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o maquinista

texto: Sergio Pugliese | fotos: Marcelo Tabach | vídeo e edição: Daniel Perpétuo 

 

Sentado no sofá de seu apartamento, em Copacabana, o maquinista assistiu à partida entre Botafogo e Juareizense, pela Copa do Brasil. No fim do jogo, sozinho na sala, olhou para o quadro de Garrincha, grande ídolo, e sentiu uma pontada de nostalgia no peito. Começou a revirar as gavetas e estantes em busca de registros do final da década de 60 e início de 70 quando os Beatles fervilhavam, o Brasil penava com a ditadura militar e sua barba começava a brotar e incomodar.

Seu objetivo era achar fotos do Trem da Alegria, time de pelada itinerante criado por ele para manter em atividade jogadores sem contrato, ex-craques, novos talentos e simpatizantes em geral. Essa legião lotou os vagões da locomotiva e, numa época em que as baionetas davam as ordens, os craques viajaram o país de megafone em punho e de estação em estação, gol após gol, conquistaram a Lei do Passe Livre, um marco na carreira dos atletas.

No último feriado de 1 de maio, Dia do Trabalhador, o Trem da Alegria comemorou 40 anos com um rachão no Clube Municipal, em Paquetá. Foi casa cheia e a equipe do Museu da Pelada estava lá! As fotos resgatadas em sua busca foram expostas num mural. A galera matou a saudade e o maquinista, na verdade o médico e ex-jogador Afonsinho, filho de ferroviário e professora, sentiu a confortável sensação do dever cumprido ao lado de seu poderoso exército de rebeldes com causa, entre eles o inseparável Nei Conceição.

Hoje cada jogador é uma empresa, não se pensa mais no coletivo e as prioridades são outras

— Afonsinho

— Hoje cada jogador é uma empresa, não se pensa mais no coletivo e as prioridades são outras – opinou Afonsinho.

Nascido em São Paulo, sua vida sempre foi bola e aos 17 já chamava atenção como meia- direita do Infantil Náutico, de Jaú. Não demorou e foi indicado para Botafogo e Fluminense. Assinou contrato com o alvinegro e teve atuações exaltadas pelo jornalista Nelson Rodrigues, mas a incompatibilidade veio à tona quando Zagallo assumiu a comissão técnica.

Foi desligado e sem espaço para treinar, exercer a profissão, levou para a mesa do bar debates calorosos sobre a função das organizações trabalhistas responsáveis pelos interesses da classe. Nessa época ainda não havia a figura do grande empresário, o futebol era menos mercantilista e os militares estavam infiltrados nas diretorias dos clubes.

A saída foi montar um time de pelada para abrigar jogadores na minha situação

— Afonsinho

Foto: Arquivo

— A saída foi montar um time de pelada para abrigar jogadores na minha situação – lembrou.

A visibilidade foi impressionante, mas Afonsinho conseguiu conciliar o Trem da Alegria com a carreira profissional e a faculdade de Medicina, onde se especializou em Fisiatria. Longe do Botafogo, foi treinar no Olaria. Ao todo, passou quatro vezes pelo time da Rua Bariri, também quando saiu de Vasco, Flamengo e Santos.

No Olaria, deixou a barba e o cabelo crescerem e ficou a cara do guerrilheiro Che Guevara. No retorno a General Severiano, a direção do Botafogo tomou um baita susto com o novo visual e sugeriu uma aparada geral na cabeleira. Ele negou, claro. Desafiar o sistema estabelecido era com ele mesmo.

Zagallo disse que eu parecia tudo, tocador de guitarra, cantor de iê iê iê, menos jogador

— Afonsinho

— Zagallo disse que eu parecia tudo, tocador de guitarra, cantor de iê iê iê, menos jogador – disse, morrendo de rir.

Em pouco tempo vários jogadores imitaram seu estilo e o Trem da Alegria engrenou de vez. Campeões mundiais, como Garrincha, Nilton Santos, Paulo Cesar Caju, Jair Marinho e Altair rodaram o país se apresentando pelo time, assim como os cantores Fagner, Paulinho da Viola, Moraes Moreira e os Novos Baianos. Gilberto Gil na volta do exílio compôs Meio de Campo: “Prezado amigo, Afonsinho, eu continuo aqui mesmo aperfeiçoando o imperfeito….” e os saudosos João Nogueira e Roberto Ribeiro deram voz ao hino do time. O sonho atual de Afonsinho é ter o samba gravado por Diogo Nogueira.

Em Pé: Aílton Pelé, Marcio, Dedé, Fagner, Zorba Devagar, Marcolino (Goytacaz)  e Cadô (XV de Jaú). Abaixados: Moraes Moreira, Abel Silva, Paulinho da Viola, Afonsinho, Gato Félix (Novos Baianos) e Cristiano Menezes (jornalista)

Em Paquetá, a festa foi completa. Difícil foi equilibrar os times. Me coloquei ao lado de Afonsinho e a pressão deu certo. Recebi a 14. Nei também caiu no mesmo time.

— Não vai me decepcionar, hein! – brincou Afonsinho, que me escalou na ponta-esquerda.

Não vai me decepcionar, hein!

— Afonsinho

Emoção demais ver Nei e Afonsinho juntos! Velhos amigos de guerra, jogam até hoje. Os olhos de Afonsinho brilhavam ao ver tantos amigos ao redor. Descem da barca e caminham um quilômetro até o campo, como missionários. A cultura da ostentação passou longe daquela turma. Carrões, mansões, cordões. Naquela época, atitude era contestar e usaram a pelada como um instrumento de reivindicação. O Trem da Alegria não foi um modismo como os tantos atuais, mas foi um posicionamento político ousado numa época de repressão.

No campo, ansiedade para o início do jogo contra o time de convidados. O maquinista Afonsinho bateu palmas, reclamou do sol forte e conferiu o posicionamento de seus jogadores. Nei Conceição o encarou com carinho. Tantos anos! Antes do apito inicial, o craque alisou a barba, orgulhosamente intacta e branquinha, carregada de história, e foi à luta.