CARBONE, UM BIGODE, O MARACANÃ E COISAS DE CRIANÇA
por André Felipe de Lima
Onde jogou, recebia apelidos dos mais inusitados. Na época em que defendeu o Internacional, de Porto Alegre, Carbone era o “Caminhão”, segundo o ex-centroavante Claudiomiro. Quando vestiu a camisa do Botafogo, Marinho Chagas batizou-o de “Charbon” (?!) e Ademir Vicente, de simplesmente “Veterano”.
José Luís Carbone, um dos mais aguerridos volantes do futebol brasileiro nas décadas de 1960 e 70, sobrinho do também ídolo e goleador corintiano Rodolpho Carbone, faz anos hoje.
Nasceu em 1946, na cidade de São Paulo, e começou a jogar bola aos onze anos, no Flor de Vila Formosa. Depois seguiu para a divisão de base do Juventus, quando contava dezesseis anos. Após um jogo do Juventus, foi levado ao São Paulo. E foi no tricolor do Morumbi onde começou a carreira profissional, em 1963. Perambulou pela Ponte Preta, em 1966, mas, no ano seguinte, regressou ao São Paulo, clube no qual permaneceu até 1968.
Passou rapidamente pelo Metropol, de Criciúma, que na época tinha um time bastante competitivo, de onde saiu o ponta-direita Valdomiro, e depois fincou os pés no Beira-Rio.
No Internacional, Carbone ganhou o estrelato. Era um dos ídolos da torcida e respeitado pela crônica esportiva gaúcha. Foi um dos ícones da equipe colorada que impôs um freio no ímpeto do Grêmio, que almejava o oitavo “gauchão” seguido. Logo na primeira temporada, em 1969, foi eleito o melhor jogador do estado. Nos cincos anos em que vestiu o manto Colorado, de 69 a 73, foi campeão estadual. Depois, sua história seria com o Botafogo.
Vi Carbone em campo defendendo o Botafogo. Embora vascaíno, meu pai levou-me ao Maracanã algumas vezes para ver o Fogão. Acho que foi uma forma de agradecer ao meu avô que, botafoguense, tentava convencê-lo a tornar-se alvinegro levando-o aos jogos para torcer pelo Otávio de Morais, pelo Nilton Santos, pelo Paraguaio, pelo Juvenal e pelo Geninho. Frustrada tentativa do vovô. Para o papai, era Deus no céu e Ademir de Menezes na terra. Segui o mesmo caminho.
Quanto a mim e ao dia em que “conheci” Carbone, confesso, era pequeno e não me recordo muito bem dos jogos. Sei que um deles foi contra o Bahia e terminou 0 a 0. Creio que em 1975 ou 76. Literalmente dormi no gelado cimento da arquibancada do velho Maracanã. Entre um cochilo e outro, chamava-me atenção o Carbone. Havia visto a foto dele no jornal. É, porém, certo: a cabeleira e o bigode do Carbone jamais saíram da minha memória. Tanto que achava bacana. Achava que ao crescer teria o mesmo bigode do Carbone. Coisas de criança. Fiz do craque um dos meus primeiros astros do futebol de botão, uma mistureba de jogadores do Vasco com os do Botafogo. No gol era o Andrada. Miguel e Osmar na zaga. Tinha, na meia, o Carbone, o Manfrini e o Zanata. Dinamite no ataque, com Jorginho Carvoeiro e por aí vai.
A cabeleira e o bigode do Carbone “rivalizavam” com outro famoso bigode, o do tricolor Rivellino. Um verdadeiro “Clássico vovô” dos bigodes. Divertia-me com tudo aquilo. Coisas de criança.
Hoje, aniversário do ídolo Carbone, esta memória veio à tona. Graças a Deus que ainda existem em mim… coisas de criança.
PIU PIU, O MATADOR DE PENEIRAS
por Serginho 5Bocas
Vocês sabem o que é uma Peneira? É a prova dos nove dos moleques candidatos a craques da bola, pois é lá que o jogo fica em seu estado mais bruto na vida dos jovens postulantes a craques e onde morrem ou nascem sonhos e esperanças daqueles que sonham em ser jogador de futebol.
Não há espaço para palavras educadas e motivadoras. Ao final do treino é aquela hora do momento mais temido, quando o homem da prancheta decide e diz quem fica e quem volta para casa.
O ex jogador Cafu, que foi recentemente eleito o melhor lateral direito do futebol mundial de todos os tempos pela revista France Football, foi um caso extremo de resiliência no campo das peneiras. Reprovado em mais de dez delas, sempre voltava e tentava novamente. Um dia ele foi lá e a coisa aconteceu e o resto todos já conhecem. Muita gente boa ficou pelo caminho, porque não tinha paciência para aturar os destratos dos negligentes avaliadores ou porque não davam importância mesmo. O certo é que querendo ou não querendo, tem que passar pela duríssima prova de fogo.
A vida dos meninos é tão difícil que para vocês terem uma ideia, Pelé precisou de uma forcinha do ex-craque da seleção brasileira Waldemar de Brito e Zico precisou do aval do radialista Celso Garcia. Imaginem os simples mortais? Mas vamos ao moleque da hora…
Moleque de rua, de paralelepípedo, das tabelinhas com as paredes, das paradas de bola para esperar a moça ou o carro passar, somos nós, somos todos nós, quando olhamos com carinho para a infância que passou. Piu Piu era bola-bola, gastava ela com amor, não era o melhor de todos, nem era o mais habilidoso, o mais driblador, mas era impávido, determinado, chato de ser vencido. Tinha qualidade no passe, visão de jogo, batia forte e com direção na bola e tinha uma vontade absurda de vencer.
Ainda menino, no auge de seus 11 anos, Piu Piu não tinha medo de cara feia, nem de cara grande, os temidos “galalaus”. Jogava suas peladas contra os caras bem mais velhos e grandes e num domingo desses de manhã, foi jogar um time contra o Vitoria do Lins, um clube de futebol de salão do subúrbio do Rio de Janeiro. Perderam nas três categorias (mirim, infantil e infanto), mas Piu Piu e o amigo Caolha foram chamados para fazer testes no clube. Passaram, mas não seguiram com a experiência, porque tinham medo de andar de ônibus à noite. Apesar da peneira superada, “queimou a largada” na primeira peneira superada.
Cinco anos depois, lá estavam juntos novamente, Piu Piu e Caolha fazendo um teste no infanto-juvenil do time de futebol de salão do clube Ríver de Quintino. Dessa vez, passaram e seguiram em frente, jogaram o segundo turno do Carioca daquele mesmo ano, no longínquo 1983. Outra peneira vencida, desta vez mais fácil.
No ano seguinte, Piu Piu se sentindo desprestigiado no clube de Quintino, foi fazer teste numa peneira no Grajaú Tênis Clube e mais uma vez passou no teste, chegando a disputar algumas partidas amistosas e uma ou duas do Carioca do campeonato juvenil. Mas novamente alguma coisa não vingou, ele era cabeça quente demais, não engolia sapos e decidiu jogar aquilo tudo para o alto e se dedicar aos estudos.
Neste intervalo de tempo, ocorreu o fato mais inusitado. A mãe do padrinho de Piu Piu trabalhava como doméstica na casa do jogador Júnior, do Flamengo, sim do Leovegildo. Dona Dolores pediu ao craque da seleção, o famoso lateral, mas que ainda não era o nosso maestro, para dar uma carta de apresentação que permitisse o afilhado do filho dela fazer um teste no Flamengo.
Júnior escreveu a carta pedindo ao Joel, ex-ponta direita do Flamengo, que desse a chance a ele de fazer um teste no campo conhecido como 8º GAC, um quartel na Vila Militar onde estava rolando uma peneira.
Carta recebida e quase ignorada por não acreditar que o Júnior daria esta moral. Passado o susto inicial, foi falar com seu pai, que lhe deu um valioso conselho, mas que infelizmente foi ignorado:
– Filho, pega um ônibus para lá um dia antes, para você ver onde é, para depois não errar o endereço.
Piu Piu deu de ombros e achou que era preciosismo demais de seu pai. “Quem não escuta cuidado, escuta coitado”, já dizia o velho ditado. No dia marcado, Piu Piu pegou o ônibus 689 “Meier-Campo Grande” e foi para o maior desafio daquele garoto de 14 prestes a fazer 15 anos.
Na cabeça era um misto de ansiedade, medo e vontade de ver como é que seria. Imagina só passar no teste e falar com a galera da rua que agora era jogador do Mengão, putz!
Piu Piu pegou o ônibus e quando chegou próximo da Vila Militar, perguntou ao cobrador e depois ao motorista se conheciam o campo do 8º GAC e ambos nunca tinham ouvido falar dele. Frustração e um frio na barriga, lembrou na hora do velho pai e já pensava o que diria para ele se não encontrasse o campo.
Desceu do ônibus um pouco mais a frente e saiu perguntando para algumas pessoas sem sucesso, ninguém sabia onde era o campo. Resignado, triste e um pouco menos tenso, porque não faria mais o teste, pegou o mesmo ônibus no sentido contrário e um estranho sentimento rondava sua mente. Sentira tanta ansiedade e medo que agora voltar para casa parecia uma coisa bem tranquila.
Aí, aconteceu a coisa mais marcante dessa história toda. Piu Piu se sentou próximo ao cobrador, num banco mais alto, que ele gostava de ficar, para ver melhor a rua e não enjoar com o balanço do ônibus e quando já estava saindo da Vila Militar, viu um Quartel a sua direita e teve quase a certeza que estava escrito no muro GAC. Não deu pra ver se tinha um 8º antes, foi muito rápido e imediatamente, virou-se para olhar por cima do muro e lá avistou alguns meninos jogando bola em um campo gramado.
– “É ali, Piu? – Seu cérebro indagou em milissegundo a pergunta cruel.
Agora havia uma decisão a ser tomada urgente, o que fazer? Descer do ônibus e sair correndo, se desculpar pelo atraso e tentar fazer o teste ou deixar pra lá, seguir seu destino e arrumar uma desculpa para contar em casa, para seu pai e sua mãe.
Optou pelo caminho mais confortável. Sentiu um terrível medo do insucesso, coisa nunca experimentada, talvez por ser no seu clube de coração. Talvez tenha imaginado o tamanho daquilo tudo e seu cérebro não parava de pensar em todas as possibilidades de fracasso.
À medida que o ônibus ia se distanciando do endereço de seu sonho, Piu Piu ia ficando triste e talvez com uma ponta de arrependimento de não ter voltado e ter realizado o grande teste de sua vida. O que poderia ter acontecido? Nunca irá saber.
Hoje, Piu Piu diz que o que passou, passou, mas sente lá no fundo, uma tristeza de não ter a certeza se dava ou não dava para ele. Faltou coragem, talvez experiência ou até mesmo um padrinho naquela fatídica empreitada, para lhe dar aquele último empurrão. No aconchego do seu travesseiro, quantas vezes ele já pensou que tem tanta gente que não joga nada e virou profissional, porque logo ele, que era um matador de peneiras, não se tornaria um jogador de futebol? Nunca vai saber.
Se houvesse na vida de Piu Piu um momento “De volta para o futuro” (ou para o passado), com o “Marty McFly” e o “Dr. Emmett Brown”, astros marcantes daquele filme inesquecível, lhe dando uma nova chance de reescrever o seu caminho, voltando no tempo momentos antes de entrar naquele ônibus. E se ele pudesse ter as informações e a orientação para realizar aquele teste, do seu próprio “eu”, será que ele seria feliz? Será que também encontraria a sua namorada de novo, que depois virou esposa e teria os seus filhos, que tanto ama? Será que realmente teria uma carreira de sucesso nesse esporte ou teria uma contusão grave ou ainda seria esquecido na penúria de um time pequeno? Ninguém pode responder, nem mesmo ele tem a certeza de que tentaria de novo, a conta já está fechada.
O mundo das peneiras é feito muito mais de momentos triste do que felizes, um funil apertadíssimo separa os homens dos meninos, muita gente boa fica pelo caminho, é lugar para casca grossa, a bola vira prato de comida e não dá tempo para dúvidas. Reparem que raramente vemos jogadores de futebol de origem rica ou de classe média alta, em sua grande maioria, são os meninos mais carentes que vingam, aquele que não tem plano “B”, não há escola para oferecer outro caminho, empresa da família ou qualquer outra opção para largar o objetivo e partir para outra, é dá ou desce.
A história do Piu Piu não é única, tampouco inédita. Na verdade ela é baseada em fatos reais, ocorridos com o Serginho 5bocas ou se preferirem, com o “Piu Piu”, da Dona Jalderia (sua mãe), do Seu Domingos (seu pai) e de seus queridos irmãos Jorge, Geraldo, Marcos (in memoriam), Graça, Dolores e Consuelo.
Ô tempo bão!
ARQUIBANCADA VAZIA, CORAÇÃO PLENO
por Paulo-Roberto Andel
Duas da tarde de domingo. Se fosse possível voltar no tempo, há 40 anos eu sentiria o peito bater mais forte com a chance de ir para o Maracanã, chegando lá no máximo às três, com casa cheia ou não. Se estivesse lotado era acompanhar a preliminar. Não estando, era feliz do mesmo jeito.
Com a arquibancada vazia a visão era outra, mas não menos importante para um garoto de dez ou onze anos de idade, sonhando com o mundo, com seus craques e botões. O Maracanã era tão colossal que, mesmo numa tarde de pouco público, o olhar infantil não deixava passar nada: os pequenos burburinhos do outro lado, os personagens da geral, o movimento nas cabines de rádio com os craques da transmissão, as poucas pessoas sentadas perto ou nem tanto, os frequentadores das cadeiras de baixo.
Num outro jogo aquilo ali estava tudo lotado, mas não é ou pode não ser o caso de hoje. Ao longe você vê os vendedores de refrigerante, todos de branco com capacete e o tanque de refresco nas costas – pareciam astronautas. E o moço do cachorro-quente tem uma caixa bem grande. Os vendedores de amendoim são quase todos garotos, deixando o produto quentinho em latas que eles mesmos adaptam.
Bem no meio de campo tem o cordão de isolamento da polícia, mas só é necessário em dia de clássicos.
Do outro lado pintaram os pés da trave com tinta preta, fazendo duas bordas.
Se o radinho estiver ligado por perto, geralmente do pai e do responsável, logo alguém vai entrevistar o Justino, funcionário da SUDERJ que invariavelmente acerta todas as previsões de público.
Não tendo preliminar ou ela sendo pouco empolgante, dá para ir no corredor e ver as salas das torcidas organizadas, cheias de bandeiras. Ou então espiar o térreo, onde estacionam os ônibus dos times e aí você pode ver os jogadores à paisana. Atrás de um dos gols você vê a estação de trem Derby Club, que sempre traz gente para o jogo; se for do outro lado, tem a turma se esbaldando de bebida no Bar dos Esportes.
Se preferir ficar sentado na arquibancada cinzenta e olhar para cima, o céu vira um lindo círculo formado pela cobertura de concreto – a mesma que, nos grandes jogos, é responsável por aquele eco vigoroso de UUUUUUHHHHH toda vez que alguém acerta um chute perigoso ou, claro, GOOOOOOLLLL quando o nosso time balança a rede e Jorge Curi, Garotinho, Doalcei, Édson Mauro ou outro craque da narração dispara a vibrar.
Do lado de cá e do lado de lá tem bumbo e samba. É uma certeza marcial do jogo.
Lá pelo segundo tempo eles ligam os refletores, que parecem pequenas estrelas luminosas cravejadas no alto do Maracanã. Quando o goleiro chuta a bola muito alto, ela se perde em meio às luzes por um segundo e, logo no outro, quica no maior gramado do mundo.
Pode ter tido gols, jogadas bonitas, emoção, mas estar naquele lugar marca a criança para sempre em qualquer resultado. Perto das sete da noite, tudo termina, mas aí vem um componente especial: a mão do pai puxando a do filho, orientando, guiando, dando a sensação de que ela estará sempre presente.
Na hora de ir embora, pode ser de carro, trem ou ônibus, tanto faz: dá uma vontade de começar tudo outra vez, para sempre, para sempre. Só de pensar que tem uma bola branca novinha em cima da grama perto da lateral, e que ela vai correr por todo lado naquele campo verde, a gente pensa que a infância vai durar eternamente e o Maracanã estará ao nosso dispor.
Três da tarde. Uma câmera mostra um campo vazio. Daqui a pouco vai ter jogo na televisão. Cadê o radinho, a bandeira, a sala das torcidas? Cadê o trem chegando, a torcida cantando, a arquibancada enchendo?
O Maracanã agora é outro, mas o sonho permanece. Vai ter outro ano, vai ter outro jogo.
@pauloandel
VOTOS DE FIM DE ANO AO TORCEDOR DE FÉ
por Cláudio Lovato Filho
Que em 2021
Você mande seus temores para longe
Com a potência de um chute do Éder Aleixo
Que você enxergue à distância e atinja seus objetivos
Com a precisão de um lançamento do Gerson
Que você não desperdice suas oportunidades
E as aproveite do jeito certo
Como Alcindo, Careca, Romário e Ronaldo
Nascidos artilheiros
Que você resolva seus problemas
Com a vivacidade e a habilidade do Mário Sérgio
Que olhava para um lado e mandava a bola para o outro
Vesgo genial
Que você, mesmo no meio do caos, se mantenha lúcido e seguro
Como Airton Pavilhão
Que neste novo ano que se aproxima
Esse 2021 tão aguardado
Alvo de tantas esperanças
Você jamais admita a hipótese de jogar a toalha
Como nos ensinou Didi em 58
Bola debaixo do braço, cabeça erguida, caminhando em direção ao grande círculo
Que você seja generoso e solidário como o Doutor Sócrates
Parceiro, amigo, camarada
Chapa que dava passe de chapa e de calcanhar
E deixava os companheiros na cara do gol
Com a mensagem de que juntos somos mais fortes
Que você nunca deixe de se divertir
Como se divertiu Garrincha
Que sorriu e fez sorrir
E, como ele, nunca abandone o menino que há em você
Que você, mesmo quando o vento estiver soprando contra,
Consiga ter a serenidade do Ademir da Guia
Mas que, quando preciso,
Seja sanguíneo
Mande tudo às favas
E faça aquilo que lhe der na telha
Como Renato Portaluppi em Tóquio (e em outros lugares)
Porque às vezes é preciso explodir, meu amigo
Fazer aquilo que ninguém espera
Talvez nem você mesmo
Que em 2021
Você não se contente com menos do que com aquilo que realmente deseja
Bola na gaveta ou no meio do gol
Com jeito ou com força
Como nas faltas de Zico, Roberto, Tadeu Ricci
E de Rivelino, Nelinho, Branco
E, claro, que você não aceite aquilo que não lhe é devido
E feche a porta como Lara, Gilmar, Manga, Leão, Mazaropi
Que você entenda que tem o direito às suas convicções
E também à sua teimosia
De preferência para realizar coisas belas e dignas de compor um legado inspirador
Como fizeram Telê e Ênio
Enfim,
Que em 2021
Torcedor apaixonado
Você se torne seu próprio Pelé – com tudo aquilo que faz de você, e só de você, o ser humano que você é, de um jeito que é só seu.
Feliz 2021.
DANIEL GONZALEZ: O TRÁGICO FIM DE UM GRANDE ZAGUEIRO URUGUAIO
por André Luiz Pereira Nunes
Em 1 de fevereiro de 1985, o Vasco perdeu um dos melhores defensores da sua rica e longa trajetória. Após ter participado de uma peixada na casa do centroavante Cláudio Adão, no Leblon, o zagueiro Daniel Angel Gonzalez Puga foi vitimado por um acidente fatal automobilístico na Autoestrada Lagoa-Barra. O Monza vermelho, o qual dirigia, derrapou vindo a bater na coluna de sustentação de uma passarela, logo após a saída do Túnel Dois Irmãos, em frente à Rocinha. O jogador estava em companhia da esposa, Mabel Puga, de 25 anos, que, com fraturas, foi internada no Hospital Samaritano, mas sobreviveu. Coincidentemente, quem atendeu Daniel no Miguel Couto foi o médico do Vasco, Válter Martins, que estava de plantão. Ele atestou que o zagueiro teve oito costelas fraturadas, afundamento do tórax e ruptura da veia aorta. Enquanto estava sendo atendido, sofreu três paradas cardíacas, não resistindo à quarta, consequentemente vindo a óbito.
Seu companheiro de clube, Cláudio Adão, havia preparado um jantar e convidado os amigos Daniel Gonzalez e esposa, além do zagueiro Ivan, o lateral-direito Edevaldo e o meia Carlos Alberto Pintinho. Gonzalez, sempre um dos mais alegres e brincalhões do elenco, gostou tanto da peixada que a repetiu quatro vezes. Pouco depois da meia-noite, Adão o convidou para que o casal fosse com o restante do grupo a uma boate. A preferida era a Studio C, em Copacabana, mas o zagueiro declinou, alegando que deveria estar cedo em São Januário. Não quis topar mais algumas horas de lazer, durante a madrugada, sob o argumento de que precisava se preservar, preocupado com o adversário seguinte, o Fluminense. Bem que a esposa, Mabel, queria estender o programa. Uma pena, ele não ter cedido, haja vista que as mulheres dispõem de um apurado sexto sentido.
Portanto, Daniel e a mulher despediram-se do grupo e seguiram em direção à residência, localizada na Barra da Tijuca. Ele trafegava em alta velocidade, quando ao sair do Túnel Dois Irmãos se deparou com a estrada inundada pela chuva. Quis frear, mas o veículo derrapou, indo colidir com a coluna de sustentação da passarela em frente à Rocinha. Ele tinha 30 anos e deixou um casal de filhos, Marcelo e Daniela, de 5 e 3 anos, respectivamente.
Há seis anos no Brasil, o uruguaio de Montevidéu, iniciou sua carreira no modesto Fénix, um pequeno clube de bairro da capital. Apesar disso, progrediu tão rapidamente que logo foi convocado para a Seleção Uruguaia, quando já então vestia a camisa do Peñarol. Em 1979, foi adquirido pela Portuguesa de Desportos. Após dois anos no Canindé, e ainda sem nenhum título, foi negociado junto ao Corinthians, o qual cedeu à Lusa o também uruguaio Taborda e uma alta soma em dinheiro. No Parque São Jorge, continuou sendo o marcador corajoso e líder nato da equipe campeã paulista em 1982.
Comprado pelo Vasco, no segundo semestre de 1983, chegou a São Januário prometendo muita luta e desmentindo informações de que era um dos líderes da renomada Democracia Corinthiana, movimento formado por atletas do Timão, que reivindicava maior representatividade nas decisões. O fato é que um mês antes de falecer, identificou-se claramente como um dos porta-vozes dos atletas vascaínos junto aos dirigentes, os quais cobravam atualizações de prêmios, geralmente em atraso, direitos de arena e pagamento pontual das luvas devidas ao elenco.
Logo que souberam do seu falecimento, através das emissoras de rádio, diversos jogadores do Vasco compareceram ao Hospital Miguel Couto, entre os quais, Roberto Dinamite, Aírton, Ivan, Cláudio Adão, Acácio, Geovani, Mauricinho e o goleiro Roberto Costa. O então treinador do time, Edu Coimbra, o presidente Antônio Soares Calçada, o vice de futebol José Luís Mano e o supervisor Paulo Angioni também estiveram presentes.
No Gigante da Colina se sagrou vice-campeão brasileiro, campeão da Taça Rio e terceiro colocado no Campeonato Estadual, todas as competições realizadas em 1984.
“Era uma ótima pessoa, um líder dentro e fora de campo, além de um sujeito sensacional. Me recordo bem que o fato aconteceu pouco depois que voltamos de Porto Alegre, quando lá perdemos para o Grêmio por 3 a 1. Todos ficamos extremamente consternados. Havia, inclusive, uma partida contra o Fluminense na mesma semana que foi adiada, pois não havia clima possível”, ressaltou o ex-volante Oliveira.
O ex-zagueiro Duílio, que foi seu companheiro na Portuguesa durante 19 meses, e atuava na época pelo Tricolor das Laranjeiras, ficou arrasado.
“Daniel era uma pessoa do bem. Bom caráter, um cara família, sem contar o excelente profissional em todos os aspectos. Fizemos uma grande dupla de zaga na Portuguesa de Desportos. Quando nos tornamos adversários, nos encontrávamos sempre após os jogos, pois permaneceram sempre a empatia e a amizade que ficaram daquele tempo. Deixou saudades”, declarou o eterno xerife da zaga do Fluminense.
O goleiro titular Roberto Costa, Bola de Ouro da Revista Placar, em 1983 e 1984, foi outro que exaltou as qualidades do amigo.
“Foi um grande amigo que tive no futebol. Inclusive nas concentrações ficávamos no mesmo quarto. Éramos parceiros de canastra. Já como profissional, era exemplar. Tinha muita garra e instinto de liderança dentro e fora de campo. Era um excelente jogador. Senti muito a sua perda, pois éramos muito próximos”, relembrou.
O técnico Zé Mário relembra uma passagem comovente de quando ambos jogaram na Portuguesa de Desportos.
“Cheguei na Portuguesa quando ele ainda estava de férias no Uruguai. Eu estava em um hotel e procurava um apartamento para morar. Um dia saí do treino e fui à administração. Daniel me viu e perguntou onde eu estava hospedado. Informei-lhe o lugar e ele se ofereceu para me levar até lá. Respondi-lhe que não era necessário, pois o clube já tinha me disponibilizado um motorista. Mesmo assim, ele dispensou o motorista. Entrei no carro dele e fomos até a frente do hotel, eu agradeci pela carona, tencionando me despedir, mas ele me disse que queria subir até o quarto. Retruquei que minha esposa estava lá. Ele falou que iria subir mesmo assim. Pensei que ele era maluco. Avisei a minha esposa que ele vinha comigo. Bati na porta, a Bela abriu e entramos. Ele foi direto ao meu quarto e foi juntando todas as nossas roupas e jogando dentro de uma mala. Estupefato, lhe perguntei o porquê daquilo. Ele falou que iríamos ficar na casa dele. Ficamos apavorados. Eu não o conhecia e nem ele a mim. Ele foi saindo pela porta puxando as malas e não tivemos outro jeito, senão seguirmos. Eu ia falando que aquilo não estava certo e ele ia em frente. Chegamos ao seu apartamento e ele não tinha avisado nada, até porque não existia celular como hoje. Entramos de olhos arregalados. Depois me fez comprar um apartamento no mesmo condomínio dele. Só o bloco era diferente. Graças a Deus ganhei um irmão. Mantenho até hoje contato com a família. O neto tem 8 anos e almeja ser jogador de futebol”, reitera emocionado.
Daniel Gonzalez conseguiu, em sua curta trajetória pelo Vasco, impor-se e até mesmo inscrever o seu nome na galeria dos grandes profissionais que defenderam essa camisa. Jogador vibrante, de muito destemor, costumava definir-se como um homem que não admitia derrotas. Bom amigo, excelente chefe de família, deixaria um vazio imenso em todos aqueles que o conheceram e tiveram o prazer de desfrutar da sua convivência.