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O dono da bola

texto: Sergio Pugliese | fotos: Marcelo Tabach | vídeo: Daniel Perpétuo

A parede adesivada com a imagem de um estádio de futebol levou dois meninos a testarem seus conhecimentos futebolísticos.

– La Bombonera! – cravou o primeiro.

– Wembley – rebateu o segundo.

Tentando ajudar, Evaristo de Macedo deu a dica.

– Camp Nou.

Os moleques riram do senhorzinho “desconhecido” e saíram do Bar da Eva, no Grajaú, onde o craque seria homenageado. Foram pedir ajuda ao pai, na calçada, enquanto Evaristo continuou batendo papo com os amigos. Olhando para a foto, o pai respondeu, seguro.

– Stade de France.

Evaristo mais uma vez voltou-se para os meninos e insistiu.

– Camp Nou.

O pai o reconheceu de algum lugar, mas a memória falhou. Então, os meninos, irônicos, perguntaram.

– Como o senhor sabe que é o Camp Nou?

– Porque eu marquei um gol na inauguração.

O pai, envergonhado, pegou os filhos pelos braços e sumiu. A rapaziada do 18, time que fundou no Grajaú, divertiu-se. Todos conheciam o currículo do mestre. Naquele 24 de setembro de 1957, Evaristo entrou no segundo tempo e fez um dos quatro gols na vitória de 4 x 2 sobre o Warsaw, da Polônia. Os outros foram de Eulogio Martínez, Tejada e Sampedro.

RAPAZIADA DO 18 NA VITÓRIA DE 1 x 0 SOBRE O AMÉRICA (campo do América)da esquerda para a direita, em pé: Jadson, Reginaldo (ex-Botafogo), Pitanga, Betinho Carqueija, Edson (ex-Bangu e seleção olímpica de 1952), Aloísio, Fernandão, Ivo, Jerry, Pandorga, Jorge, Décio, Jorginho, Quarentinha e Paquetá. Agachados: Tarcis, Hamilton, Parafita, Evaristo de Macedo, Calazans, Valença, Jorge II, Alfredo, Sergio II, Zulmar, Ari (tricampeão pelo Flamengo, 53/54/55), Tião Búfalo e Nilo.

 

– Tenho a réplica dessa bola até hoje – comentou, orgulhoso, enquanto apontava para a estante de seu apartamento, em Ipanema, durante divertida resenha com a equipe do Museu da Pelada.

E a intimidade de Evaristo com a bola não tem data de validade. Suas últimas atuações, na verdade exibições, aconteceram no campo do Curupaiti, em Jacarepaguá, dentro de uma antiga colônia de portadores de hanseníase, justamente com os parceiros do 18. Antes, no esplendor da forma, desfilara seu talento no Maracanã e em tapetes da Europa. Mas a despedida, a pendurada oficial de chuteiras, aconteceu ali, no gramadinho bem aparado do Curupaiti, longe de estrelas mundiais, mas entre “irmãos” boleiros do Grajaú, como Tião Búfalo, Nivaldo, Marinho Picorelli, Betinho Carqueija e o saudoso Zeca Diabo.

Joguei no Barcelona com Ladislau Kubala, no Real Madrid com Alfredo Di Stéfano e Puskás, e na seleção brasileira com Garrincha e Nilton Santos, mas acabei no 18, com Tião Búfalo e Zeca Diabo.

– Joguei no Barcelona com Ladislau Kubala, no Real Madrid com Alfredo Di Stéfano e Puskás, e na seleção brasileira com Garrincha e Nilton Santos, mas acabei no 18, com Tião Búfalo e Zeca Diabo – gargalhou Evaristo, ao lado do ilustrador Marcos Vinícius Cabral, que intermediou nosso encontro e presenteou o artilheiro com uma divertida caricatura.

 

NOSSA EQUIPE: André, Daniel, Pepe (filho de Evaristo), Tabach, Pugliese e Evaristo, com o quadro, presente de Marcos Vinícius, a seu lado.

E a marca registrada, o toque de bola, o tic tac que encanta o mundo, estava presente no vai e vem de Evaristo na cadeira de balanço, onde, recostado e com as pernas cobertas por camisas de Barcelona, Real Madrid, Flamengo, seleção brasileira, Madureira e Bahia, recordava os dias de glória. O videomaker Daniel Perpetuo focou nos pés do craque, tic tac, tic tac. Após o Barça, Evaristo transferiu-se para outra potência, o rival Real Madrid e para conquistar a torcida só ganhando títulos. Não seja por isso. Foi tricampeão, 63/64/65, e virou ídolo. A bola continuava a seu lado.

– Ela foi uma grande companheira, não há dúvida.

A bola foi uma grande companheira, não há dúvida.

Na verdade, quem mais precisava estar nessa despedida, estava: a bola!!! Essa parceirona o acompanha desde sempre. Também do jeito que a tratava, haja carinho, era impossível desgrudar, praticamente uma namorada!!! E a “rechonchuda”, que não é boba nem nada, nunca o abandonou! Está presente no chão da sala, enfeitando as prateleiras, nas capas de livros, em quadros, imortalizada em troféus, mas, principalmente nos sonhos.

– Certa vez, quando a bola tentou escapar, mergulhei de peixinho, consegui alcançá-la e marquei um dos gols mais importantes da história do Barcelona – recordou-se ao mesmo tempo em que buscava na estante, com o olhar, aquela imagem, hoje emoldurada, flagrada pela Leica, de Pérez Rozas.

Esse gol, em 1960, eliminou o rival Real Madrid da Copa da Europa, atual Liga dos Campeões, e classificou o Barça para a final. O Real vencera as cinco primeiras edições, mas a vitória de 2 x 1 interrompeu a trajetória triunfal do clube madrilenho e transformou Evaristo em herói. Mas herói, sinceramente, é pouco! Evaristo é mito!!! De 1957 a 1962, quando defendeu as cores do Barcelona, foi bicampeão e até hoje não foi superado por nenhum brasileiro em número de gols. E olha que Romário, Ronaldo Fenômeno, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho passaram por lá, hein!!!! Marcou 178 vezes em 226 jogos.

– Acho que o Neymar me passa, mas também, hoje, joga-se muito mais vezes do que naquela época – argumentou.

Acho que o Neymar me passa, mas também, hoje, joga-se muito mais vezes do que naquela época.

E, quem diria, tudo começou nas peladinhas com amigos, no Grajaú Tênis Clube. Como deitava e rolava foi indicado para um teste no Madureira. Treinou, barbarizou e o convidaram para o dia seguinte. Mas apresentou uma contra proposta: só voltaria com o amigo Jorge Vieira, reprovado. Cederam, claro. Jorge Vieira não decepcionou e, no futuro, tornou-se jogador e técnico do América. Evaristo foi parar no Mengão, time de coração, e, com a camisa 10, conquistou o tricampeonato de 53/54/55. Do Maraca para o Barcelona, onde estreou contra os alemães do Saarbruceen, 4 x 1.

– O Barcelona já era uma potência e o toque de bola também já era uma marca registrada – lembrou.

Despediu-se da carreira no Flamengo, mas não do futebol. Como técnico, ganhou títulos regionais pelo Santa Cruz e também é ídolo naquelas terras. Papou a Copa do Brasil, de 97, pelo Grêmio, com Mauro Galvão e Paulo Nunes, e foi campeão brasileiro pelo Bahia, em 88, com Charles e Bobô. No Flamengo, quase saiu no tapa com Romário, mas passou e, hoje, o Baixinho admite: “Ele é pica!”. Foi rei por onde passou!!! E só não foi campeão do mundo de 58, pelo Brasil, porque o Barcelona não o liberou. Imaginem ele e Pelé juntos? Sem dúvida, uma das grandes injustiças do futebol.

– Só fui apresentado ao Rei quando o Santos veio disputar um torneio na Espanha e nos ganhou de 4 x 1. Ele e Edu acabaram com o jogo.

Hora da foto!!!! Meu Deus, o que Marcelo Tabach vai aprontar dessa vez? O mago das lentes queria registrar essa intimidade entre Evaristo e a bola, essa relação extraterrestre, que mistura alegria, dor, poesia, sedução, amor, êxtase. Então, pegou Evaristo pela mão, a réplica da bola na estante e, enfim sós, levou os dois para a cama.

 


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