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AFONSINHO: UMA LUTA CINEMATOGRÁFICA

18 / maio / 2016

por Paulo Junior


O ano é 1975. Moraes Moreira, após deixar os Novos Baianos, foi encostar no famoso teto da General Severiano, 40, acolhido pelo anfitrião Afonso Celso Garcia Reis, que àquela altura já era o Afonsinho, do Botafogo, do exílio no Olaria, da conquista do passe livre – a libertação do jogador, que deixava de ser uma posse do clube. À época, perambulando em contratos curtos e vendo a necessidade de resistir ao rígido ambiente do futebol profissional, o jogador revelado pelo XV e Jaú fundava o Trem da Alegria, time alternativo que pretendia fazer excursões e amistosos para movimentar – esportiva e financeiramente – veteranos ou atletas sem espaço com a extinção do quadro de aspirantes.

A turma da música sempre marcou presença na equipe. Além do próprio Moraes, Fagner e Paulinho da Viola, por exemplo, dividiram o mesmo 11 de craques como Garrincha, Brito e Nilton Santos. Afonsinho, aliás, desde sempre uma enciclopédia do samba, já havia tido seu nome eternizado numa canção de Gilberto Gil, a famosa Meio de Campo que ganhou a voz de Elis Regina.

– Era aquela época de não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça, e quando eu conquistei o direito do passe eu engrenei de sempre assinar contratos depois do Carnaval. Aí eu fui para o Nordeste, inclusive o Mário Sérgio, jogando no Vitória, me convidou para uma pelada que eu não consegui achar, foi a única pelada que eu perdi na minha vida. Mas, enfim, eu cheguei em Salvador e ia encontrar o Gil numa casa que ele tinha alugado lá. Quando eu fui andando pelo Campo Grande, uma pessoa me parou para falar que tinha achado legal a música que o Gil fez para mim. Depois, uns metros na frente, outra. E outra, umas quatro. E eu pensava que era uma música que ele tinha tirado dum papo nosso, alguma coisa de o bom jogador não engana a geral. Ai o [José Carlos] Capinam falou, é, o Gil fez uma música para você, vamos lá ouvir. Quando chegamos lá na casa, estava o Gil sozinho ouvindo um Miles Davis quando começamos a conversar, conversar, conversar. Quando fui embora lembrei: ninguém falou da música. Só fui ouvir quando fizeram um show no João Caetano, e depois a Elis ainda gravou, né. – conta Afonsinho.

O ano é 2014. O diretor Lucio Branco, idealizador do documentário Barba, Cabelo e Bigode, mantém uma dúvida entre um chope e outro com o colega responsável pela montagem das imagens de arquivo do longa. Já decidiu que os narradores do filme serão as próprias vozes dos três protagonistas de uma história de futebol, militância política, resistência e crítica social que perdura até hoje: Afonsinho, a barba, o jogador-médico com ideais de esquerda revolucionária; Paulo Cézar Caju, o cabelo, o atacante tomado pelo movimento black power e pelo som de James Brown; e Nei Conceição, o bigode, meia de sensibilidade musical do tipo bicho grilo pós-Woodstock. A questão, porém, é quem mais fará parte da narrativa. Como todo documentário, pensa em pessoas próximas, jornalistas, intelectuais…

Na mesa ao lado, está Moraes Moreira. Uma coincidência mística, do tamanho da intensidade dessa relação de meio século entre artistas e jogadores de futebol de uma Rio de Janeiro – e Carnavais em Salvador, claro – que não existe mais.


Time do Botafogo durante excursão ao RS em 1968 com o trio Nei (de pé), Afonso e Caju (agachados) [acervo Maura Moreira]

– Eu estava decidindo que não queria usar entrevistados da academia, engajados, tinha pensado em abrir para os músicos, e daí encontro com o Moraes Moreira. Na hora foi sacramentado. Ele ficou muito amarrado, falou na hora que queria gravar um depoimento, e depois eu fui atrás do Gilberto Gil e do Jards Macalé. Os três ex-jogadores são muito musicais, tem toda uma relação com a vida deles. Na gravação, o Macalé cantou aquele samba rubro-negro, do Wilson Batista… – narra Lucio.

 Flamengo joga amanhã… – interrompe Afonsinho.

– Isso. Ele brincou que ia cantar uma música para os três rubro-negros, mas deixa ele que eu vou dar uma rasteira na montagem. – brinca o diretor.

A dupla de botafoguenses ri.

Ilhas

O encontro entre este repórter, Lucio Branco e Afonsinho se dá numa tarde de agosto em Copacabana, no apartamento da família do ex-jogador em que ele passa o tempo em que está no Rio de Janeiro – na maior parte da semana fica na Ilha de Paquetá, a 15km de barca do centro carioca, onde ocupa o cargo de médico da família durante a semana e bate um bola no campo do Municipal aos domingos.

Tão logo chegamos – Lúcio e eu -, Afonsinho conta que recebera de um amigo um DVD com um filme promocional em que Pelé ensina fundamentos de futebol. O próprio Afonsinho é coadjuvante na peça, produzida na época em atuava no Santos ao lado do Rei, e se lembra de ter visto um trecho, ainda nos anos 1970, numa TV de um aeroporto. Quando peço para ele recordar o time santista do qual fez parte, me leva até a cozinha e puxa um pôster que está apoiado na parede, sobre o micro-ondas; outras fotos estão na sala, mais ainda num acervo pessoal guardado numa mala, e não faltam referências para contar histórias de futebol e da vida que vão de um trecho de um refrão de João Nogueira a depoimentos de Subterrâneos do Futebol, documentário de Maurice Capovilla.

A memória de Afonsinho é cantarolada, filmada. As histórias todas tem um pé numa imagem, num som.

Além da música Meio de Campo, a outra grande presença audiovisual do ex-jogador é no filme Passe Livre, realizado em 1974 pelo diretor Oswaldo Caldeira, e que trata a relação de trabalho no esporte a partir da luta de Afonsinho pelo passe, termo usado no futebol para o vínculo entre os boleiros e os clubes – além do contrato, como existe hoje, o passe era a ligação de posse entre empregador e empregador, ou seja, o jogador, mesmo que estivesse sem contrato com um time, precisava ser comprado por outro, modelo que foi extinto com a Lei Pelé (ou Lei do Passe Livre) imposta em 1998.

“Em outubro de 1972, ao renovar seu último contrato com o Santos, Pelé encontrou dificuldades que havia desconhecido em 16 anos no clube. Ao perceber que o jogador queria encerrar a carreira e assinar apenas por dois anos, os dirigentes criaram exigências procurando extrair ao máximo de seu futebol. Num desabafo, Pelé declarou então à imprensa: homem livre em futebol, homem livre só conheco um, o Afonsinho; este sim pode dizer usando suas palavras que deu o grito de independência ou morte; ninguém mais, o resto é conversa”, narra o início de Passe Livre, coberto por imagens de Pelé cercado por repórteres no Maracanã.

[Breve explicação: Afonsinho foi à Justiça pela liberação do passe depois de ser encostado pelo Botafogo pelo fato do clube não aceitar a postura do jogador – estudante de medicina, engajado, crítico ao modelo autoritário da gestão do futebol e de visual despojado diante da militarização imposta. Em agosto de 1970, a situação chegou ao limite: ele foi proibido de treinar enquanto não tirasse a barba. Sem poder jogar, na condição de posse da agremiação em razão do passe e irredutível em relação à barba, que se tornara símbolo de resistência, Afonsinho conseguiu, em março de 1971, no Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBD, se tornar dono do próprio passe, podendo, a partir daí, negociar os próprios contratos. A atitude foi pioneira no futebol mundial.]


Caju, o cabelo [acervo pessoal]

Agora, quem dá sequência na memória audiovisual de Afonsinho é Lucio Branco, cientista social formado na UERJ que está finalizando Barba, Cabelo e Bigode para contar a história dos três amigos de bola e da vida que, contemporâneos e parceiros de luta, agora têm o elo registrado em vídeo.

– Os três convivem há muito tempo. O Caju entrou no Botafogo em 1967, aos 17 anos, e foi adotado pelo grupo, tem fotos que mostram isso, os três juntos. E o Caju é da mesma família do Afonsinho, né [Paulo Cézar Caju casou-se com a irmã de Afonso]. O Afonsinho fala do Nei sempre, apresenta o Nei como maior jogador da posição dele na sua geração, e o próprio Botafogo também não colocava o Nei como titular porque ele não se curvava à submissão do futebol, um tanto pela história do passe – para mostrar quem era o dono – e também pela estupidez de não usar um jogador que não se enquadra em questões disciplinares. E os três têm muito em comum. O Afonsinho virou realmente um marco pela coisa do passe, mas o Caju era um cara ligado ao movimento black, porra, um tabu total, só ver a repressão que os bailes sofriam no Rio. E o Nei é essa figura fascinante que deveria ser muito mais resgatada. E aí tem uma coisa que tem muito a ver com a linguagem do filme que é a metáfora da ilha. Paquetá é o cenário principal do filme, ainda mais o campo do Municipal, e de certa forma eles são três ilhas nesse ambiente de obscuridade que era viver no futebol naquele período, num momento de repressão, e eles se tornaram ilhas, isolados, mesmo que não fosse a intenção original. Esses caras pensavam em coletividade, em sentimento de solidariedade de classe, não é à toa que é uma geração que se encontra até hoje. – explica Lucio.

Como já foi citado, o filme é uma montagem de depoimentos e imagens do trio e de três músicos escolhidos para completar a narrativa – Gilberto Gil, Jards Macalé e Moraes Moreira. Poderiam ser ainda outros, tamanha a relação dos ex-jogadores com o ambiente musical: Afonsinho é compadre de Paulinho da Viola, por exemplo, Nei Conceição não saía da casa dos Novos Baianos, e Paulo Cézar Caju, um dos responsáveis por agitar a famosa pelada com Bob Marley no campo do Polytheama, de Chico Buarque, tem uma sequência no filme comentando uma pilha de discos de nomes que o embalavam na época.

Na pesquisa de imagens de arquivo, claro, muita coisa explorada vem da filmografia básica do futebol brasileiro – os falados Passe Livre e Subterrâneos, Futebol, de João Moreira Salles, Fragmentos de Dois Escritores, de João Bethencourt, Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade, além de outras cenas de jogos históricos.

A decisão por definitivamente não se utilizar de outras fontes veio da confirmação da ligação musical dos protagonistas no encontro casual com Moraes Moreira, que logo se animou com a proposta. Nomes como Maurício Murad, cujo módulo Sociologia no Futebol foi cursado cinco vezes pelo então aluno Lucio Branco na UERJ, era uma voz em potencial na cabeça do diretor, assim como outros estudiosos do assunto. Fã do diretor Rogério Sganzerla, Lucio tem no imaginário do seu filme algo como o documentário Tudo é Brasil, terceiro da triologia sobre a visita de Orson Welles ao país.

– Nada contra esse formato, há ótimos documentários nesse tom mais jornalístico, baseado em depoimentos. Mas achei que tinha de dar mais a versão deles. Eu sempre pensei na imagem do monolito. Eles começaram daquela forma e estão falando as mesmas coisas, têm uma coerência profunda com o posicionamento, e tudo o que foi acontecendo é uma confirmação de que eles estavam certos. O futebol manteve a estrutura feudal, à brasileira, com um discurso de modernização, para a frente. Tudo isso já foi previsto por esses caras, que já criticavam um outro tipo de futebol.

Além disso, dar prioridade à voz de nomes como Afonsinho, Nei e Caju é colocá-los como protagonistas de uma narrativa em que nunca foram devidamente reconhecidos. Na imprensa, se trabalha com a ideia hegemônica do futebol enquanto negócio e sob determinados parâmetros de conduta, enquanto que, por uma série de circunstâncias, a história da época não é tão revisitada e conhecida quanto a Democracia Corinthiana, por exemplo.


Nei, o bigode [acervo pessoal]

– Eu acho a história da Democracia [Corinthiana] muito legal e tem muito de ser valorizada mesmo, mas por que de certa forma se institucionalizou como praticamente a única experiência de democracia real e autogestão do futebol brasileiro? Talvez porque era outro período, 15 anos antes, com Nei, Afonsinho e Caju, quando era algo praticamente impossível. Eu falei para o Afonsinho certa vez, ele achou interessante, que há uma similaridade entre ele e o Sócrates [Afonsinho, inclusive, substituiu o Doutor, colega em ambas as profissões, como colunista da revista Carta Capital após a morte do ex-capitão da seleção brasileira], o Wladmir e o Caju, o Casagrande e o Nei. Não quero criar nenhuma competição aqui, mas vale registrar que eles vieram antes.Além disso, dar prioridade à voz de nomes como Afonsinho, Nei e Caju é colocá-los como protagonistas de uma narrativa em que nunca foram devidamente reconhecidos. Na imprensa, se trabalha com a ideia hegemônica do futebol enquanto negócio e sob determinados parâmetros de conduta, enquanto que, por uma série de circunstâncias, a história da época não é tão revisitada e conhecida quanto a Democracia Corinthiana, por exemplo.

Barba, Cabelo e Bigode será dedicado a Oscar Maron Filho, morto em 2011 e diretor de Mário Filho – O Criador das Multidões, cineasta que Lucio jamais conseguiu falar e trocar ideias; Geraldo Assoviador, ex-jogador, grande amigo de Zico e que morreu em 1976, no auge da carreira, numa extração de amígdalas; e Marinho Chagas, ídolo do Botafogo falecido no ano passado. Previsto para ser lançado no primeiro semestre de 2016, é uma produção independente e está em processo de financiamento coletivo para a finalização. À época da entrevista, a reportagem acompanharia a gravação de uma cena produzida para o filme, com os personagens numa barbearia no bairro das Laranjeiras, mas a produção acabou adiada: por esquecimento, ou numa rebeldia às avessas, Nei Conceição fez a barba antes da filmagem.

Cinema e Futebol

Afonsinho desce à praia para treinar futebol com o neto, volta com o filme do Pelé já terminado e mostra o livro que está lendo, Tijucamérica, do jornalista José Trajano, que acabou tendo parte das últimas páginas devorada pelo cachorro que fica na casa de Paquetá.

– A melhor coisa que o futebol oferece é o vínculo dos jogadores independente da geração. Nesse ponto o futebol é mesmo a maior invenção do homem [faz referência à frase de Mauro Cezar Pereira, da ESPN, contida no livro escrito por Trajano]. Porque até hoje eu penso como fui me aproximando do Zizinho, do Didi, do Nilton Santos, é uma coisa que até hoje me faz pensar, porque não tinha distância, era sem diferença. E eles são meus santos, aqueles jogadores de 1958-62, nossa, eu tenho uma paixão por aquela seleção. Então teve essa proximidade com o Nei, eu vindo do interior de São Paulo e ele da escolinha do Neca [formação de garotos vinculada ao Botafogo], e teve identificação mesmo, a gente é a mesma coisa, ele é meu irmão social.

O protagonista de Passe Livre não se lembra exatamente da vez em que assistiu o filme pela primeira vez, não que não tenha a produção na memória. Vai recordando, em meio à conversa, de locações, equipamentos, cenas daquele tempo em memória fotográfica. Vira e mexe, seja qual for o assunto relacionado ao futebol, recorre à literatura ou ao cinema para exemplificar.

– Isso tem a ver com o depoimento do Zózimo no Subterrâneos do Futebol, em que ele diz que o jogador sempre foi preso pelo passe e que o dirigente faz o jogador de escravo.


Afonsinho, a barba [acervo pessoal]

Tanto que, quando o papo vai para a presença do futebol em outras formas de expressão, com os próprios livros e filme, ele analisa junto com o próprio diretor:– Isso tem a ver com o depoimento do Zózimo no Subterrâneos do Futebol, em que ele diz que o jogador sempre foi preso pelo passe e que o dirigente faz o jogador de escravo.

– Existe um problema de ordem técnica para se filmar o futebol, mas acho que houve pouco esforço para se criar soluções. Até existe uma tradição de documentários de futebol no Brasil, se você pegar o Garrincha, por exemplo, é sempre usado em reportagens. Aí eu assisti esse filme mais recente do técnico inglês [Maldito Futebol Clube,que conta a história de Brian Clough], que é um filme bacana, com boas imagens de jogo, cortes secos, como tem de ser. E também não existe uma cultura futebolística na população, o futebol é marginalizado, é considerado um tema de menor importância, e curioso que nos anos 1990 ganhando um certo interesse maior, algo meio hypado, o George Best na capa do disco do Oasis. Mas eu acho isso bacana também, camisas retrô, por exemplo, eu tenho algumas, ainda que tenha uma certa cultura fashion, hipster, parecido com o que houve na música. – diz Lucio.

– Tem essa questão técnica, mas tem também uma ideia de que fazer um filme de futebol tem de ter gol para atrair o público, imagina, o cara vai no cinema ver um filme e tem de ter gol? – afirma Afonsinho.

– Falando em Botafogo, tem o filme do Heleno, tem a famosa biografia do Garrincha… – eu coloco.

– Heleno tem muito da Copacabana mítica, aí eu penso por que se faz um filme sobre o Heleno e não sobre o Almir? Têm razões de ordem técnica, mas acho que o Heleno está lá porque está para além do futebol. E aí vem o Rodrigo Santoro, e resgata aquele Rio de Janeiro… Eu até encontrei o José Henrique Fonseca depois [diretor do filme Heleno], eu acho interessante, porque ele foi por uma vertente mais do personagem. Um filme sobre o Almir teria de ter muita bola rolando porque é muita coisa de dentro de campo, o que ele fez no Santos x Milan, por exemplo, é puro cinema. A própria morte dele, meio nebulosa, mas ao que tudo indica para defender o DZI Croquetes, segundo Mário Prata que estava lá e viu, ali onde é o atual Sindicato do Chope. – diz Lúcio.

– Nessa coisa do personagem, também acho que a história do Garrincha acaba muito centrada no alcoolismo. – acrescenta Afonsinho.

– Talvez é não querer bancar a história do boleiro, bancar o futebol como protagonista como fez agora O Drible [livro de Sérgio Rodrigues], meio que nessa coisa antiga de futebol como ópio de povo e assunto de menor importância mesmo… – afirmo.

– É, legal falar disso, a coisa do ópio do povo, que é uma visão totalmente elitizada. Fiz questão de pedir para os três comentarem isso no filme. – finaliza Lucio.

Afonsinho também lembra que viveu uma época em que o meio do futebol se preocupava em tentar elevar o nível intelectual dos jogadores. Pensando em cinema, em documentário, hoje o jogador é mais bem assessorado para falar corretamente, viaja mais, tem mais familiaridade com a comunicação, enquanto os dirigentes, nos anos 1960, achavam que enquanto a seleção brasileira era campeã do mundo, os craques faziam vergonha por serem quase analfabetos, de classe popular. E recorda:

– Na época da fundação do Trem da Alegria, falavam que tinha um cara legal no São Cristóvão, e a gente precisava de um campo, então eu fui lá. O diretor do clube, Benito, consertava radiador de carro, e eu cheguei na oficina dele para conversar. Nossa ideia era juntar uma turma que estava sem jogar, porque a intervenção da ditadura acabou com os aspirantes, que para mim era o equilíbrio, a melhor coisa que tinha. O Benito achou legal. Era começo de ano e ia ter o Campeonato Carioca. O São Cristóvão passou uns dois ou três campeonatos sem ganhar um jogo, mas não tinha descenso então se mantinha no torneio. Nosso time tinha o Brito, o Alcir, o Samarone, eu, vários jogadores de nome. Era a época da resistência mesmo, a imprensa alternativa, o cinema Super 8, aquela coisa no teatro de ‘Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come‘, o Clube do Samba, a gente no futebol. E seria legal se a gente jogasse o campeonato, pô, jogar no Maracanã, com o nome do São Cristóvão… Aí tinha acabado de assumir a direção do clube um cara chamado Fred, duma empresa de concreto. Eu fui conversar na parte de cima da sede, um salão onde sempre tinha um forró, aquela área sempre teve feira nordestina e tal. Mas aí, olha só: o Fred, na maior boa vontade, era um cara legal, mas não se conformava com essa coisa de jogador ser semi-analfabeto, essa coisa de ‘nóis vai, nóis volta’, e para valorizar ele fez uma parceria com a Gama Filho, para trazer universitários a fim de melhorar o nível intelectual do jogador. E aí ele queria trazer uns três ou quatro nossos para o time, mas eu falei: olha, agradeço, mas os caras do futebol são esses aqui.  – conta Afonsinho.


Caju e Afonsinho mantêm um vínculo de meio século que nasceu dentro de campo, no Botafogo [acervo pessoal]

Ele lembra ainda que nomes como Telê Santana e Paulinho de Almeida (“ele tinha o eufemismo de ser chamado de disciplinador”) se importavam com a roupa do atleta, com aprimorar a aparência.

– Tinha um ponta-esquerda lá do Villa Nova, de Minas Gerais, que começou a jogar para caralho no Campeonato Mineiro e o São Paulo contratou. Aí com a luva ele comprou um Ford Galaxie e o resto de disco. Eu acho isso maravilhoso, porque o Brasil inteiro vive das imagens da TV, da revista, da mulher pelada na praia, aí o jovem fica maluco com isso, porra, até eu, primeiro carro que tive foi um usado, mas foi um Karmanguia. Como é que você aperta um botão no garoto e diz, olha, agora é terno Armani e carro importado? É a música do Moraes Moreira, né, mamãe eu não quero, trabalhar de sol a sol, quero ser cantor de rádio e jogador de futebol. Hoje é a Globo, já foi a Manchete, o Cruzeiro, o jornal do cinema, o Brasil inteiro vive disso. – analisa.

Nesse sentido, cita os casos de Edmundo – inclusive foi tema de livro, Afonsinho & Edmundo – A Rebeldia no Futebol Brasileiro, de José Paulo Florenzano – e Jobson, como jogadores talentosos que, em razão de problemas pessoais, tiveram difícil enfrentamento com o ambiente conservador do futebol. Enfrentamento que, no caso de Afonsinho, se deu pelo contrário:

– Mas se queriam aumentar o nível intelectual, chega você, jogador de futebol e formado em medicina, e também vira um problema?

– Pois é, aí vira o líder negativo. Não tinha treinamento integral e consegui ir na fronteira dos dois, estudar e jogar. Mas deu no que deu.

Meio século depois

Já era noite quando confirmei com Afonsinho a efeméride dos 50 anos de seu primeiro jogo pelo Botafogo – 26 de setembro de 1965, Campeonato Carioca, diante do Fluminense – e, portanto, 50 anos de vida no Rio de Janeiro que o chamou a atenção quando jovem jogador por vestir a camisa do time de Garrincha e Nilton Santos, mas também por estar perto do samba.

Pergunto então como ele tem suportado seguir acompanhando o futebol atual, dos clichês como volante moderno ou camisa 10 clássico, da exportação de jogadores para Europa e dos interesses financeiros acima de qualquer tradição.

– Eu quase não consigo falar sobre isso porque me faz mal. Primeiro eu penso que a gente não pode esquecer do geral, do macro. Por exemplo, parece que jogador está voltando a usar chuteira preta, então isso é cuidar do dia-a-dia. Mas não esquecer do macro, que é a sociedade metida em prevalecer uma ideia unilateral chamada neoliberalismo. Estamos falando da cor da chuteira, mas não podemos esquecer dessa grande desgraça da humanidade atual, dos relacionamentos como estão postos, das metas, da coisa dolorosa que é a vida que a gente vive. Então isso está dentro do futebol. Legal, na Champions estão os melhores jogadores, está o Messi, que é uma maravilha, o Neymar, outra. Mas mesmo assim é essa coisa neoliberal, da correria, com falta de criatividade. Um dia acho que a história vai olhar para esse momento e falar: porra, eles se relacionavam dessa maneira? E isso está no futebol.

– Você falou de falta de criatividade, de neoliberalismo, e pensei na padronização do jogo, em africanos jogando como asiáticos, como europeus…

– Imagina isso, os caras na África, além de estarem num continente abandonado, com uma riqueza cultural que influencia o mundo todo, estão ainda submetidos a esse sistema, enquanto podiam estar brotando coisas interessantes. Globalização, que é o homem daqui se aproximar com o homem de lá, não tem nada melhor no mundo. Agora, aproximar a exploração? A submissão? É uma desgraça. Mas continua a luta do homem, de sempre, pela liberdade, contra a submissão. Vai fazer o que, pasteurizar a sociedade? A coisa mais linda que existe é a diversidade. Isso é muito primário, mas estamos nessa ideia de que tudo para ganhar dinheiro, vale. Alguém vai me convencer disso um dia? Isso como ideia não existe, ninguém sustenta, isso é predomínio ganho pela força, pela imposição. Então a luta do homem continua.

Então a luta do homem continua.


Lucio Branco e Afonsinho, agosto de 2015, Copacabana [crédito: paulo silva jr/sarriá]

Texto originalmente publicado no www.sarria.com.br, em 19 de outubro de 2015.

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