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HOMEM AO MAR

22 / junho / 2017

por Sergio Pugliese


(Foto: Reprodução)

Após nadar mil metros numa velocidade infinitamente superior aos recordes mundiais do americano Michael Phelps, Arnaldo buscou ar e apenas com os olhinhos para fora d´água conferiu se o mar estava para peixe. Sinal verde, partiu para a segunda etapa da prova: sair correndo e chegar são e salvo em casa, na Rua Inhangá, em Copacabana. Fim de semana sim e o outro também a cena era comum nos clássicos de futebol de praia entre Lá Vai Bola, Radar, Copaleme e Ouro Preto, do saudoso Raphael de Almeida Magalhães.

– Antes de aprender a apitar, aprendi a nadar – divertiu-se o árbitro Arnaldo Cezar Coelho durante jantar com a equipe do A Pelada Como Ela É. 

Nesse tempo a regra ainda não era clara e sequer havia uma Liga de Árbitros representando a categoria na praia. Arnaldo viveu a época de ouro do futebol de areia, acompanhou sua evolução e o surgimento de vários craques, como Haroldo, do Lá Vai Bola, contratado pelo Santos, de Pelé. Muitos técnicos eram porteiros, como Tião, do Dínamo, Tião, do Juventus, e Jaime Pafúncio, do Maravilha. Até o famoso árbitro Armando Marques, que usava o pseudônimo de Rui, era dono de um time, o Lagoa, de Ipanema. A rivalidade era tanta que muitos jogos não terminavam. Policiais não eram vistos e a torcida transbordava o paredão, apelido da calçada que, antes de tantos aterros, ficava acima do nível da areia. Um dia, o folclórico Matarazzo anulou gol legítimo após batida de escanteio. Terminara o jogo com a bola no ar num lance idêntico ao de Zico na Copa da Suécia, em 78. O pau comeu, mas Matarazzo, Deus sabe como, conseguiu escapar por entre as pernas dos jogadores, no melhor estilo futebol americano. De casa, ligou para os técnicos de Radar e Copaleme e deu o resultado. 

– O couro comia e era impensável uma menina namorar alguém de outra turma – recordou, enquanto apreciava o vinho italiano Sassoalloro, um de seus preferidos. 


(Foto: Reprodução)

Arnaldo cresceu vendo os árbitros fugindo e sendo xingados. Sua mãe ficava de queixo caído com as barbaridades descritas sobre ela nas súmulas. Mas ele foi aprendendo a se defender e uma das soluções era apitar próximo ao mar. Quando a chapa esquentava, mergulhava, nadava da Rua Figueiredo Magalhães até a Praça do Lido e desaparecia. Mas foi graças a esse estágio, esse laboratório infernal, que Arnaldo aprendeu a controlar os nervos, amenizar situações críticas com paciência e jogo de cintura. Foi nos buracos da areia e sol escaldante que adquiriu um preparo físico invejável e cultivou tornozelos resistentes. Quase não se contundia e voava nos gramados. Acompanhava os lances de perto e por apitar sem bandeirinhas durante muitos anos tinha excelente visão periférica. Não tem dúvida que os embates nas praias contribuíram para levá-lo a duas Copas do Mundo e duas Olimpíadas. 

– Vivi grandes momentos de minha vida na areia. Ela foi minha escola – atestou. 

Ao todo foram onze Copas do Mundo. Oito pela Rede Globo, onde é comentarista há 27 anos, levado por Armando Nogueira, duas apitando e bandeirando, 78 e 82, e uma, em 74, como carregador de malas de Carlinhos Niemeyer, criador do Canal 100. As emoções foram infinitas e talvez não tivessem sido tantas se passasse nos testes para meio campo que fez em todos os clubes cariocas. Era apenas um jogador esforçado. Foi bem melhor correr lado a lado dos maiores jogadores do mundo, vê-los por um ângulo diferente. Nunca esqueceu de sua estreia no Maracanã, em 66. Muitas emoções! Antes de falar como foi degustou mais um gole de vinho, saboreou a lembrança por alguns segundos. Como o tempo passa! A bola era laranja. De um lado Altair pelo Flu e do outro, Evaristo pelo Fla. Não era preciso falar mais nada. 

– E a final na Copa do Mundo? – quis saber Reyes de Sá Viana do Castelo, bandeirinha nas horas vagas e camisa 13 do A Pelada Como Ela É. 

A resposta não veio, só um prolongado silêncio, como se a maquininha do túnel do tempo pedisse para ficar ali, paradinha, enquadrada naquele dia. Então, nós respondemos por ele. 


(Foto: Reprodução)

Quando foi escalado para a final da Copa do Mundo, em 82, Arnaldo sentiu próximo o dia da glória. Ele era o Brasil na final! Ao entrar em campo para fazer o reconhecimento olhou para os lados e não viu o mar, seu antigo refúgio. Sorriu e emocionou-se ao lembrar-se dos tempos de menino quando assistia os jogos sentado no paredão, entre as ruas Ronald de Carvalho e Duvivier. Até que sua hora chegou. Um árbitro faltou e alguns torcedores sabendo de sua paixão pelo apito o incentivaram a substituí-lo. Nas aulas de Educação Física, do Colégio Mallet Soares, os professores Renato Brito Cunha, Juarez e Claudio já haviam percebido seu talento. Na praia, o bicho pegava, mas nesse dia Arnaldo fechou os olhos, respirou fundo e se apresentou aos capitães. Tinha 16 anos. O jogo foi bem mais complicado do que a final entre Itália e Alemanha. Nessa partida, só o alemão chato Ulrich Stielike catimbou. Na areia, o cercaram algumas vezes. A pressão foi forte, mas o moleque era duro na queda. E nos dois jogos mais importantes de sua vida, Arnaldo enfrentou os mesmos fantasmas, o medo de errar e de cometer injustiças. Mas tanto em Copacabana, carregado de sonhos, quanto no monumental estádio espanhol Santiago Bernabeu, em busca da definitiva consagração, homem e menino saíram vencedores.

 

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É, do Jornal O Globo, no dia 26 de março de 2011.

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