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O PAPA DA LATERAL

texto: Sergio Pugliese e André Mendonça | foto: Marcelo Tabach
vídeo: Rodrigo Cabral | charge: Marcus Vinicius Cabral

Quando nossa equipe pensou em entrevistar Leandro, o lendário lateral-direito do Flamengo, ninguém chegou a nos desaconselhar, mas foram logo avisando que ele era recluso, fechadão, caipira, bicho do mato, tímido, de poucas palavras, na dele e por aí vai. Meu Deus, num mundo repleto de pernas de pau fanfarrões, teria perfil melhor do que esse? Então, fomos ao encontro do astro rubro-negro!!! O chargista Marcos Vinícius Cabral fez a ponte e nos acompanhou ao “esconderijo do ermitão”, em Cabo Frio, onde o craque nasceu, cresceu e construiu a Pousada do Leandro, seu porto-seguro para curtir a aposentadoria. No caminho, eu, Marcos, o videomaker Daniel Perpetuo, o jornalista André Mendonça e o fotógrafo Marcelo Tabach relembramos passagens marcantes do jogador, como o golaço-aço-aço no último minuto de um Fla x Flu e a fuga da concentração da seleção brasileira, em 86.

– Sei lá, acho que ele não gosta de tocar nesse assunto – alertou Marcos Vinícius, que está ilustrando a biografia de Leandro, escrita por Gustavo Roman.

Na verdade, não sabíamos nada até estacionarmos na porta da pousada e sermos recepcionado por um tremendo sorrisão.

– Que demora, já estava desistindo de esperar – brincou.

Graças a Deus nunca precisei marcar o Uri Geller.

Não sou vidente, mas, naquele momento, tive a certeza de que daria liga. E como deu!!!! De cara, perguntou como poderia colaborar, mas alertou sobre sua timidez. Sinceramente, nunca vi um tímido tão descontraído, divertido e contador de histórias. Sobre sua vitoriosa carreira, assumiu-se sortudo por não ter enfrentado Júlio César Uri Geller, companheiro de equipe, ponta-esquerda entortador. E mesmo tendo marcado pontas espetaculares como João Paulo, do Santos, e Zé Sérgio, do São Paulo, divertiu-se ao lembrar de Lupercínio, pontinha do Paysandu, que o deixou de língua de fora, num jogo em Belém. No fim da partida agradeceu aos céus, afinal de contas não o enfrentaria tão cedo.

– Poucos dias depois li no jornal que o Botafogo o havia contratado, que inferno!!!! – divertiu-se, garantindo que não foi praga sua a sequência de contusões sofrida pelo algoz, o que evitou novo confronto.

Ao perceber que a entrevista rolava suave como a nave, o ousado Marcelo Tabach conseguiu quatro peroás na vizinhança e pediu ao pessoal da cozinha para fritá-los. Desconfiado, Leandro quis entender o motivo. Seria fome?

– Queria fazer uma brincadeira com o seu apelido, Peixe Frito – confessou, apreensivo.

A mãe, Dona Cleuza, sempre odiou esses apelidos. Também tem o “Mulinha” ou “Mula Manca”, criados por Paulo César Carpegiani, maestro do meio-campo, companheiro de incontáveis títulos, entre eles a Libertadores e o Mundial, em 81. O “Peixe Frito” é por um motivo simples. Leandro é viciado num peixinho frito e sempre comemorou seus títulos saboreando os petiscos. Em Cabo Frio, só o tratam assim.

– Minha mãe fica doida porque diz que eu tenho um nome muito bonito, mas me divirto – desdenhou.

O “Mula Manca” é por conta das artroses nos joelhos, as mesmas que o fizeram desistir de pular o muro da concentração, em 86, e entrar pela porta da frente do hotel, de madrugada.

– Mas, Leandro, como um cara tão disciplinado como você foi cair numa dessas – perguntei, tentando dar uma aliviada.

Nunca fui santo.

Primeiro veio a gargalhada, emendada com a resposta, para mim, surpreendente.

– Nunca fui santinho, adorava a noite e vivia na Boate Hippopotamus. Naquela noite fatídica, todos queriam vir embora e eu falei ’nem pensar, agora que tá ficando bom’. A rapaziada se mandou, mas ele e Renato Gaúcho esticaram até às duas da madrugada.

Leandro só não contava com a altura do muro e, assim como Renato Gaúcho, olhou para o alto e suspirou um “nem pensar”. Chutou o balde e entrou pela porta principal. Foram dedurados e na manhã seguinte, Telê o sacudiu na cama exigindo explicações.

– E eu lá lembrava de alguma coisa – gargalhou.

A decisão de cortá-los foi abortada após pedido dos jogadores, mas na convocação seguinte Renato Gaúcho não foi incluído e, em solidariedade, Leandro não se apresentou.

– Zico suplicou para que reavaliasse minha decisão, mas não voltei atrás.

Não me arrependo de ter sido solidário a Renato Gaúcho no corte da seleção, em 86.

Leandro não mostra-se arrependido e revela que apesar do gesto de fidelidade nem era tão amigo de Renato. Mas de festas sempre gostou e se esbaldava a cada título do Flamengo.

– Como foram muitos, imagina a quantidade… – brincou.

A verdade é que em campo a rapaziada resolvia. A relação de amizade era uma das receitas do sucesso daquele grupo, garante. Se hoje, os jogadores passam pouquíssimas horas dentro do clube, Leandro era um rato da Gávea. Só não atuou como goleiro, apesar de, na adolescência, fechar o gol atuando pelos Itajuru e Tamoyo. Nas folgas, aparecia no Flamengo para jogar cartas, porrinha, sinuca, ping-pong e totó. Conhecia todos os funcionários, afinal começou ali nas categorias de base e nunca vestiu outra camisa. Em 78, quarto reserva, foi emprestado ao Inter, mas reprovado nos exames médicos. Agradece até hoje por não ter interrompido sua história com o “mais querido”, iniciada por uma obra do destino e do 464 (Grajaú-Leblon). Veio ao Rio fazer pré-vestibular para Educação Física, estudava no Instituto Guanabara e morava na Praça da Bandeira. Um dia ele e o primo Nonato pegaram o ônibus, rumo à praia. O ponto final era em frente ao Flamengo. Na descida, Nonato, conhecendo a categoria do moleque, o incentivou a fazer um teste no seu time de coração. O pegou pelo braço e falou “vamos lá!”.

Minha camisa foi enterrada com o locutor Jorge Curi.

– Eram outros tempos. Na recepção nos pediram para voltar à tarde e procurar o Seu Orlando, responsável pela peneira. Estava sem chuteira, consegui um número maior, enchi os bicos com algodão, treinei, fiz gol e me pediram para voltar – recordou.

No treino seguinte, marcou mais dois gols e não parou mais. Para os curiosos, como o saudoso roupeiro Bolinha, que perguntavam sobre experiências anteriores dizia ter vindo do Santos. O pessoal se impressionava. Claro que se alguém questionasse se era o Santos, de Pelé, ele abria o jogo e revelava ser o Santos, de Iguaba Grande, onde começou como lateral. E ria, ria e ria!!!! Leandro nos impressionou. Pureza é pouco! E emoção de inundar os olhos bastava lembrar da torcida, da Nação rubro-negra, apresentada a ele pelo pai Eliziário. Todas as noites quando se deita, fecha os olhos e imagina os gritos da maior do mundo enquanto sobe as escadas para o gramado. Como homenagem aos torcedores cantou o hino do Mengão….”uma vez Flamengo, sempre Flamengo…”. Mostrou o braço arrepiado e lembrou-se de Jorge Curi narrando o gol mais bonito de sua vida, de fora da área, contra o Fluminense, no estadual de 85.

– Pouco tempo depois ele morreu e sua família pediu minha camisa para ser enterrada com ele. É emoção demais! – disse, olhos cheios d´água.

Pedimos para que ele narrasse esse gol ao estilo Jorge Curi e ele espantou-se.

– Caraca, vocês não querem mais nada?

E Tabach emendou….

– Sim, que você pose segurando os peixes fritos.