na década de 1930: a do profissionalismo, na qual, explicava o João “Sem medo”, o jogador não se resumia simplesmente a um mero futebolista, mas a algo muito mais sofisticado: “Um futebolista e atleta, formado em toda a extensão”. E Saldanha completara o raciocínio: caso um jogador do período amador ousasse uma carreira como as que praticava o Perácio, cairia morto de cansaço. Perácio cansava também, mas bem menos. Tinha força e fôlego de sobras.
Perácio era analfabeto. Ou quase isso. Recebia cartas de torcedores e torcedoras apaixonadas, mas quem as respondia para ele eram os companheiros. Foi assim no Botafogo e no Flamengo. Seu bom humor era contagiante. Protagonizou várias histórias das mais engraçadas do anedotário do futebol brasileiro. Algumas realmente aconteceram, outras, porém, não. Cabia a crônica esportiva inventá-las. Perácio ria das histórias que narravam sobre ele e, para não contrariá-los, confirmava todas.
Uma delas, e essa dizem ser realmente verídica, nasceu da vaidade de Perácio, que se deliciava com as vozes dos locutores gritando “Gooool do Perácio!”. Era dia de mais um jogo no qual o artilheiro sabia que faria gols.
O goleador gostava de carros do ano. Teve a “brilhante” ideia de municiá-lo com um rádio possante para ouvir o grito do locutor. Não haveria nada demais na situação se ela não fosse para lá de surreal. Ora, Perácio estacionara o carro perto do estádio e deixara o rádio no volume máximo na esperança de que, de dentro do campo, pudesse ouvir a narração trepidante do gol que viesse a marcar. Balançou a rede mais de uma vez, e nada de ouvir o grito do locutor. Perácio estava inconformado e lamentou para um companheiro de time: “Não adianta. Comprei o rádio errado”.
Outra famosa história ocorreu com Martin Silveira, volante da Seleção Brasileira nas Copas de 34 e de 38 e companheiro do Perácio no Botafogo. Dirigindo seu possante, o goleador virou-se para o Silveira, que o acompanhava, e disse: “Tenho de botar gasolina”. Pararam no primeiro posto que encontraram pelo caminho. Enquanto o frentista enchia o tanque, Perácio, na maior calma zen, tirou um cigarro do maço guardado no bolso, acendeu-o e jogou no chão o fósforo ainda aceso e bem próximo do combustível.
Martin Silveira quase foi à loucura e, aos berros, chamava o Perácio de irresponsável e de outras coisas impublicáveis, naturalmente. Perácio manteve-se sereno diante da revolta do já descabelado amigo: “Por que esse ataque?”, indagou Perácio. “Onde já se viu riscar fósforo num posto de gasolina?”, rebateu o raivoso Martin Silveira. A resposta do Perácio foi mais insólita que a situação em si: “Desculpe, Martin. Eu não sabia que você era tão supersticioso.”
Embora jamais tenha sido campeão com o Botafogo, Perácio gozava de muito prestígio, especialmente entre os cartolas do clube, que sabiam da paixão do jogador pelos carrões da época, sobretudo as conhecidas “baratinhas”, modelo esporte que encantava nas corridas automobilísticas conhecidas como “Circuito da Gávea”, que fez muito sucesso no Rio entre os anos de 1930 e 1940. Diz a lenda que Perácio queria uma daquelas “baratinhas”. Teria pedido-a aos dirigentes do Botafogo. Isso por volta de 1939. O mimo pesaria no bolso do clube, mas valeria à pena presentear Perácio, porém com uma condição: que ele garantisse a vitória do time contra o rival Flamengo. Não deu outra: Botafogo 3 a 2, em São Januário. Dois gols do Perácio e o carro na garagem. Se a história da “baratinha” é mito, não se sabe, mas os gols do Perácio contra o Flamengo foram bastante verossímeis.
Um dos maiores ídolos do nosso futebol, Perácio faria 100 anos nesta quinta-feira, 2 de novembro. Batizado José Ferreira Lemos, o craque do passado nasceu em 1917, na mineira Nova Lima. Lá mesmo, na terra natal, começou a jogar bola e tornou-se um dos principais nomes do fortíssimo Villa Nova, que desbancara o antigo Palestra Itália [hoje Cruzeiro], Atlético e América. Perácio e os seus inúmeros gols foram decisivos para o alvirrubro conquistar um estupendo tricampeonato estadual em 1933,34 e 35.
Ficara famoso. Tão famoso que o rival Palestra Itália o levou para Belo Horizonte. Permaneceu pouco tempo por lá. Seguiu para o Fluminense, mas sequer conseguiu mostrar no cube do bairro das Laranjeiras que haviam contratado um craque. O destino de Perácio seria outro bairro carioca.
No Botafogo, aí sim, Perácio começou a se tornar popular. E como. Chegou ao alvinegro de General Severiano em 1937 deixando o Botafogo somente em 1940, quando se transferiu para o Canto do Rio antes de seguir para o Flamengo, clube com o qual, enfim, voltaria a ser campeão. Saiu do Botafogo bastante magoado com os dirigentes alvinegros, especialmente João Lira Filho. Acusava-o de tê-lo perseguido e vendido seu passe por uma ninharia para um clube pequeno. “Então, eu que já não escondia o meu entusiasmo por Perácio, pedi sua contratação, tratando de adaptá-lo ao novo sistema. Largado às feras, no Canto do Rio, não foi difícil a realização do negócio. Os resultados foram melhores do que se esperava. Em pouco tempo, Perácio se tornaria o ídolo da equipe com suas fintas alucinantes, seus rushs irresistíveis e seus petardos indefensáveis”, disse Flávio Costa, técnico do Flamengo de então.
No clube da Gávea, Perácio viveu, talvez, os momentos mais bacanas na carreira. Ao lado de uma legião de craques, entre os quais se destacam Domingos da Guia, Pirillo, Zizinho, Biguá, Modesto Bria, Jayme de Almeida e Vevé, o artilheiro ajudou ao Flamengo na conquista do seu primeiro tricampeonato carioca, em 1942, 43 e 44. Perácio poderia ter sido ainda mais valioso para o Flamengo quando lá esteve não fosse a Segunda Guerra Mundial. O craque foi convocado na reta final do campeonato de 44 para integrar a Força Expedicionária Brasileira em front de batalhas na Itália.
Encerrou sua carreira no Canto do Rio, onde jogou até 1951. O alegre e carismático Perácio trocou o Rio por São Paulo, onde passou a trabalhar como motorista de lotação. Anos depois chegou a manter um restaurante na Praia Grande, em Santos, e uma pequena fazenda em Uberaba. Nos últimos anos de vida, era funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Perácio, que na reta final da vida morava na rua Farani, nº 3, em Botafogo, morreu no Hospital dos Servidores Público do Rio, no dia 10 de março de 1977, após sofrer durante um ano com um câncer no pulmão. Estava casado há apenas alguns meses com Wanda e tinha quatro irmãs: Raimunda, Malvina, Efigênia e Lídia. “Ele era capaz de tirar a camisa do corpo para ajudar alguém. Sua casa sempre foi aberta aos amigos, a quem emprestava tudo o que tinha, até o que não podia”, recordara Efigênia.
O craque era uma alma realmente generosa e feliz. Fez da alegria marca registrada desde a infância, período em que dava muito trabalho aos pais. Era um menino levado. Uma vez, levou uma surra homérica porque abrira a gaiola do viveiro de pássaros do pai. Para cada vidraça quebrada da janela dos vizinhos, a mãe o obrigava ir à rua vestido com uma camisola. Os amigos faziam troça dele. “Naquele tempo somente duas coisas me fascinavam verdadeiramente: ir ao cinema e quebrar vidraças”, dizia sempre com um largo sorriso no rosto. Vê-lo sisudo era um fato raro.
Como escreveu o jornalista Márcio Guedes, quem o conhecia, não tinha dúvidas: Perácio era mesmo a alegria em pessoa. Se o abordavam sobre as histórias que dele contavam, soltava uma sonora gargalhada e confirmava todas, mesmo as inventadas. Para ele, a vida só tinha sentido com bom humor. Perácio, como diz um título de uma reportagem sobre ele, era a “Criança grande do futebol brasileiro”.
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A biografia completa do Perácio consta da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, cujos dois primeiros volumes (letras “A” e “B”) serão lançados em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.