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A VOLTA DO “COMPLEXO DE VIRA-LATA”

11 / julho / 2018

por Israel Cayo Campos


Em meados dos anos 1950, depois de duas grandes decepções em Copas do Mundo. A fatídica derrota para os Uruguaios na última rodada do primeiro Mundial do Brasil por 2 a 1 e a humilhante goleada para os húngaros por 4 a 2 nas quartas de final da Copa da Suíça de 1954 levaram muitos brasileiros a descrença no futuro do esporte bretão no país. Dentre esses decepcionados, estava Nelson Rodrigues, o reacionário e folclórico ‘multimídia” carioca que a época era uma das principais vozes do jornalismo brasileiro. 

O mesmo, chegara a dizer que o “Maracanazzo” de 1950 tinha sido a ‘Hiroshima brasileira”, em uma melodramática alusão ao ataque nuclear que causou a rendição japonesa para os estadunidenses ocasionando o final da Segunda Grande Guerra Mundial. De fato, a dor de 1950 é sentida até hoje, mas a transformação da tragédia esportiva em uma tragédia humana, mesmo que tenha sido uma alusão surrealista, já denotava os contornos da importância que o futebol tinha para o povo brasileiro. 

Ainda ressentido por 1950 e com a ajuda da derrota de 1954, Nelson cunhou a expressão “Complexo de vira-lata”, que ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, não só se atribuía ao futebol brasileiro, mas abrangia a “inferioridade em que o povo brasileiro se coloca de maneira voluntária, em face ao resto do mundo”. Assim como em nossa sociedade, ao futebol brasileiro segundo Nelson, faltava a autoestima suficiente para que pudéssemos enfrentar de igual para igual os demais povos. Principalmente os europeus.


As raízes de tal expressão são bem mais antigas e racistas do que Nelson Rodrigues, e de fato, ele nunca tal usou essa frase como forma de menosprezo ao povo brasileiro, mas por uma notória observação do senso de inferioridade que seus compatriotas sentiam… No futebol, mesmo que a derrota mais dolorida tenha sido contra um rival sul-americano, o pensamento era de que para jogar contra europeus, os jogadores brasileiros deveriam jogar como europeus, e principalmente, não tremer… 

Aproveitando-se de tal pensamento, muitos atrelaram ideais racistas ao futebol brasileiro. Como disse o escritor Fábio Mendes em seu livro “Campeões da Raça”, era natural se ouvir dos radialistas, escritores e do público em geral que os jogadores negros “amarelavam” exatamente nos jogos decisivos. Era o Complexo de Vira-lata tomando um aspecto não motivacional, mas preconceituoso. 

Tamanha era a certeza que os jogadores negros não tinham capacidade de enfrentar os europeus, que uma seleção brasileira pós Copa de 1954 foi chamada apenas com jogadores brancos. Alguns como o jornalista Vital Bataglia alegam que por desejo do então técnico Flávio Costa, Já outros, como o jornalista e ex-técnico João Saldanha, alegam que essa decisão partiu da cúpula da extinta CBD, a época gerenciada por João Havelange. Sendo indefinido saber de quem era o desejo de uma seleção brasileira “ariana”, o fato é que ela fracassou em seus amistosos na Europa. Mantendo firmemente a ideia de que futebolisticamente, sentíamos o peso da inferioridade de nosso povo tendo como pano de fundo os campos de futebol.


Foi preciso chegar o ano de 1958, na Copa do Mundo da Suécia, uma Copa no continente europeu, para que o complexo de vira-lata futebolístico tivesse o seu fim. E curiosamente ou não, com uma seleção miscigenada.Que só passou a jogar um grande futebol a partir da terceira partida contra o time científico da União Soviética. Quando o técnico Feola resolveu apostar no índio Garrincha, no caboclo Vavá e no negro Pelé. Aliados ao já titular Waldir Pereira, o Didi (também negro), a seleção brasileira seguiu rumo ao primeiro título mundial, dentro da Europa, e a certeza de que o tal complexo “inventado” por Nelson Rodrigues chegara ao fim. 

Em 1962, o bicampeonato, e a partir daí, pelo menos no futebol, o complexo de inferioridade se inverteu, não eram os brasileiros que tremiam diante dos europeus, mas sim o contrário. Ao ver a camisa amarela, tremiam o italianos na final de 1970, corriam de medo os alemães ocidentais, que perderam o jogo para seus vizinhos orientais em 1974 apenas para não enfrentar o Brasil, já era certo o tetracampeonato em 1978 se não fosse a “entregada” que o Peru deu para os Argentinos os colocando na final contra a Holanda. Mesmo quatro anos antes, o Brasil tendo sido derrotado pela mesma Holanda, era certo que se não fosse o roubo argentino, venceríamos os mesmos na final daquele mundial… O complexo de vira-lata não só se invertia, como simplesmente tomava proporções extremas, pois ninguém era melhor que os brasileiros! 


Claro, algumas decepções vieram… A derrota para os italianos em 1982, uma tragédia inesperada do melhor futebol do mundo… A derrota para os franceses nos pênaltis em 1986, pura falta de sorte… A derrota para os argentinos nas oitavas de final em 1990, culpa do esquema tático de Sebastião Lazaroni! E assim seguimos, mesmo com um jejum de vinte a quatro anos de títulos mundiais, continuamos a nos auto afirmarmos o melhor futebol do mundo, e todos os outros que tremam diante do poder do futebol brasileiro! O titulo de 1994 novamente sobre os italianos, e o pentacampeonato em cima dos alemães reforçaram ainda mais o peso da camisa amarela sobre os europeus.A derrota pra França em 1998, há, essa foi culpa da convulsão de Ronaldo e da não convocação de Romário… Nunca somos superados, a não ser por nós mesmos! 

Após o mundial do oriente as coisas começaram a mudar. O futebol europeu passou de vez a levar todos os nossos ótimos, bons, médios e até ruins jogadores. Começaram a se organizar, o futebol se tornou ainda mais um produto global, e a Seleção brasileira, formada praticamente por jogadores que atuam fora do país, a grande maioria no futebol europeu, passou a perder sua essência de superioridade sobre as demais seleções. Superioridade essa conquistada não só pelos cinco campeonatos mundiais, mas também pelo próprio subconsciente do brasileiro, e da ideia de que somos o país do futebol. 


Desde então se tornou comum vermos muitos brasileiros acompanhando mais times europeus do que os nossos. Campeonatos de clubes e seleções europeias que antes a TV aberta não queria nem de graça passando em horário nobre. E dando mais audiência do que os jogos locais! Perdemos nosso estilo de futebol, nossa superioridade, e passamos a querer imitar os europeus em tudo: Tipo físico, esquemas táticos, movimentação, treinamentos… Enquanto isso a técnica e habilidade do jogador brasileiro aos poucos vem sendo suprimida por um estilo único de jogar um esporte tão multifacetado… O espirito do vira-lata voltou… 

Em Copas do Mundo desde então, o futebol europeu, mesmo aquele que considerávamos de segunda linha, se agigantou sobre o nosso. Nas últimas quatro Copas foram quatro derrotas em fases eliminatórias (França, Holanda, Alemanha tomando de sete e agora Bélgica), dois empates em fase de grupos (Portugal e Suíça) e três vitórias também na fase de grupos apenas contra seleções da extinta Iugoslávia (duas vezes sobre a Croácia e uma sobre a Sérvia). Até Seleções não europeias tem dado profundo trabalho ao Brasil. Chile, Colômbia, Costa Rica e México andam vendendo caro suas derrotas ao esquete canarinho. E nas nossas cabeças apenas o fim da ideia de que somos os melhores do mundo. E que diante dos europeus, mesmo que seja a pequena Bélgica, com uma área inferior ao Estado do Rio Grande do Norte, hoje somos inferiores. 


Mesmo com os torcedores inflamados ainda a insuflarem que somos os maiores vencedores de Copas do Mundo, o Brasil dentro dos gramados vem demonstrando o renascimento do complexo de Vira-latas, tremendo diante dos franceses em 2006, mesmo com um esquadrão que muitos dizem ser o único a poder rivalizar com a Seleção de 1970. Perdendo em 2010 para a Holanda, quando estava com o jogo sobre controle. Perdendo o controle em 2014 ao enfrentar os alemães, simplesmente sofrendo sete gols dentro de casa. E se desorganizando diante da Bélgica, que até então era considerada apenas a nova ‘Dinamáquina’ de 1986… 

Nos próximos dezesseis anos, o Brasil continuará a sofrer com o retorno do “complexo do vira-lata”. Principalmente por esquecer como é que o futebol brasileiro joga, e cada vez mais imitar o estilo de jogo europeu, assim como foi em meados dos anos 1950, quando Nelson Rodrigues resgatou do contexto histórico para os campos de futebol a referida patologia… Torcemos para que no Catar em 2022, surjam novos “Didis”, “Garrinchas” e “Pelés” para que os europeus não nos aterrorizem mais, e que o Complexo de Vira-lata possa voltar para o local que lhe é devido, as histórias do folclore futebolístico nacional. 
 

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