ODE A NILSINHO, O 10 QUE DESAFIOU A MESMICE
por Marcelo Mendez
(Foto: Reprodução Cenas Lamentáveis)
O exercício do cronista ludopédico que vai a várzea todos os domingos de manhã é um ato de fé.
Muito mais que obrigação ou trabalho, minha atuação no relato do que acontece nesses campos de terra é um compromisso firmado com o encanto, com o lirismo, com tudo que há de mais intrínseco na poesia, na luta que há de sol a sol protagonizada por esses homens suados e suas chuteiras coloridas.
Para além da razão e do que pode haver óbvio, o futebol de várzea á uma privação de sentidos em prol da catarse. A várzea é plena.
Dentre toda essa plenitude, seus sentimentos não escapam incólume a premissa que narrei. Ela pode ser triste, muito triste. Pois senão, vejamos…
O futebol de várzea é o universo do Quase. O quase jogador, o quase profissional o quase que tinha tudo para dar certo, mas que não se firma por contingências da vida, por fatos que sufocam a alegria. Daí então, temos o ocaso do menino que, em qualquer outra situação se dá com mais viver, mas na várzea não:
Ela acolhe o menino de 20 e poucos anos que está “velho” para ser jogador profissional. No mundo dos homens, um rapaz no esplendor de sua vida, com toda a vitalidade de seus sonhos está velho demais para sonhar. Tiram-lhe, portanto, o que é o principal combustível do homem; o sonho.
Esses meninos que não teriam mais nada para fazer na vida têm na várzea a resistência do encanto. Ela vai perpetuar seu sonho, ou como diria o grande compositor Paulo Vanzolini em sua imortal música “Bandeira de Guerra”, ela vai garantir o seu “Direito de ser Gente”.
Vendo a final da Copa Lourencini em Mauá, me deparei com um caso desses. É a história de Nilsinho que contamos aqui…
O match seria entre Hélida e Santa Rosa e teve toda a pompa possível; Fogos, imprensa, árbitra FIFA, Hino Nacional, papel picado, prefeito na beira do campo e estádio do Itapeva lotado. Alheio a tudo isso observei Nilsinho.
Nilsinho tem 34 anos. O vejo jogar pela várzea de Mauá há muito tempo. Com sua companheira camisa 10, o meia sempre foi muito bem. Rápido, habilidoso, inteligente, cerebral, Nilsinho joga futebol da mesma forma que um Spalla cuida de uma orquestra sinfônica empunhando seu violino.
Elegante com a bola nos pés, classudo, imperial em suas passadas, Nilsinho se destaca pela beleza de seu bom futebol. Não se sabe bem o motivo, mas dessa vez ela não usava a 10. Sua camisa era 19 e então ele começou no banco de reservas de uma partida dura, brigada, bastante pegada. Viu dali seu time, o Santa Rosa, sair perdendo para o bom time do Hélida e as coisas estavam difíceis, até o momento que seu técnico o chamou…
Entrou em campo e trouxe a paz do meu sorriso.
Tirou de seu time a pressa, fez a bola correr no chão e fez o que faz de melhor; Pensou. Botou seus meias para jogar, ajudou seu volante marcar e criou a possibilidade do empate marcado por Camisinha. Seguiu bailando no Itapeva e em uma bola que veio a seu encontro, Nilsinho decidiu que se faria grande naquele campo. Sem pressa, sem ficar afoito, levantou sua cabeça, ajeitou seu corpo e de fora da área acertou um chute no ângulo.
Gol do Santa Rosa! O time ainda faria o terceiro de pênalti, mas pouco se viu disso.
A história foi feita ali por um homem que ousou desafiar a mesmice. Em um tempo onde o mundo cobra dureza e truculência, Nilsinho ousou ser Poeta. Quis ser lúdico, quis ser belo, jogou para o titulo de seu time e pela manutenção do sonho. Impossível não te louvar por isso, craque.
Amém Nilsinho, amém…
A SÍNDROME DE 81
por Iran Damasceno
O que pode ocorrer com um povo altamente miscigenado, onde várias raças e culturas se encontraram e formaram uma nação? Tudo, ainda mais em um país que escolheu, em dado momento, algo para amparar as suas angústias, para extravasar suas emoções, para despertar no outro certa indignação (por vezes ódio, infelizmente) e assim nos manter estagnados na paixão ou então caminhantes sem freio a caminho de conquistas que, por vezes, não nos enriquece em nada.
Obviamente que estamos falando do futebol e especificamente do Flamengo, clube de massa e aceito por mais de 40 milhões de brasileiros. Muitos títulos foram conquistados, muitos craques por lá passaram, tendo como seu maior ídolo o “Galinho de Quintino”, o popular e sensacional Zico. Entretanto, como se trata de um clube de futebol brasileiro, ele está, rigorosamente, na linha de fogo das más administrações e isto faz dele uma incoerência diante do seu potencial. Pois é, muitos títulos, todavia alguns outros clubes possuem mais conquistas que o rubro-negro e não são reconhecidos da mesma maneira e magnitude, o que pode nos levar a pensar em culturas populares, num dos estados mais populares e “leves” do Brasil, que é o Rio de Janeiro.
É, o Carioca é diferente mesmo. Mas, aconselhamentos não faltam ao “mais querido do Brasil” para que ele se torne, realmente, um clube de ponta: estamos falando da Comunicação e do Marketing, segundo alguns especialistas. Para alguns, o Flamengo se comunica mal por causa, principalmente, da sua subserviência em relação à sua torcida e aos patrocinadores, pecando assim, também, na forma como utiliza suas estratégias com a ferramenta Marketing.
Temos encontrado debates sobre a sobrevivência (?) do clube estar atrelada, antiga e arcaicamente, ao titulo solitário de 1981, que foi o mundial. Não é nenhum desmerecimento ao titulo, apenas achamos pouco para um clube que, segundo pesquisas internacionais, poderia ser uma marca mais forte que muitas da própria Europa.
Vale ressaltar que qualquer debate é logo jogado no túnel do tempo e remetido a 81, quando não, vem a velha e falida ideia de que seu maior “rival”, o Vasco da Gama, é o maior vice. O que nos espanta é saber que a concepção da junção das raças e culturas, em certos momentos, se limita a discorrer somente sobre o período em que levantam algum “caneco” e aí logo os seus adversários mais atentos vêm com fatos que podem ser transformados em argumentos convincentes, por exemplo, o que é sobre o “maior clube do mundo”, somente na década de 2000 ter conseguido construir um centro de treinamento.
Os mais “sacanas” chegam a compará-lo ao surgimento do empreendimento de postos de conveniência no Brasil, mais ou menos na década de 1990, quando nos EUA já existia há passados 50 anos. É uma forma de zoarem… Pois é, para os adversários mais vorazes toda a unanimidade é burra, lembrando ao ilustre tricolor Nelson Rodrigues, porém não podemos negar que a paixão do seu torcedor é algo de arrepiar. E então, vamos sair de 1981?
Jorginho
BOLA PRA FRENTE
entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Mendonça | vídeo e fotos: Daniel Planel
Com um currículo invejável para qualquer jogador do planeta, ninguém duvida que o lateral Jorginho tenha sido um craque dentro das quatro linhas. Campeão mundial, brasileiro, carioca, alemão e até japonês, o vitorioso ex-jogador também se destaca fora dos campos, gerenciando o Instituto Bola Pra Frente, em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro.
Nascido e criado na comunidade que cerca o projeto social, o craque revelou que muitos dos seus amigos se perderam no mundo do tráfico e esse foi um dos grandes motivos para a fundação do instituto.
– Aprendi a jogar bola aqui em Guadalupe. Cheguei de Cascadura com oito anos, vi todo o crescimento da criminalidade e reparei toda a necessidade dos moradores daqui! disse Jorginho, para logo em seguida citar Catanha, seu segundo pai e “um cara que ajudava muito as pessoas”.
De acordo com o ex-lateral, Antônio Carlos, o Catanha, foi um dos maiores responsáveis pela sua formação pessoal e profissional. Quando Jorginho perdeu o pai, com apenas dez anos de idade, foi ele quem adotou e passou grandes valores ao menino que se tornaria campeão mundial 20 anos depois.
O fato a se lamentar é que a convivência com Catanha durou pouquíssimo tempo, mas o suficiente para se tornar uma das pessoas mais importantes na vida do craque. Aos 13 anos, Jorginho recebeu a notícia de que Catanha havia sido atropelado na Avenida Brasil.
– Ele me ajudou muito a lutar pelos meus objetivos e meus sonhos. Ajudava muita gente, estava sempre preocupado com isso e eu herdei isso dele. Ele me motivou a desenvolver o Bola Pra Frente.
Vale ressaltar que o “segundo pai” de Jorginho morreu enquanto carregava uma baliza para as crianças e, por isso, na entrada do instituto tem uma estátua em homenagem a Catanha com o material transportado pela vítima.
– Eu não queria me desfazer desse material e quando construí o Bola Pra Frente tive a ideia de fazer essa homenagem – revelou.
Um dos “gols” mais bonitos da vida de Jorginho, o instituto foi fundado em 29 de junho de 2000 e de lá para cá ajudou na formação de milhares de crianças através de educação, esporte e cultura.
Após uma verdadeira aula de Michelle Arruda, gerente de projetos e pedagogia, e David Paz, gerente de marketing, entendemos melhor a forma de atuação do Bola Pra Frente e descobrimos que 600 crianças de 6 a 17 anos estão matriculadas atualmente, com um atendimento diário de 183 alunos.
Nada disso seria possível, no entanto, sem o apoio de Carlos Oliveira, amigo de infância do lateral, diretor executivo do projeto e pai do David. Sempre ao lado de Jorginho, Carlos não conteve as lágrimas ao rever um quadro do craque levantando a taça de campeão do mundo,
– Eu vi desde o início e sabia que ele chegaria lá. Sempre foi muito determinado, perdeu muita festa com os amigos, com a família, mas realizou seu sonho!
Em seguida, guiados por Jorginho, fomos conhecer as instalações do Bola, ouvir suas histórias da infância e fechamos o memorável encontro com um saboroso almoço no próprio instituto!
JOGO DE BOTÃO
por Ricardo Dias
(Foto: Marcelo Tabach)
Assisti aqui no site ao sensacional embate no futebol de botão entre Luiz Penido e Edson Mauro. A roubalheira de um e outro me lembrou os tempos de garoto, campeonatos de rua, botões que misteriosamente desapareciam nos bolsos uns dos outros (não eram roubados; o verbo utilizado, sabe Deus por quê, era “tarrar”). Pensando bem, o jogo de botão tem uma história de crimes…
Comecei nessa nobre arte jogando com meu pai, no chão de casa. Eu com meus botões de plástico e um dadinho como bola, ele com botões de roupa e papel prateado em formato bem redondinho; um absurdo, ele usava bolas esféricas! Todo mundo sabe que o certo é dadinho, quadrado… Se bem que havia uns tarados que usavam um negócio que parecia um comprimido, um horror.
Mas o time do meu pai era a sensação da rua. Tinha um goleiro feito de caixa de fósforos, como convém, dois beques de galalite, uma enorme novidade na época dele, e todos os outros botões de verdade.
Mas não era qualquer botão. Para virar atleta, o indivíduo precisava ter uma curvinha específica, de modo a pegar por baixo da bola. A melhor descrição era “formato de capacete inglês da primeira guerra mundial”. Sugiro uma googlada, caso você não seja doido e não saiba como é o tal capacete. E esses eram mortais, um chute seco e de curva. Dois tinham nomes: um, de cor diferente, era o Zequinha; outro, com uma manchinha, o Orlando Pingo de Ouro. Há suspeitas que esse tenha sido roubado de meu tio. Conhecendo meu pai, provavelmente verdadeiras. E, claro, papai era – e é – tricolor (e meu centroavante era o Manfrini).
Adquirir esses botões não era simples. Década de 40, Brasil do pós-guerra (a segunda, não a primeira do tal capacete), criança não tem dinheiro, mesada, nada disso. Loja de brinquedo, coisa de luxo, natal e olhe lá. Então, a solução era o furto. A caixa de costuras da mãe (mães costuravam) era a primeira fonte. Esgotada esta, os paletós do pai. Normalmente já haveria o suficiente para um time, mas faltavam os craques: os botões de batina de padre. Ali os jogadores de botão mostravam a que vinham: arriscavam a danação eterna, roubando de um sacerdote, para poder jogar com prazer. Várias maneiras existiam, mas a mais certa era uma criança distrair o padre com perguntas sem fim, enquanto o outro tentava, com uma gilete, cortar o botão desejado, ou pior: a invasão da sacristia, geralmente com a conivência do sacristão, também jogador inveterado.
Bendito esporte, nascido no crime e absolvido pela paixão.
O SUPER-HERÓI SEM CAPA
por Rodrigo Branco
Torcer pelo Fluminense em alguns períodos da sua gloriosa história não foi nada fácil. São momentos difíceis, mas importantes, pois ajudam a forjar o caráter de uma torcida. Algum manual de autoajuda diria que o sofrimento faz crescer. Seja como for, atualmente, o clube vive um desses momentos. Sem o mecenato da antiga parceria, a saúde financeira vai de mal a pior e a aposta na política do “bom, bonito e barato” é inevitável. Muito embora, na maioria das vezes, apenas o último adjetivo do termo faça sentido.
É um cenário bem parecido com o do começo dos anos 90. Sucessivas administrações ruins levaram o clube a um cenário de grana minguada e de escassez de craques e de títulos. O time até chegava às vezes, mas sempre faltava algo. Faltava mais talento. Vivíamos às voltas com Dagos, Dacroces e Maculas na esperança da chegada de um herói. Mais do que isso, de um super-herói.
Foi nesse contexto desolador que, em 1991, chegou às Laranjeiras, sem festa ou alarde, um super-herói sem capa. Só não sabíamos disso ainda. O capixaba Ézio Leal Moraes Filho passara sem brilho por Bangu, Olaria, Americano e Portuguesa de Desportos antes de chegar como mais uma aposta na penca de contratações modestas feitas naqueles tempos.
Pouco a pouco, a entrega e uma raramente vista identificação com o clube foram superando a desconfiança inicial. Contribuíram para isso, claro, os gols. Muitos gols. Foram 118, para ser exato. Doze deles anotados contra o arquirrival Flamengo, o que o ajudou não apenas a conquistar um espaço entre os dez maiores artilheiros da história do clube como, para sempre, um lugar cativo nos maltratados corações tricolores.
Centroavante de ofício, compensava a técnica limitada com habilidades específicas que o faziam letal: oportunismo, cabeceio preciso e um pé esquerdo calibrado. Se não tinha o virtuosismo de um Reinaldo ou Careca, sobravam garra e objetividade. Resolvia com um ou dois toques perto da meta adversária. Um craque na arte de sintetizar as jogadas, em suma.
Certo dia, ganhou a chancela oficial de super-herói dada pelo genial locutor Januário de Oliveira. “É preciso ter superpoderes para fazer gols jogando em um time como esse”, dizia, coberto de razão. É possível encontrar algum paralelo com Henrique Dourado, atual goleador e ídolo improvável da vez. De todo modo, se as glórias foram rarefeitas (duas Taças Guanabaras, um Estadual e um vice da Capa do Brasil), dedicação e amor ao querido pavilhão nunca faltaram. Reza a lenda que chegou a assinar contratos em branco para só depois discutir os valores.
Irônico como só ele sabe ser, o futebol reservou ao nosso SuperÉzio o papel de coadjuvante no único título de expressão conquistado pelo Tricolor nos cinco anos em que esteve no clube: o mítico Carioca de 1995, quando foi suplente do “Rei do Rio” Renato Gaúcho e do correto Leonardo, ex-Vasco e América de Três Rios. Mas esse é um mero detalhe.
A imagem do Ézio que ficou na memória da torcida é a do atacante raçudo que amava a camisa que vestia e não desistia nunca. Nem quando enfrentou a marcação do adversário mais cruel da sua vida, um agressivo câncer de pâncreas que o tirou de vez de campo, há exatos seis anos. Precocemente, aos 45 anos. A tempo, porém, de deixar eternamente grata uma torcida por amenizar com seus superpoderes o sofrimento de milhões de abnegados vestidos de verde, branco e grená.