Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

com as mãos e com os pés

entrevista e texto: Marcello Pires | fotos e vídeo: Daniel Planel 

Se não vai ser fácil para o torcedor carioca ligar a televisão e não encontrar mais aquela baixinha de 1,69m com o número 14 às costas no meio das “gigantes” do time feminino de vôlei do Rio de Janeiro, imagine para Fabiana Alvim de Oliveira saber que de agora em diante não terá mais o privilégio de escutar as broncas e os ensinamentos do técnico Bernardinho de dentro da quadra. Depois de se despedir da seleção brasileira em 2014 com duas medalhas olímpicas e a frustração de ter deixado o título mundial escapar por duas vezes, a melhor líbero do mundo privará os amantes da modalidade dos seus peixinhos e defesas espetaculares de uma vez por todas. Depois de mais de 20 anos de uma carreira brilhante e jogada apenas por clubes do estado de sua cidade natal, a carioca de Irajá decidiu se aposentar aos 38 anos.

A decisão não veio por acaso e tampouco tomada de uma hora para outra. Veio com o tempo, com as dores e um sacrifício de mais de 20 anos que acompanha todo atleta profissional. Antes de assinar a sentença de sua primeira “morte”, a líbero do Rio de Janeiro conversou com gente importante, ouviu muitos conselhos de ex-jogadores e conseguir driblar a teimosia do técnico Bernardinho, que a queria em quadra por mais uma temporada.

– De uma hora para outra é impossível, uma coisa que eu fiz por 20 anos. Eu vinha me preparando para esse momento porque tive o privilégio de conviver com Fofão, Fernanda (Venturini), jogadoras que passaram por esse processo, outras em outros clubes, muitos amigos, e trocar essas ideias de como é, se existia uma cartilha, se realmente está na hora, e a unanimidade que encontrei é que cada um teve um motivo diferente. Mas o motivo que reuniu o maior número de pessoas foi à questão física, que é o maior embate que nós temos e entender que existe a curva ascendente e descendente. Em 2014 sai da seleção, fiquei só no clube e há duas temporadas vinha pensando que podia ser a última, mas chegava ao final e decidia jogar mais uma porque sentia que ainda dava. Mas quando acabou a última temporada eu fui amadurecendo essa ideia, treino a treino, dificuldade a dificuldade, conversando com as pessoas, me observando, porque fisicamente nós temos uma dificuldade da autocrítica, de se olhar e aceitar que está difícil, de entender os ciclos, e que apesar de tecnicamente ainda conseguir, fisicamente eu estava sofrendo. Era um desejo meu tentar fazer com que esse fim fosse prazeroso, fosse bom, que não fosse até o final, já que por mim jogaria até a última gota. Foram 20 anos, fiz inúmeros amigos, conheci gente, defendi meu país, tive conquistas bacanérrimas que jamais poderia imaginar, e aí eu meio que entendi que era a última. Faltando uns 15 dias para a final eu sentei com o Bernardo, que é o cara que eu devo os últimos 13 anos da minha vida e de amizade e dividi isso com ele. Ele disse que achava que dava para eu jogar mais uma temporada, mas que entendia essa minha postura de planejar – explicou Fabi. 

Para muitos a derrota por 3 sets a 0 para o Praia Clube na decisão da Superliga Feminina, no último dia 22 de abril, em Uberlândia, não foi a despedida mais justa para uma das maiores jogadoras de todos os tempos. Fabi discorda. Para a capitã e referência do time carioca nas últimas 13 temporadas seu último jogo teve um roteiro quase perfeito. Se faltou o título, sobraram motivos para se orgulhar. O adeus veio numa decisão, defendendo a sua cidade natal, treinada pelo seu ídolo e com um ginásio lotado. O que mais ela poderia querer?

Para os maiores sempre falta alguma coisa. No caso de Fabi não é diferente. Faltou o sonhado título mundial, que bateu na trave em duas derrotas dolorosas para a poderosa Rússia de Gamova & Cia, nas finais de 2006 e 2010. Até no Flamengo, seu time de coração, ela jogou. Mas por ironia do destino, bastou a melhor líbero de todos os tempos decidir aposentar as joelheiras para o Rubro-Negro anunciar que irá montar um time para a disputa da Superliga B. 

O fato de ter iniciado sua trajetória em 1992 nas categorias de base da Gávea, onde permaneceu até 1998, pode até servir para amenizar tal incômodo, mas não esconde a frustração de saber que em breve o Flamengo terá uma equipe na disputa da principal competição nacional do país, enquanto ela, na melhor das hipóteses, estará no ginásio apenas como uma simples torcedora. 

– Joguei nas categorias de base do meu time de coração, joguei uma Superliga, mas obviamente que gostaria de defender o clube neste momento. Tinha 19 anos, era muito jovem, mas adoraria jogar uma Superliga pelo Flamengo hoje. Eu brinco com meus amigos que se o time do Rio fosse o Flamengo acho até que papai do céu poderia me levar (risos). É um privilégio poder jogar aqui, eu acho que até quem não é Flamengo se transforma e nutri um carinho pelo clube porque é uma energia fora do comum – afirma Fabi, sentada sobre o escudo do Flamengo desenhado no centro da quadra de basquete do clube.

O amor pelo Flamengo vem de longe, de família, do pai José Maurílio, que queria ver a filha jogando por mais três temporadas. Mas nem a paixão que veio do berço impediu que Fabi virasse a casaca e vestisse a camisa do arquirrival Vasco da Gama. Se dentro de quadra ela deixou o amor incondicional de lado e deu a vida pelo clube cruz-maltino na temporada 2000/2001, longe de São Januário o coração nunca deixou de bater pelo vermelho e preto. Tanto que na decisão do tricampeonato carioca de 2001, eternizado pelo famoso gol de falta do sérvio Petkovic, Fabi respeitosamente não foi ao Maracanã e optou por torcer escondida na casa dos pais, em Minas.

– Sem nenhuma hipocrisia, eu nunca torci pelo time de futebol do Vasco, não dá, é uma coisa independente da outra, mas em quadra eu dava meu sangue pelo time do Vasco. Era meu trabalho, meu ganho pão e uma vitrine para mim. O Vasco foi uma vitrine para mim, não tenho porque esconder isso. O Vasco teve uma participação na minha vida muito importante. Joguei do lado de jogadores que eu só via pela televisão. Márcia Fu, Fernanda, Ida, Raquel, a Isabel era minha treinadora. Foi muito complicada a final da Superliga, por exemplo, contra o Flamengo. Mas foi muito importante para o meu crescimento, para o entendimento das coisas. Eu nunca cantei casaca, mas fiz parte dali e sempre tive um respeito enorme pelo Vasco, de verdade. Financeiramente eu dependia do Vasco, eu aprendi a ter um respeito, um comprometimento com o meu trabalho, nós fomos campeãs carioca, tenho um título pelo Vasco, então eu tenho um respeito enorme – revela a rubro-negra.

Além de Pet, talvez o principal ídolo de sua geração, Fabi não esconde sua admiração por Zico. Mesmo sem ter visto o galinho jogar, a bicampeã olímpica chega a ficar arrepiada quando se lembra do primeiro encontro com o camisa 10 mais famoso e idolatrado da Gávea.

– O dia que o Zico me chamou pelo nome, a lágrima saiu, eu tenho o WhatsApp do Zico, eu falo isso com meu pai, às vezes vira uma piração. O cara te conhecer, te chamar pelo nome e eu ter o telefone dele. Isso é uma loucura. Não vou ficar em cima do muro não. Para mim o Zico foi o maior de todos e dessa geração mais jovem eu gostei de alguns, mas por conta do Pet ter sido o cara que fez os gols importantes, ele talvez tenha representado essa galera. Nós ficamos muito reféns do Zico, queremos o 10, o cobrador de faltas, mas no fundo no fundo o torcedor quer títulos, que ver o Flamengo campeão – disse a ex-líbero.

Nascida no Irajá, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, Fabi foi criada na rua e isso fez com que a bola sempre estivesse presente no seu dia a dia. Se o vôlei acabou se transformando no seu ganha pão, era o futebol que deixava dona Vera de cabelo em pé toda vez que pegava a filha correndo no meio dos marmanjos. As constantes reclamações não surtiram efeito e com um discurso para lá de madura para uma adolescente de 12 anos, a ex-jogadora da seleção usou as palavras certas para convencer a mãe de que as peladas com os meninos mão faziam mal algum.

– Minha mãe ficava brava comigo e reclamava que eu jogava bola no meio dos meninos. Eu sempre fui muito malandra, esperta, uma malandragem no bom sentido, e lembro que uma vez falei para ela que em vez de ficar preocupada que eu estava jogando bola com os meninos ela tinha que ficar preocupada quando eu não estivesse ali, porque aí eu realmente poderia estar fazendo alguma coisa errada. E aí minha mãe disse, opa, acho que a Fabiana está certa, essa menina de 12 anos está me dando uma lição de moral (risos). É porque eu via muita coisa errada e só queria brincar de bola, jogar vôlei, queimado, polícia e ladrão, pique bandeira, que eram as nossas brincadeiras. O futebol era uma forma de estar fazendo esporte e de estar na rua sem fazer besteira – lembrou Fabi, que acabou deixando o sonho de jogar futebol de lado para brilhar com alguns chutes emblemáticos nas quadras de vôlei.

Como a aposentadoria é muito recente, Fabi ainda não decidiu o que quer fazer quando a ficha de que não é mais jogadora realmente cair. O futuro está logo ali, mas ela não tem pressa. Comentarista ela já é, palestrante e treinadora parecem planos possíveis, mas a única certeza que a ex-jogadora tem hoje em dia é que faltam mais mulheres nos cargos de gerência no esporte mundial. E isso incomoda e muito a eterna camisa 14 do Rio de Janeiro e da seleção brasileira.  

– Muita gente tem falado sobre a ausência das mulheres no esporte, nos cargos de gerência, não existem muitas mulheres, é algo que incomoda. Na minha cabeça eu ainda não sei o que quero fazer, mas não tenho como sair do vôlei. Depois da Isabel teve uma treinadora na Superliga que era de Valinhos, acho que foi a única. Nas Olimpíadas do Rio tinham 24 treinadores e uma mulher, é um número quase irrelevante, e ela foi campeã olímpica. É uma coisa que incomoda. Eu sou favor de se capacitar e fiz alguns cursos. A Federação de Vôlei abre alguns cursos anualmente de nível 1, 2, 3 e internacional para ser treinador. Eu tenho o nível 1 e tenho vontade de fazer os outros, mas não com a intenção de querer ser treinadora, quero me permitir ter opções. Hoje eu sou comentarista, o que eu posso ser por muitos anos, mas não sei se minha vida vai se basear nisso. O Bernardo acha que eu tenho total perfil para ser treinadora, sempre falou isso nas entrevistas. Mas eu não sei, a rotina é a mesma, o que muda é que você não vai estar treinando. Eu tenho me permitido fazer muitas coisas e uma hora vou ter que decidir o que fazer – ressaltou Fabi, que por duas vezes quase deixou o Rio de Janeiro: uma para atuar pelo rival Osasco e outra para jogar no vôlei espanhol.

Se o futuro profissional ainda é uma incógnita para a ex-líbero Fabi, o presente certamente vai trazer de volta as melhores lembranças da adolescente Fabiana Alvim Oliveira, que corria descalça e sem hora para nada pelas ruas de Irajá. Afinal, sem compromissos profissionais na agenda e treino no dia seguinte, as peladas com as amigas na Barra da Tijuca parece que finalmente ganharão um reforço de seleção.