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LEMBRANÇAS DE UM TEMPO ESQUECIDO

15 / abril / 2018

por Émerson Gáspari


Minhas lembranças remontam ao ano de 1895, quando nasci em São Paulo. Tenho, portanto, 123 anos. Nessa data tão especial para mim, pouca gente se recorda e ninguém me cumprimenta ou mesmo me agradece pelo fato de eu ainda estar vivo.

Essa legião de egoístas parece ocupada demais, com o nariz enterrado num celular durante o dia e a barriga encostada numa mesa de bar, tomando cerveja entre amigos, à noite. E são milhões deles. Mas não parece haver uma viva alma neste país tão bonito, que se interesse pela minha história, meu passado, minhas lembranças.

Desse modo, não me resta alternativa – a não ser eu mesmo – de recordar tantos momentos inesquecíveis que proporcionei a todos esses egoístas e a milhões de outros, que já se foram sem terem tido a consideração de me agradecerem por tantas emoções desfrutadas.


Poucos prestigiaram meu nascimento, sob a batuta de Charles Miller, no confronto Gas Works Team x SP Railway Team. Mas aos poucos, fui me tornando popular e os momentos incríveis, se sucedendo, aos montes. Como em 1919, no campo da Rua Paissandu , onde o goleiro Marcos de Mendonça defendeu um penal e três rebotes em seguida, dando o  tricampeonato ao Flu, diante do Mengo. Naquele mesmo ano e defendida pelo mesmo Marcos, a Seleção Brasileira derrotou – jána segunda prorrogação da final (de 150 minutos!) de um jogo extra – aos uruguaios, com um gol de Friedenreich, dentro do estádio das Laranjeiras abarrotado.

Saibam que sequer rádio havia para informar aos torcedores que não estavam presentes e o boca-a-boca era o meio utilizado para espalhar a notícia. Ou os jornais. Mas a paixão que eu despertava em vocês já era única, incomparável, nesta época tão longínqua.

Momentos sublimes como o primeiro gol de bicicleta de Leônidas pelo São Paulo, em cima do Palestra Itália, em 1942. Ou polêmicos, como o gol de cabeça de Valido, diante do Vasco, que resultou no primeiro tricampeonato do Flamengo. Também polêmicos foram muitos personagens, nesses anos todos: Heleno, Almir, Edmundo… todos craques! Aliás, craque é o que mais produzi no país: que nação teve um driblador como Garrincha? Na final do Cariocão de 62, ele destruiu o Mengo de Gérson, que preferiu jogar ao lado dele, no Botafogo. Mesma providência tomada antes, pelo “Enciclopédia” Nilton Santos. E olhem que Nilton era um monstro capaz marcar um atacante de costas, pela sombra projetada no gramado ou tirar uma bola da poça d’agua na maior categoria, pisando nela e aproveitando o “empuxo”. Igualzinho Didi, que tirava o “ponto de gravidade” da pelota, ao cobrar uma falta com sua “folha-seca”.


Está difícil para os mais novos? Não entendem direito o que lhes conto? Perguntem aos velhos torcedores: eles decerto se lembrarão desses monstros sagrados e de outros como Zizinho, o “Mestre Ziza”. Meu Deus! Só numa terra abençoada para eu criar craques desse naipe. Pena que seu povo despreze tanto a memória, a história e desconheça fatos e pessoas.

O que dizer do Santos de Pelé & Cia, então? Jesus! Beirava o inacreditável: até hoje muitos não creem que o clube parou guerras, dominou o mundo e revelou o maior jogador de todos os tempos; Pelé. Não! Muitos brasileiros, ao contrário, preferem eleger um craque “modinha” do exterior, desfilando toda sua ignorância futebolística.

Tem jovenzinho que não acredita que aquele Santos, em 58, venceu o Palmeiras no Rio-SP, por 7×6. Ou que Pelé certa feita, em Bauru, marcou três vezes um gol de cabeça, em escanteios cobrados em sequência por Pepe, até que o juiz desistisse de anulá-los. Simples assim!


Desdenham dos mil gols do Rei! Duvidam que Mané  jogasse o que jogou, tendo uma bacia deslocada seis centímetros, um joelho virado para dentro e outro para fora. Que Djalma Santos cobrasse laterais, jogando bolas que cruzavam toda a grande área. Que Domingos da Guia, o “Divino Mestre”, tenha sido o único jogador campeão consecutivamente no Brasil, Uruguai e Argentina. E era um zagueiro… “o” zagueiro.

Que Jair Rosa Pinto disparasse bombas que faziam curvas em “S” (como as que o Arsenal levou na sacola em 49, quando voltou pra Inglaterra, após desembarcar invicto no Rio). Que para Dino Sani, não houvesse “bola quadrada”: do jeito que viesse o passe, a bola seria dominada e posta no chão, tranquilamente; daí saindo viradas de jogo ou lançamentos diagonais perfeitos. Pobres incultos! Quando é que os torcedores de hoje irão se interessar em saber quem foi Carlito Rocha no Botafogo? Belfort Duarte no América? Lara no Grêmio? Julinho Botelho na Portuguesa? Rivellino no Corinthians? Dirceu Lopes no Cruzeiro? Ou que Castilho amputou parte de um dedo para participar de uma decisão pelo Flu? Ou ainda o que foi aquele Bahia de 59? E o Atlético de Reinaldo? Será que lhes passa pela cabeça que o Bangu já foi vice Brasileiro, que o Amériquinha já foi grande; que Ponte, Guarani, Portuguesa, América-MG viveram épocas áureas? Que clubes “pequenos” como Ferroviária, Bragantino, Paulista, Santo André, São Caetano, Americano e muitos outros já tiveram lindas conquistas no passado? Imaginam o que possa ter sido o Paulistano, bem como sua excursão por gramados franceses?

Como podem acreditar que o Botafogo, com mais três jogadores “enxertados” por Zagallo, vestiu a camisa da Seleção e deu uma surra na Argentina em 68, com o quarto gol de Jairzinho sendo marcado após 52 passes consecutivos, tendo a participação de todos os brasileiros no lance, sem que os gringos sequer conseguissem tocar na bola?

Ao invés de lerem e aprenderem que conquistamos o penta em 32 partidas invictas, preferem dedicar seu tão precioso tempo colecionando figurinhas da Copa, repleta de…estrangeiros?!


Hoje temos em vídeo, gols maravilhosos registrados nos últimos 40 anos. Como o de Dinamite, no último minuto, pra cima do Fogão em 76, naquele chapéu cinematográfico.  Ou os de Romário, despachando o Uruguai e classificando a Seleção para a Copa de 94. E os de Zico pelo Flamengo, à frente de um esquadrão que conquistou o Mundial sem dar chances ao Liverpool.

Às vezes, o “imponderável” (como escreveriam Nelson Rodrigues ou João Saldanha) se dava numa simples aposta, como quando Nelinho chutou uma bola por sobre o Mineirão. Ou mesmo num treino do Verdão, quando Leão defendeu de bicicleta (e com a canhota!), um toque de Toninho, que o estava encobrindo (pena que sem registro).

Mas dá pra assistir como foi maravilhoso aquele esquadrão do Guarani de 78, o Inter de Falcão, o Timão do Dr. Sócrates, a Seleção de Telê de 82. A inigualável conquista do tri, em 70.

Mas não! Os torcedores de hoje preferem relembrar que o Brasil tomou de 7×1 da Alemanha em casa e que isso foi um vexame “maior” que o da Copa de 50, no “Maracanazzo”. Pergunte a eles se ao invés disso, procuraram assistir em taipe, aos três minutos iniciais da estreia de Pelé e Garrincha diante da URSS, em 58. Ou se sabem que essa dupla jamais foi derrotada, em 40 jogos pelo escrete canarinho. A preferência deles é outra: usar camisas de clubes europeus!


Sabem tudo de Messi e CR7, mas não imaginam que Nilton Santos, Garrincha e Pelé tem escalação garantida em qualquer seleção mundial de todos os tempos que se forme no exterior. Um gol de bicicleta de Cristiano Ronaldo é celebrado com “perfeição humana”, mas desconhecem que Leônidas da Silva e Pelé cansaram de fazer gols assim.

Capaz de não acreditarem também, que no Corinthians do IV Centenário, havia um artilheiro chamado Baltazar, que fez mais gols de cabeça do que qualquer um desses “deuses”, que a mídia repercute e amplifica. Certamente desacreditarão que no Pacaembu, aliás, havia uma charmosa concha acústica, que o ingresso era barato, e a torcida, mais presente e pacífica.

Hoje é “arena multiuso”, “chuteira dourada”, “bola científica”, graminha sintética, torcedores com camisetas caríssimas, games de última geração. Ah!… Quanta saudade dos tempos românticos, no qual torcedores pintavam bandeiras e camisetas, para irem ao estádio!

Bolas costuradas à mão, nada de “frescuras” nos uniformes. Todo garoto que se prezava, jogava bem uma pelada em chão de terra batida. Ou pelo menos, deixava a imaginação fluir com seus jogos de botão, cujas escalações pouco mudavam, de uma temporada para outra.

É por essas e outras que ando convalescendo por aí: esvaziado de craques, mal administrado, sem a mesma credibilidade de antes, desde os tais 7×1. É por isso que eu, pobre futebol brasileiro, vou vivendo praticamente das lembranças que um dia meu glorioso passado produziu, na cabeça de uma meia dúzia de saudosistas abnegados.

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